05 Janeiro 2021
"Pesa sobre o feminino a impressão de uma incompatibilidade natural com o sagrado e com o espaço público, uma incompatibilidade que tornaria as mulheres deslocadas em ambos os contextos", escreve Lucia Vantini, professora de Filosofia e Teologia no Instituto Superior de Ciências Religiosas e Estudos Teológicos de San Zeno, em Verona. Membro da comunidade filosófica Diotima. Vice-presidente do Coordinamento Teologhe Italiane "Donne Chiesa Mondo” de janeiro de 2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Estamos em um tempo de incerteza, não é preciso lembrar isso. No óbvio, porém, nem tudo acontece por si só. Entre o que não podemos dar como certo, está nossa postura no fluxo dos eventos. Mesmo que muda, não para de dar voz à experiência. Embora invisível, continua a moldar a história. Apesar de ignorada, insiste em gerar saberes. Acontece, portanto, que as palavras e as práticas estão se transformando de uma forma nem sempre transparente e compartilhada: não sabemos exatamente de onde vêm, nem que efeitos estão tendo sobre nós.
Um dos pontos de observação dessas transformações gira em torno da vida dos corpos e de suas narrativas. As formas como se regulam as distâncias entre os corpos, de fato, produz sempre teorias, imaginários, discursos e hábitos. O Covid-19 mexeu nessas distâncias, às vezes encurtadas demais nas casas e dilatadas ao máximo nos locais de trabalho, nas escolas, nas lojas e nas praças.
Nas igrejas foram adotados os protocolos de segurança previstos, mas há no ar uma estranha mistura entre o medo do contágio e o medo de que o povo de Deus possa viver bem a fé mesmo sem celebrações presenciais. Seja como for, precisamente porque há uma mudança importante quanto à distância entre os nossos corpos, algo profundo e indecifrável acontece na nossa experiência, tocado no coração da sua vocação relacional. Poderíamos dizer sinteticamente que é nosso imaginário de proximidade que se sente convocado e abalado. Não é fácil reorganizar pensamentos, as palavras e as ações. Abriu-se um conflito interpretativo sobre o que realmente significa viver boas relações em uma época em que as tensões econômicas, sociais e políticas são cada vez mais exasperadas. Também é difícil levar a sério e honrar a vulnerabilidade que nos distingue a todas e a todos, desmascarando as muitas hierarquizações com as quais sempre convivemos. Nas comunidades cristãs, a mesma questão se resume com eficácia no termo fraternidade, categoria que não pode se imunizar das tensões do mundo que habitamos juntos, como atesta também a última encíclica do Papa Francisco.
Na escuta das mulheres. Para que esta oportunidade de reelaboração da história não seja desperdiçada, porém, é preciso também ouvir as mulheres. Não em geral: as mulheres não são detentoras da verdade (ou da falsidade) por natureza. Trata-se antes de ouvir as tantas mulheres que - entre infinitas perturbações - trazem o discurso sobre o sentido da diferença sexual, sobre as diferenças em que ela historicamente se entende e sobre os imaginários que as acompanham. São as mulheres que aprenderam por experiência a desconfiar dos discursos universais, neutros, a-históricos e desencarnados. Essas mulheres sabem muito bem que a injustiça não tem pudor e muitas vezes se disfarça com roupas de igualdade.
Elas nos lembram continuamente que não bastará falar de justiça social ou de fraternidade para transformar o mundo em um lugar efetivamente hospitaleiro para todos. Elas nos confrontam com o fato de que programas de boa vontade escorregam sobre a superfície da história sem se inscreverem em sua trama efetiva, se não olharmos para as singularidades concretas e o que realmente as atinge no silêncio das vidas. Na escuta dessas mulheres se aprende a urgência de questionar os imaginários da diferença sexual, porque algo injusto muitas vezes se esconde neles. Aqui está a razão de algumas contradições no mundo, que levantam questões não resolvidas. Por exemplo, por que em uma ordem civil que não admite discriminações relacionadas à diferença sexual, as mulheres são as primeiras a perder o emprego, costumam receber menos, muitas vezes têm que assumir a cansativa gestão da casa, se sentem pouco adequadas para funções científicas, dificilmente alcançam cargos de topo e, caso sofram violência, tendem a culpabilizar-se e serem culpabilizadas? E por que, em uma versão eclesiológica centrada na dignidade batismal, os vínculos entre os sexos resultam desequilibrados nas tantas formas que conhecemos, oscilando entre a demonização e a idealização do feminino sem solução de continuidade? Não se pode responder sem mergulhar no reino sombrio dos imaginários culturais em que se expressa a diferença sexual.
Não se trata de uma sugestão para desviar a atenção do plano do discurso explícito e político: é antes um convite a refinar o olhar, porque as "explicações" também se aplicam ao não dito e às paixões que o agitam. Afinal, como bem mostrou o psicólogo e neurocientista Micheal Gazzaniga, tendemos a produzir muitos motivos para justificar os nossos sim e os nossos não à vida, mas muitas vezes se trata de confabulações: as razões do fazer estão em outro lugar, escondidas por discursos de cobertura postos em campo para governar o desequilíbrio da diferença Uma sabedoria feminina pode nos orientar nessa complexidade, reconhecível no pensamento filosófico da diferença (Diotima) e nas teologias de gênero do Coordinamento delle Teologhe Italiane (Cti).
Uma remoção antiga e sempre nova. A trama patriarcal que interrompe os vínculos justos entre mulheres e homens - justos no plano afetivo, interpretativo, jurídico, simbólico, prático - está repleta daquelas contradições que o inconsciente pode se permitir. Sem podermos fazer um exame aprofundado, destacamos como nele se instaura muitas vezes um imaginário patriarcal que exalta e despreza o feminino ao mesmo tempo. A mulher assim desenhada é paradoxalmente demasiado angélica e muito demoníaca para ser ouvida naquilo que ela tem a dizer ou para ser deixada agir.
Pesa sobre o feminino a impressão de uma incompatibilidade natural com o sagrado e com o espaço público, uma incompatibilidade que tornaria as mulheres deslocadas em ambos os contextos. Essa incompatibilidade é composta de "muito" e de "pouco": muito materna, muito afetiva, muito relacional e muito corpórea por um lado, mas também pouco racional, pouco sistemática, pouco política e pouco espiritual pelo outro, a mulher se torna irrelevante no plano da troca concreta das perspectivas sobre o mundo, mesmo teológicas. As remoções postas em ato partem daquela trama contraditória, ainda que muitas vezes as argumentações se aproveitem apenas do lado luminoso, o idealizador. As demonizações são caladas, porque não são reconhecidas ou por estratégia. O entrelaçamento é, de qualquer forma, deletério, porque neutraliza tudo que questiona o sentido unitário da realidade. Porque, sabe-se, é isso que as mulheres fazem: expressam desconfortos e desejos que desmascaram a parcialidade das tradições que não as previram e que ainda não as querem encontrar e, assim, abrem o discurso para muitas outras diferenças.
Nessa perspectiva, as teologias das mulheres são incômodas pelo pedido que trazem consigo: pedem para salvar o particular. Falam de corpos, sentimentos, opressões, vidas e histórias, talvez porque sejam menos preocupadas com o que está acabando e muito mais atraídas pelo que está nascendo.
Assim, elas se encaminham por sendas dos processos pascais que perpassam a existência. Nesse sentido, não se trata de teologias progressistas: não é o novo que atrai, mas o desabrochar do ser.
O sonho feminino não é só para as mulheres. Volta à memória o que a filósofa María Zambrano escreve sobre as ruínas, em um artigo de 1949 provavelmente escrito em Roma, durante uma das etapas do longo exílio a que o regime de Franco a obrigou.
Em frente ao Fórum Romano, Zambrano sente o pathos que emana das ruínas. Para ela, as ruínas são sempre uma metáfora da esperança que se obstina a doar-se mesmo nas crises e nos fracassos. Algo sagrado fica no ar: é o vestígio do passado que se perdeu, mas é também o canto daquilo que, vencido, não deixou de lançar seu próprio apelo. Assim, a hera, o musgo ou a erva que abre caminho pelas frestas das pedras que ficaram, que tanto encantaram Zambrano, são também a imagem daquela esperança obstinada das mulheres dentro das nossas comunidades, que no fundo nada mais é que o delírio da própria vida que pede expressamente para ser compartilhada.
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As incômodas teologias das mulheres - Instituto Humanitas Unisinos - IHU