17 Dezembro 2020
“Precisamos aprender a gerir a partir da incerteza, da consideração do improvável, sobretudo na avaliação dos riscos. Este é um dos desafios que o Antropoceno expõe com urgência”, escreve María Novo, escritora espanhola, especialista em meio ambiente, educação ambiental e sustentabilidade e integrante do Clube de Roma (Capítulo Espanhol), em artigo publicado por Ctxt, 15-12-2020. A tradução é do Cepat.
A influência do Ocidente industrializado e tecnificado sobre o resto do mundo, com a ampliação de nossos valores e formas de vida, gerou um comportamento global que, mediante a lógica do lucro econômico imediato, foi encurralando a lógica da vida. Hoje, a humanidade assiste com preocupação a emergência de uma nova época geológica – Antropoceno – caracterizada por nossos impactos sobre a Biosfera. Uma época em que a humanidade começa a compreender que, se não operarmos mudanças rápidas nos critérios e padrões dominantes, a atual civilização estará em jogo, até mesmo a sobrevivência dos seres humanos sobre o planeta correrá perigo.
Mudar não é fácil, mas é imprescindível. Não temos somente que superar essa visão do mundo que vê a natureza como uma mera fonte de recursos submetida a nossos desígnios. Não temos somente que aprender a respeitar seus ritmos e seus limites. A tarefa é isso e muito mais. Como sociedades, precisamos aprender a viver de outra maneira, a produzir e consumir de modo diferente, a ser felizes, em suma, sem destruir as bases de nossa vida.
Por onde começa a mudança? De cima, pelos governos? De baixo, pelos povos? Ou talvez seja preciso um giro copernicano sinérgico, uma reconciliação de dirigentes e cidadãos em torno de novos critérios e valores? Nós que nos inclinamos por esta terceira opção pensamos que as três escalas, macro, médio e micro, são imprescindíveis e devem estar articuladas. E já somos muitos os que nos perguntamos o que podemos fazer em escala individual ou comunitária para atalhar esta crise global e não colaborar para incentivá-la.
Dito isto, o objeto deste artigo é se centrar na vida cotidiana. Não pretendo entrar no “fazer” - cada pessoa ou grupo deverá encontrar o seu modo -, mas, ao contrário, sugerir certos referenciais para buscar iluminar a reflexão sobre onde estamos, para onde queremos ir e como viajar.
Não seus dominadores, nem apenas seus cuidadores. Somos parte dela, é a matriz da vida que se manifesta em cada um de nós. Isso supõe aceitar que somos seres ecodependentes.
Impõe-se reconhecer que os limites do planeta são nossos próprios limites. Parar os respeitar, é preciso que aprendamos, como espécie, a coevoluir com a Biosfera, tendo em conta seus ritmos, pautas e restrições. E que também aceitemos colocar limites em nossos desejos, aprender a desejar.
Entre as múltiplas opções que surgem a esse respeito, gostaria de destacar uma que é pouco tratada e que, em minha opinião, é fundamental: reapropriarmo-nos do tempo, um bem intangível, não renovável, que está sendo sequestrado de nós pelas atuais formas de vida. A partir das correrias, do ritmo frenético e descompassado com que se vive atualmente nas grandes cidades é impossível avançar em uma “nova normalidade”. Necessitamos de tempo para a reflexão, tempo para compartilhar com as nossas famílias, novos horários nos locais de trabalho, ao estilo dos países nórdicos... Necessitamos, urgentemente, “viver para viver” e não apenas “viver para produzir e consumir”.
O tempo é liberdade. Quando nos roubam tempo, estão nos roubando liberdade. A atual sociedade está cheia de “ladrões de tempo”. Cada pessoa pode descobrir quais são em sua vida: As redes sociais? As muitas horas diante da televisão? O trabalho mal remunerado que exige fazer horas extras? Os grandes deslocamentos para ir e voltar do trabalho?
Reapropriar-se do tempo é uma decisão muito difícil de ser tomada em nível pessoal, na maioria dos casos, pois o grande ladrão de tempo é o estilo de vida que se impôs em nossas sociedades. É necessário que as instituições que organizam a atividade comunitária ecoem o problema. Mas, em certas ocasiões, alguns de nós podem renunciar a um salário maior, reconhecimento profissional ou social, possibilidades de desfrute..., se aprendermos a “trocar dinheiro e relevância social por tempo”.
Cada participação individual ou coletiva no conjunto confirma nossa condição de seres interdependentes. Precisamos uns dos outros para sobreviver em um mundo complexo, no qual ninguém sobra e todos somos protagonistas da aventura da vida.
Para isso, talvez convenha compaginar as demandas a “outros” (Instituições, Governos...) com o nosso compromisso pessoal. Perguntar-nos em que podemos ser úteis à comunidade de vizinhos, ao bairro, à cidade ou o país em que vivemos.
Todo o mundo é excelente em algo. Os dons são diferentes, essa é nossa riqueza e uma de nossas fortalezas. Cada pessoa pode doá-los à sua comunidade. Não somos seres isolados, nem famílias isoladas que se amuralham para avançar. Somos nossas relações. Nelas se manifesta a forma de ser criativa e cooperativa. São a base da convivialidade.
Compartilhar recursos físicos e também os intangíveis é um modo de relação gratificante. Sentir o outro ou a outra como parte de nossa vida... A saúde é, em grande parte, a saúde de nossas relações. O valor dos afetos é curativo e estimulante, muito mais do que nos dizem os anúncios publicitários para nos vender objetos inúteis.
Portanto, frágeis, vulneráveis, ao mesmo tempo que fortes e resolutivos. Temos a necessidade não só de bens materiais, mas de alimentos intangíveis, valores que deem sentido às nossas vidas.
Aceitar a fragilidade humana supõe considerar a situação de crescente desigualdade em que nossas sociedades evoluem. Isso implica ter muito presente os limites dos recursos e expõe a necessidade de compartilhá-los a partir da sobriedade e a simplicidade como formas de vida. Precisamos recuperar a sensatez do “tamanho ideal” na hora de projetar e optar em todos os campos. Não deixar de lado o valor do pequeno e o descentralizado. Finalmente, nos fazer a pergunta: Quanto é o suficiente?
A partir desta simples pergunta, as escolhas mudam, estabelecemos novas prioridades mais baseadas em valores intangíveis: cooperar ou compartilhar, o cultivo dos afetos, as relações gratificantes, o trabalho criativo...
Esse lugar é nosso habitat. A relocalização que em muitos aspectos cruciais (alimentação, produtos estratégicos, energia...) a nossa sociedade necessita começa de baixo para cima.
Nossos nexos ecológicos e sociais se iniciam e estabelecem nesse espaço de vida... Nele fazemos opções, descobrimos o sentido da palavra “comunidade” e construímos nossa identidade individual e coletiva. Esse lugar é o primeiro “banco de provas” dos valores e atitudes com os quais encaramos a existência.
Todo pequeno mundo é um holograma do grande mundo. A partir da vida cotidiana, é preciso que voltemos a nos reconectar com a natureza, a nos relocalizar. Retornar ao local não significa se isolar, nem perder de vista os problemas globais. Faz tempo que foi cunhada uma expressão para dar conta desta complexa relação entre o próximo e o distante: o glocal. Como cidadãos “glocais” podemos viver assentados firmemente em um território e participar de projetos, ideias e práticas de ordem mundial.
Já é possível fazer reuniões de trabalho virtuais e reduzir drasticamente as viagens em avião. Também seria desejável que nos decidíssemos a organizar o lazer com maior simplicidade, sem a necessidade de estar o tempo todo nos movimentando de um lugar para o outro. Os suecos já falam da “vergonha de viajar de avião”.
Aprender a comprar produtos locais fortalece a autossuficiência alimentar e produtiva de nosso entorno. E nos fixar no valor ecológico e social das coisas e não apenas no preço. Comprar “barato” é, geralmente, comprar produtos (roupas, calçados...) feitos com trabalho em condições indignas.
Cabe esperar que aprendamos a comprar, a comer, a desfrutar de outra maneira... Isto afeta inclusive o que fazemos com o nosso dinheiro: se nossas poupanças vão para o destino adequado ou engrossam Fundos de Investimento ou de Pensões que trabalham com setores da economia não recomendáveis.
É menos difícil do que se pensa. Mas requer, isso sim, estabelecer critérios de lucidez pessoal e coletiva sobre a crise ambiental e histórica em que estamos e apostar em formas de convivência baseadas em princípios éticos e ecológicos, com vontade e imaginação. O desafio, neste momento, é múltiplo:
1. Reconhecer que nosso mundo está enormemente influenciado pelos acontecimentos extraordinários e pelo muito improvável, algo que historicamente praticamos muito pouco e que agora estamos descobrindo por necessidade. Aprender a agir em cenários de alta incerteza, com informação incompleta.
Mas, para isso, temos um problema perceptivo: geralmente, ‘ignoramos o que ignoramos’. Nosso conhecimento do mundo é muito pequeno, limitado pelos nossos sentidos e os nossos instrumentos tecnológicos. Impõe-se uma mudança em direção à humildade e a prudência, quando se trata de intervir sobre sistemas complexos naturais e sociais.
A partir desta forma de percepção da realidade, confiamos muito nas evidências do passado e contemplamos muito pouco o que pode acontecer. Foi o que fez o capitão do Titanic. Faltou-lhe humildade para reconhecer a força e a contundência do inesperado. Hoje, existem muitos cisnes negros no horizonte, vamos considerá-los.
Na atual situação, com um sistema global muito impactado pela intervenção humana, o passado e a função de Gauss deixaram de ser as principais referências para a tomada de decisões. Precisamos aprender a gerir a partir da incerteza, da consideração do improvável, sobretudo na avaliação dos riscos. Este é um dos desafios que o Antropoceno expõe com urgência.
2. Mudanças em nosso nível de consciência. Como afirmava Einstein, nenhum problema pode ser resolvido no mesmo nível de consciência em que foi criado. A mudança de consciência, em todas as escalas, não é um corretivo, é uma ruptura em nosso modelo de pensamento. Uma ruptura dolorosa e esperançosa ao mesmo tempo. Faz com que nos reposicionarmos em relação à natureza, que vejamos o mundo de baixo, em uma visão participativa, não dominadora.
Uma consciência expandida, sem fronteiras, nos centra mais no que une no que separa (corpo/mente, razão/emoção, pessoa/natureza...). Supõe considerar como complementares os elementos aparentemente antagônicos. Implica ver a realidade em termos de relações e não de objetos (ou sujeitos) isolados. Em suma, ajuda-nos a passar da simplificação à complexidade.
Precisamos de uma consciência que contribua para a compreensão do Antropoceno como um campo de acontecimentos altamente improváveis, alguns irreversíveis. Que o aquecimento global e a maior parte dos problemas ambientais não são um contínuo linear, mas que crescem exponencialmente, com tudo o que isso tem de imprevisível.
3. Mobilizar a imaginação. É necessário dar passagem a toda a potencialidade criativa do ser humano. Deixar de nos apoiar nas supostas evidências do passado e apostar no inédito viável.
É preciso colocar em jogo, individual e coletivamente, uma imaginação criativa que revitalize, na vida pessoal e social, o prazer de inovar, de elaborar soluções inéditas para problemas desconhecidos. A educação tem muito a fazer neste campo. Para isso, precisamos de pessoas criativas nessa incumbência.
4. Aprender a nos auto-organizarmos em situações distantes do equilíbrio. Essa é uma potencialidade dos sistemas complexos (e nós somos).
Precisamos nos familiarizar com as bifurcações. Os sistemas que melhor “bifurcam” e sabem se auto-organizar são os que avançam em qualquer contexto. Isso está relacionado com a resiliência, nos leva a avançar nas dificuldades, não apenas superando-as, mas descobrindo como utilizá-las a nosso favor. Faz com que enxerguemos as oportunidades que estão escondidas nos problemas aparentemente negativos.
5. Fazer confluir a ciência com a ética e a arte para este fim. A ciência é um louvável esforço humano que nos permite diagnósticos confiáveis. A ética é fundamental na tomada de decisões. A arte abre janelas em nossa mente para ver o que todos veem e pensar o que ninguém pensou. Traz um plus de criatividade que hoje mais do nunca é necessário, frente a um futuro incerto. E nos oferece algo genuíno: tornar visível o invisível.
Juntos, ciência, ética e arte nos ensinam a vislumbrar a complexidade da natureza em todas as suas manifestações e a beleza dos valores que nos permitem avançar como humanidade: a cooperação, a antecipação, o sentido da medida, a imaginação, a resiliência...
6. E, finalmente, cultivar a esperança. Sem ela, não faremos nenhuma mudança, nem de consciência, nem de modelos, nem de comportamentos.
A esperança não é otimismo simplificador. É confiança na força da vida e em nossas próprias forças para reinventar este horizonte que hoje está fraturado. É compromisso para agir em função de Gaia e da humanidade. Supõe estimular a fortaleza do frágil, cultivar a capacidade de continuar sonhando. E trabalhar nas fronteiras do possível, imaginando o aparentemente impossível. Como nos alertou lucidamente Ernesto Sábato, talvez nossas gerações não possam refazer o mundo, mas podemos, ao menos, impedir que se desfaça.
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A vida cotidiana no Antropoceno. Artigo de María Novo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU