19 Setembro 2020
"A Terra é um Planeta finito. Isto significa que os seres vivos possuem um espaço comum e delimitado para a sobrevivência conjunta", escreve José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia e pesquisador titular da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – ENCE/IBGE, em artigo publicado por EcoDebate, 18-09-2020.
“Estamos em um carro gigante, acelerando na direção de uma parede de tijolos
e todo mundo fica discutindo sobre onde cada um vai sentar”
- David Suzuki
O crescimento da população e da economia foi de tal ordem, nos últimos dois séculos e meio, que o prêmio Nobel de Química, Paul Crutzen, avaliando o grau do impacto destruidor das atividades humanas sobre a natureza afirmou que o mundo entrou em uma nova era geológica, a do ANTROPOCENO, que significa “época da dominação humana”. Representa um novo período da história do Planeta, em que o ser humano se tornou a força impulsionadora da degradação ambiental e o vetor de ações que são catalisadoras de uma provável catástrofe ecológica.
O Antropoceno é uma Era sincrônica à modernidade urbano-industrial. A Revolução Industrial e Energética que teve início na Europa no último quartel do século XVIII deu início ao uso generalizado de combustíveis fósseis e à produção em massa de mercadorias e meios de subsistência, possibilitando uma expansão exponencial das atividades antrópicas.
Em 250 anos, a economia global cresceu 135 vezes, a população mundial cresceu 9,2 vezes e a renda per capita cresceu 15 vezes. Este crescimento demoeconômico foi maior do que o de todo o período dos 200 mil anos anteriores, desde o surgimento do Homo sapiens. Mas todo o crescimento e enriquecimento humano ocorreu às custas do encolhimento e empobrecimento do meio ambiente. O conjunto das atividades antrópicas ultrapassou a capacidade de carga da Terra e a Pegada Ecológica da humanidade extrapolou a Biocapacidade do Planeta. A dívida do ser humano com a natureza cresce a cada dia e a degradação ambiental pode, no limite, destruir a base ecológica que sustenta a economia e a sobrevivência humana.
No Antropoceno, a humanidade danificou o equilíbrio homeostático existente em todas as áreas naturais. Alterou a química da atmosfera, promoveu a acidificação dos solos e das águas, poluiu rios, lagos e os oceanos, reduziu a disponibilidade de água potável, ultrapassou a capacidade de carga da Terra e está promovendo uma grande extinção em massa das espécies. O egoísmo, a gula e a ganância humana provoca danos irreparáveis e um ecocídio generalizado, que pode se transformar em suicídio. A Terra entrou em uma espiral da morte. A 6ª extinção em massa das espécies e a crise climática são as ameaças mais urgentes do nosso tempo. E o tempo para reverter esta espiral da morte está se esgotando. Será necessária uma ação radical para salvar a vida no Planeta. O progresso demoeconômico tem gerado externalidades negativas para o meio ambiente.
As emissões de gases de efeito estufa (GEE) romperam com o nível de concentração de CO2 na atmosfera, de no máximo 280 partes por milhão (ppm) prevalecente durante todo o Holoceno, e, em maio de 2020 chegou a 419 ppm, subindo cerca de 2,5 ppm ao ano, na atual década. A quantidade de dióxido de carbono na atmosfera está atingindo índices que a humanidade jamais viveu, nunca vistos no planeta há mais de 3 milhões de anos. Mas estudo recente mostra que em cinco anos o Planeta atingirá uma concentração de carbono inédita em 15 milhões de anos. Estudo publicado na revista Nature Scientific Reports (De la Vega et. al. 2020) mostra que quando a concentração de carbono de 427 partes por milhão na atmosfera, o planeta atravessava o pico provável do período de aquecimento do Plioceno, 3,3 milhões de anos atrás, quando as temperaturas eram de 3°C a 4°C mais quentes e o nível do mar era 20 metros maior que hoje.
Com o aumento de GEE na atmosfera, a temperatura média tem subido e a Terra está 1,2º C mais quente do que o período pré-industrial, podendo iniciar um período de descontrole climático. De acordo com as novas previsões meteorológicas publicadas pela Organização Meteorológica Mundial (OMM), durante o período 2020-2024, quase todas as regiões, exceto algumas áreas oceânicas do sul, terão temperaturas mais altas do que as atuais. A temperatura média global deve permanecer acima de pelo menos 1°C até 2024, de acordo com a OMM. E a probabilidade de exceder os níveis pré-industriais em 1,5°C por, pelo menos, um desses cinco anos é alta. Estudo de Steffen e colegas (2018) que indicou que a Terra pode entrar em uma situação com clima tão quente que pode elevar as temperaturas médias globais a até cinco graus Celsius acima das temperaturas pré-industriais. O fenômeno “Terra Estufa” traria várias implicações, como acidificação dos solos e das águas e aumentos no nível dos oceanos e onda letais de calor que podem matar mais gente do que a pandemia da covid-19.
A Terra é um Planeta finito. Isto significa que os seres vivos possuem um espaço comum e delimitado para a sobrevivência conjunta. O crescimento exponencial de uma espécie provoca a redução do espaço para a vida de outras espécies, diminuindo a disponibilidade de solos e água potável. Segundo a Global Footprint Network, a população mundial em 2016 era de 7,5 bilhões de habitantes, com uma pegada ecológica total de 20,6 bilhões de hectares globais (gha) e uma biocapacidade total de 12,2 bilhões de gha. A pegada ecológica per capita estava em 2,75 gha e uma biocapacidade per capita de 1,63 gha. Assim, a Terra tinha um déficit per capita de 1,12 gha (ou um déficit total de 8,2 bilhões de gha). Ou seja, para manter o consumo humano de 2016 seria necessário 1,7 planeta. Portanto, o nível das atividades antrópicas é insustentável em termos ecológicos.
Evidentemente, algumas pessoas, algumas empresas, algumas cidades e alguns países possuem pegadas ecológicas maiores do que outras. Mas é o conjunto das atividades antrópicas que impacta o Planeta e é responsável pelo aumento da pegada ecológica e a diminuição da biocapacidade. A responsabilidade principal pela degradação ambiental é do chamado “modelo urbano-industrial” baseado na produção de bens e serviços em massa, com materiais retirados da natureza e com os combustíveis fósseis como forma de energia predominante. Mas o modo de produção não abrange 100% da produção do globo, pois existem outros formas de produção que atuam em paralelo. Por isto, se diz que a formação social inclui o modo de produção dominante e os demais modos de produção que são subordinados. O grande aumento da produção dos últimos 250 anos beneficiou muito mais uma pequena parcela da elite mundial, mas beneficiou também, de forma diferenciada, quase toda a população mundial. No final do século XVIII, Luís XIV vivia uma vida de luxo em Versalhes, mas não tinha luz elétrica, televisão, bicicleta, celular, computador, Internet, etc., e outras comodidades que estão à disposição da maioria da população mundial.
Do ponto de vista do impacto ambiental, não importa se o regime é de capitalismo neoliberal, capitalismo social-democrata ou socialista e estatal. O capitalismo é uma relação social e não basta mudar os proprietários dos meios de produção, mas manter a mesma base de produção. Por exemplo, após a Revolução Bolchevique, Lênin dizia que: “O comunismo é o poder dos sovietes mais a eletrificação”. E na China, Mao Tsé-Tung tentou o “Grande Salto para a Frente” no final da década de 1950.
Como disse Brian Snyder: “A segunda lei da termodinâmica não se importa se você é Karl Marx ou Milton Friedman; não se importa com quem possui recursos ou como os recursos são alocados depois de extraídos. A segunda lei se preocupa apenas com a conversão de energia em entropia. E, eventualmente, todo mundo obedece à segunda lei, até Stalin” (15/07/2020).
Por exemplo, a China comunista tinha um superávit ambiental na década de 1960, mas passou a ter um déficit crescente a partir da década de 1970 e, principalmente, nos anos 2000. O mundo tem cerca de 12 bilhões de hectares globais (gha) e, somente a China tem uma pegada ecológica de 5,2 bilhões de gha, cerca de 40% de todos os recursos do Planeta.
Outro exemplo é o Vietnã, que é difícil de ser acusado de capitalista, e passou de uma situação de superávit ambiental até meados da década de 1980, para uma situação de um déficit ambiental de mais de 100%.
Mesmo o continente africano já possui déficit ambiental, embora o nível de consumo seja baixo e ninguém pode acusar a África de ser um continente capitalista com alto nível de produção e acumulação de riqueza.
Enfim, a economia internacional é marcada por grandes desigualdades e, evidentemente, as pessoas mais ricas consomem mais e degradam mais o meio ambiente, ocorrendo o contrário com as pessoas mais pobres. Porém, a tabela abaixo mostra que a população mundial de baixa renda, em 2016, era de 927 milhões de pessoas e tinha uma pegada ecológica e uma biocapacidade per capita de 1,04 gha. Portanto, havia equilíbrio entre os dois indicadores e não havia nem déficit nem superávit ambiental. Neste nível de consumo, a pegada total (se todos os habitantes do globo consumissem neste nível) seria de apenas 0,64 planeta e haveria sustentabilidade ambiental.
Já a população de renda média-baixa, constituída de 2,8 bilhões de pessoas em 2016, tinha uma pegada ecológica per capita de 1,36 gha e uma biocapacidade per capita de 0,84 gha. Portanto, havia um déficit de 0,52 gha per capita ou um déficit de 1,5 bilhão de gha. Porém, o nível de consumo desta camada da população é baixo e se toda a população tivesse o mesmo nível da pegada ecológica per capita (1,36 gha) a pegada total seria de 10,1 bilhões de gha, o que daria somente 0,83 planeta e haveria sustentabilidade ambiental. Ou seja, um nível de consumo que representasse uma pegada ecológica per capita de até 1,63 gha seria compatível com a biocapacidade de 1,63 gha de 7,5 bilhões de habitantes.
As populações de baixa renda e de renda média-baixa, num total de 3,7 bilhões de habitantes, com pegada ecológica per capita abaixo da biocapacidade global per capita (1,63 gha) vivem dentro da sustentabilidade ambiental. Mas são pessoas que possuem muitas carências materiais e não possuem vidas sustentáveis em termos sociais.
Já as pessoas de renda média-alta e renda alta possuem melhor sustentabilidade social, mas não ambiental. A população de renda média-alta, constituída de 3,4 bilhões de pessoas em 2016, tinha uma pegada ecológica per capita de 3,41 gha e uma biocapacidade per capita de 2,26 gha. Portanto, havia um déficit de 1,15 gha per capita ou um déficit de 3,1 bilhões de gha. Se toda a população tivesse o mesmo nível da pegada ecológica per capita (3,41 gha) a pegada total seria de 25,5 bilhões de gha, o que daria 2,09 planetas e não haveria sustentabilidade ambiental. Com uma pegada ecológica de 3,41 gha só haveria sustentabilidade na Terra se a população global fosse de 3,57 bilhões de habitantes em 2016. Isto é, para haver sustentabilidade em um quadro de consumo per capita mais alto seria preciso haver um volume populacional menor.
Entre a população de alta renda, constituída de 1,13 bilhão de habitantes em 2016, a pegada ecológica per capita era de 5,97 gha e a biocapacidade per capita era de 2,26 gha. Portanto, havia um déficit de 3,12 gha per capita ou um déficit de 3,6 bilhões de gha. Se toda a população tivesse o mesmo nível da pegada ecológica per capita (3,41 gha) a pegada total seria de 44,6 bilhões de gha, o que daria 3,7 planetas e não haveria o mínimo de sustentabilidade ambiental. Com uma pegada ecológica de 5,97 gha só haveria sustentabilidade na Terra se a população global fosse de 2 bilhões de habitantes em 2016.
Sem dúvida os ricos consumem muito e possuem alto impacto ambiental. Porém, mesmo se eliminássemos o 1,13 bilhão de habitantes de alta renda – com uma pegada ecológica total de 6,7 bilhões de gha em 2016 – o mundo continuaria com déficit ambiental, pois o restante dos 6,4 bilhões de habitantes teriam uma pegada ecológica total de 13,9 bilhões de gha, superior aos 12,2 bilhões de gha da Biocapacidade total do Planeta.
Desta forma, o quadro ambiental do mundo é mais grave do que simplesmente zerar o consumo dos ricos, ou simplesmente acusar o capitalismo sem considerar que é o conjunto da população que consome. Os cerca de 6 bilhões de habitantes de renda baixa e renda média já são suficientes para colocar a Terra no caminho do colapso ecológico. Os cálculos anteriores não tiram as responsabilidades dos países desenvolvidos como os maiores poluidores per capitas do Planeta. Apenas mostram a real dimensão dos problemas causados pela interação entre consumo e população.
É compreensível que as populações dos países pobres aspirem níveis mais elevados de desenvolvimento e consumo. Todavia, reproduzir o modelo dos países ricos e poluidores seria um desastre total para o meio ambiente, com efeito bumerangue sobre a própria humanidade. A luta por mais renda, educação, saúde, moradia, transporte, acesso à informação, lazer, etc., é justa. Porém, o aumento da pegada ecológica per capita só é viável com a diminuição do volume da população (ceteris paribus outros indicadores).
Hoje em dia, simplesmente distribuir a riqueza e o consumo humano não resolve os problemas ambientais globais. O consumo médio da população mundial já ultrapassou os níveis de sustentabilidade ambiental. Se a pegada ecológica de 2,75 gha de 2016 for completamente bem distribuída e todos os habitantes da Terra conseguirem um padrão médio e decente de consumo, mesmo assim haveria déficit ambiental com o atual número de habitantes. Para uma pegada ecológica per capita de 2,75 gha só haveria sustentabilidade ambiental com 4,4 bilhões de pessoas. Se a população for de 7,5 bilhões de habitantes então a pegada ecológica per capita tem que cair para 1,6 gha. Uma alternativa é ter uma população de 6 bilhões com pegada ecológica per capita de 2 gha.
Ou seja, no momento atual em que a humanidade já ultrapassou os limites da resiliência do Planeta há três alternativas: 1) diminuir muito o consumo; 2) diminuir muito a população; ou 3) diminuir um pouco o consumo e um pouco a população. O fato é que o decrescimento demoeconômico é o único caminho viável para se chegar à sustentabilidade ambiental.
E o decrescimento demoeconômico precisa ocorrer quer no capitalismo ou no socialismo. Planejar o decrescimento para a sustentabilidade é a tarefa mais urgente para mitigar a crise climática e ambiental e para promover a regeneração dos ecossistemas. O que não dá é para manter o rumo atual de degradação ecológica e de emissão de gases de efeito estufa que provocam a aceleração do aquecimento global. Seguir no modelo atual é promover um ecocídio e também um suicídio, pois sem ecologia não há maneira de manter a vida na Terra.
A humanidade ultrapassou a capacidade de carga da Terra e os limites da resiliência do Planeta.
Não vai ser trocando a palavra Antropoceno por Capitaloceno que vamos resolver os problemas ecológicos ou vamos evitar a ameaça de um colapso ambiental.
ALVES, JED. A Terra teria déficit ambiental global mesmo sem os ricos, Ecodebate, 06/11/2019. Disponível aqui.
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Antropoceno é um conceito mais correto do que Capitaloceno. Artigo de José Eustáquio Diniz Alves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU