30 Novembro 2020
"Em diálogo com Eric Fromm, novo documentário aborda, além do aquecimento global, questão psíquico-política. Terá uma garota com Asperger enxergado o que não queremos ver? Que alienações nos fazem girar a máquina da loucura?", escreve Jonathan Cook, em artigo publicado por Outras Palavras, 26-11-2020. A tradução é de Simone Paz.
Erich Fromm, renomado psicólogo social judeu-alemão que foi forçado a sair de sua terra natal no início dos anos 1930, com a chegada dos nazistas ao poder, trouxe anos depois uma visão perturbadora sobre a relação entre a sociedade e os indivíduos.
Em meados da década de 1950, seu livro The Sane Society (“A sociedade sã”) sugeria que a insanidade não se referia simplesmente ao fracasso de indivíduos específicos em sua adaptação à sociedade em que viviam. Mas que, em vez disso, a própria sociedade poderia se tornar tão patológica, tão desligada de um modo de vida normal, que induziria a uma alienação profunda e a uma forma de insanidade coletiva entre seus membros. Nas sociedades ocidentais modernas, onde a automação e o consumo em massa prevalecem sobre as necessidades humanas básicas, a insanidade pode não ser uma aberração, mas a norma.
Fromm escreveu:
“O fato de milhões de pessoas dividirem os mesmos vícios não torna esses vícios virtudes; o fato de compartilharem os mesmos erros não os transforma em verdades; e o fato de milhões de pessoas terem em comum as mesmas patologias mentais, não as converte em pessoas sãs.”
Esta ideia ainda é muito desafiadora para qualquer pessoa que tenha sempre ouvido que a sanidade é definida por consenso, que abrange tudo o que o mainstream prefere, enquanto que a insanidade se aplica apenas àqueles que vivem fora desses padrões e normas. Esta é uma definição que nos diagnostica (assim como a imensa maioria), atualmente, como loucos.
Quando Fromm escreveu seu livro, a Europa estava emergindo das ruínas da Segunda Guerra Mundial. Era um momento de reconstrução, não só física e financeiramente, mas legal e emocionalmente. Instituições internacionais como as Nações Unidas tinham acabado de ser formadas para defender o direito internacional, frear a ganância e a agressividade nacionais, e assumir um novo compromisso com os direitos humanos universais.
Eram tempos de esperança e expectativas. Uma maior industrialização, estimulada pelos esforços da guerra e pela extração intensificada de combustíveis fósseis, significava que as economias começavam a crescer; nascia uma visão do Estado de Bem-estar. Uma classe tecnocrática, promovendo uma social-democracia mais generosa, passava a substituir a velha classe oligárquica.
Foi nessa conjuntura histórica que Fromm decidiu escrever um livro, onde dizia ao mundo ocidental que a maioria de nós éramos loucos.
Se isso já era evidente para Fromm em 1955, hoje, para nós, deveria ser muito mais — à medida em que autocratas bufões avançam no cenário mundial como personagens de um filme dos irmãos Marx; em que o direito internacional está sendo intencionalmente desmontado para restaurar a autoridade das nações ocidentais de invadir e saquear; e em que o mundo físico demonstra, por meio de eventos climáticos extremos, que a ciência da mudança climática (há muito ignorada) e muitas outras destruições do mundo natural causadas pelo homem não podem mais ser negadas.
No entanto, nosso compromisso com nossa insanidade parece tão forte como sempre — talvez, até mais forte. Igualando-se ao capitão do Titanic, o irreconciliável escritor liberal britânico, Sunny Hundal, deu voz memorável a essa loucura alguns anos atrás, quando escreveu em defesa do status quo catastrófico:
“Se você quiser substituir o atual sistema capitalista por outra coisa, quem vai fazer seus jeans, iPhones e cuidar do Twitter?”
À medida em que os ponteiros do relógio avançam, o objetivo urgente de cada um de nós é obter uma visão profunda e permanente de nossa própria insanidade. Não interessa se nossos vizinhos, familiares e amigos pensam como nós. O sistema ideológico em que nascemos, que nos alimentou com nossos valores e crenças com a mesma certeza que nossas mães nos alimentaram com leite, é insano. E como não podemos sair dessa bolha ideológica — porque nossas vidas dependem de nos submetermos a essa infraestrutura de insanidade — nossa loucura persiste, mesmo que nos consideremos sãos.
Nosso mundo não é um mundo do são versus a insanidade, mas do menos insano contra o mais insano.
É por essa razão que recomendo o novo documentário I Am Greta, um retrato muito íntimo de uma ativista ambiental mirim, a sueca Greta Thunberg.
Primeiro, é preciso frisar que I Am Greta não trata da emergência climática. Isso não passa de um ruído de fundo, enquanto o filme traça a jornada pessoal iniciada por essa garota de 15 anos com síndrome de Asperger, ao encenar um protesto solitário semanal do lado de fora do Parlamento sueco. Retraída e deprimida pelas implicações da pesquisa compulsiva que fez sobre o meio ambiente, ela rapidamente se viu lançada ao centro das atenções globais por suas afirmações simples e sinceras sobre o óbvio.
A estudante rejeitada e tida como louca pelos seus colegas de classe, de repente, descobre que o mundo é atraído pelas mesmas qualidades que antes a tornavam esquisita: sua quietude, seu foco, sua recusa em errar ou em ser impressionada.
As cenas de seu pai tentando desesperadamente fazê-la cumprir uma pausa e comer alguma coisa, mesmo que apenas uma banana, enquanto ela entra em mais uma marcha climática, ou de ela se enrolando feito uma bolinha em sua cama, precisando ficar em silêncio, após uma discussão com seu pai ao longo do tempo em que elaborava outro discurso para governantes mundiais, pode acalmar aqueles que têm certeza de que Greta é simplesmente uma menina ingênua sobre as indústrias de combustíveis fósseis — ou, mais provavelmente, não.
Mas os debates infrutíferos sobre se Thunberg está sendo ou não utilizada são irrelevantes para este filme. Não é nesse ponto que reside sua força.
Durante 90 minutos, vivemos no lugar de Greta Thunberg, vemos o mundo através de seus olhos estranhos. Ao longo de 90 minutos, temos permissão para viver dentro da cabeça de alguém tão são que podemos compreender brevemente — se estivermos abertos para o seu mundo — o quão louco cada um de nós realmente é. Nós nos vemos de fora, através da visão de alguém cujo Asperger permitiu que ela “enxergasse através da estática”, como ela generosamente chama nossos delírios. Ela é o pequeno e silencioso centro da mais simples consciência, ilhada em um mar de insanidade.
Assistindo Thunberg vagar sozinha — nunca impressionada, mas muitas vezes horrorizada — pelos castelos e palácios dos governantes mundiais, pelos fóruns econômicos da elite tecnocrática global, pelas ruas onde ela é aclamada, a variada natureza de nossa insanidade coletiva aparece cada vez mais nitidamente em foco.
Quatro formas de insanidade que o mundo adulto adota em resposta a Thunberg, a criança sábia, estão à mostra. Em suas várias formas, essa insanidade deriva de um medo ainda inexplorado.
A primeira delas — e mais previsível — é exemplificada pela direita, que a insulta raivosamente, por colocar em risco o sistema ideológico do capitalismo que eles reverenciam como sua nova religião em um mundo sem Deus. Ela é uma apóstata, que provoca suas maldições e insultos.
O segundo grupo é formado por governantes mundiais liberais e pela classe tecnocrática que dirige nossas instituições globais. Seu trabalho, pelo qual são tão ricamente recompensados, é elogiar da boca para fora, inteiramente de má-fé, as causas que Thunberg defende de verdade. Eles deveriam estar administrando o planeta para as gerações futuras e, portanto, investem fortemente em recrutá-la para o seu lado, não apenas para dissipar a energia que ela mobiliza, que temem que possa rapidamente se voltar contra eles.
Uma das primeiras cenas do filme é o encontro de Thunberg com o presidente francês Emmanuel Macron, logo depois que ela começou a aparecer nas manchetes.
De antemão, o conselheiro de Macron tenta bombear Thunberg para obter informações sobre outros líderes mundiais que ela possa ter conhecido. Fica evidente sua inquietação diante da resposta de Greta de que aquele é o primeiro convite que recebeu desse tipo. Como a própria Thunberg parece muito consciente quando eles finalmente se encontram, Macron está lá simplesmente para a sessão de fotos. Tentando ter uma conversa fútil com alguém incapaz de tais irrelevâncias, Macron não pode deixar de erguer uma sobrancelha em desconforto e, possivelmente, uma leve reprovação, já que Thunberg admite que os relatos da mídia sobre ela viajar de trem para todos os lugares estão certos.
O terceiro grupo é o dos adultos que se aglomeram nas ruas para uma selfie com Thunberg, ou gritam elogios, carregando-a sobre seus ombros como um fardo pesado — que ela se recusa a aceitar. Cada vez que alguém em uma marcha diz que ela é especial, corajosa ou uma heroína, ela imediatamente retruca dizendo que eles também são corajosos. Não é sua responsabilidade reparar o clima para o resto de nós, e pensar o contrário é uma forma de infantilismo.
O quarto grupo está totalmente ausente do filme, mas não das respostas ao mesmo, nem a ela. São os “cinicamente insanos”, aqueles que querem atribuir a Thunberg um fardo de um tipo diferente. Cientes da maneira como temos sido manipulados por nossos políticos e mídia, e pelas corporações que agora controlam a ambos, eles estão comprometidos com um tipo diferente de religião — que não pode ver nada de bom em lugar nenhum. Tudo está poluído e sujo. Como eles perderam sua própria inocência, toda inocência deve ser assassinada.
Esta é uma forma de insanidade não diferente dos outros grupos. Ela nega que tudo possa ser bom. Ela se recusa a ouvir qualquer coisa e qualquer pessoa. Ela nega que a sanidade seja possível. É sua própria forma de autismo — trancada em um mundo pessoal do qual não há como escapar — que, paradoxalmente, a própria Thunberg conseguiu superar por meio de sua profunda conexão com o mundo natural.
Enquanto pudermos classificar Greta Thunberg como uma pessoa que sofre de Asperger, não precisamos parar para pensar se somos realmente os loucos.
Há muito tempo, os economistas nos alertaram sobre as bolhas financeiras: uma expressão da insanidade dos investidores quando buscam o lucro sem levar em conta as forças do mundo real. Esses investidores são finalmente forçados a enfrentar a realidade — e a dor que ela traz — quando a bolha estoura. Como sempre acontece.
Vivemos uma bolha ideológica — que irá estourar, assim como aconteceu com a financeira. Thunberg é aquela voz da sanidade, mansa e delicada, de fora da bolha. Podemos ouvi-la, sem medo, sem censura, sem adulação, sem cinismo. Ou podemos continuar com nossos jogos insanos até a bolha explodir.
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Greta Thunberg e o insano mundo dos normais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU