09 Outubro 2020
A mudança climática não é apenas um assunto ambiental, de um planeta que aquece. Também é uma questão da ação e percepção humanas, e abordar o aspecto social parece ser cada vez mais relevante para reconhecer e tratar o problema. Isto se demonstra pelo fato do Conselho Superior de Investigações Científicas – CSIC ter criado, este ano, o primeiro campo dedicado a analisar as “transformações antropológicas da crise climática”, que acaba de ser atribuído ao antropólogo social Emilio Santiago Muíño (Ferrol, Espanha, 1984).
No novo posto, a tarefa do pesquisador galego será a de aprofundar a complexidade social e cultural de fenômenos relacionados a esta crise ecológica, algo que avança e pode abarcar “desde um conflito por uma mina de lítio em Cáceres [Espanha] às assembleias cidadãs pelo clima, o movimento dos coletes amarelos, a atividade lobista ou aspectos da vida cotidiana como os hábitos de transporte dos cidadãos”.
A entrevista é de Marta Montojo, publicada por El Diario, 07-10-2020. A tradução é do Cepat.
Com seu novo posto, inicia-se no CSIC uma linha de pesquisa de antropologia climática. O que é a antropologia climática?
Poderíamos chamar de antropologia climática a atenção que a antropologia social e cultural está dando ao problema da crise climática e as transformações que impõe. É um campo de trabalho acadêmico, com suas publicações e seus projetos de pesquisa. Mas também é um enfoque científico de vital importância para a deliberação cidadã sobre o que é a crise climática, como nos afeta e o que podemos fazer, prioritariamente para a mitigar, e como plano B para nos adaptar às suas consequências.
Por que isto é importante para a ciência da mudança climática ou a ação climática?
Sem as ciências sociais, a crise climática é simplesmente incompreensível. O aquecimento global não é um problema atmosférico. É um problema social e cultural que se manifesta “atmosfericamente”. É originado por determinado tipo de economia concreta, baseada no crescimento perpétuo e a queima de combustíveis fósseis. Também por determinada cosmovisão, algumas relações de propriedade específica, alguns costumes, alguns imaginários sobre o que é a tecnologia e a vida boa, e algumas pautas de consumo insustentáveis.
É administrado pela a política, com suas diferentes ideologias, suas lutas de interesses. E afeta de modo muito desigual em função de você ser rico ou pobre, de um país do Norte ou do Sul, homem ou mulher, de um grupo cultural dominante ou periférico.
De fato, nem todos os povos do mundo concebem a relação com a natureza da mesma maneira. Essa palavra, do modo como a empregamos, carece de sentido para uma parte da humanidade. Não é uma entidade separada da sociedade que possamos explorar, mas parte da comunidade em que se vive.
Por tudo isso, não se pode pensar a insustentabilidade como um problema técnico, de engenharia. Os dados estão aí, mas a crise climática é algo muito mais complexo: é um problema social, cultural e político. E a antropologia, como ciência social que estuda como as sociedades apresentam modos muito diferentes de interpretar o mundo e vivê-lo em suas práticas cotidianas, tem uma contribuição imprescindível. Sem a antropologia nossa compreensão da crise climática ficará capenga. No puramente científico, e também no político.
No científico, por exemplo, não se pode desconectar a crise climática do capitalismo. Mas não somente como sistema econômico, também como projeto de civilização. No político, para apresentar outro exemplo simples, se alguém pensa que uma iniciativa de mitigação climática poderá funcionar de cima para baixo, sem levar em conta qual é o seu impacto do ponto de vista das comunidades onde será implementado, no melhor dos casos fracassará. E no pior, terá êxito à custa de impor um colonialismo climático.
As mobilizações da juventude pelo clima são o movimento pelos direitos civis do século XXI?
Todas as sociedades humanas são conflitivas. Evoluem e se transformam, mudam e se adaptam, por meio de conflitos, às vezes para o bem e às vezes para o mal. Quando Marx disse que a história é a história da luta de classes, captou muito bem a ideia, ainda que de modo um pouco reduzido, pois nem sempre os grupos humanos se enfrentam na forma de classe contra classe. E, sem dúvida, as mobilizações dos jovens pelo clima, que são um fenômeno novo e esperançoso, são um conflito que pode transformar a nossa sociedade. Neste caso, para melhor.
Poderíamos relacionar esta luta com a luta pelos direitos civis, sem dúvida. Mas também com muitas outras lutas modernas. É claro, com a luta ambientalista clássica, em relação a qual os jovens pelo clima significam uma nova onda. Mas também de alguma forma com a luta do movimento operário, as lutas antirracistas e decolonias, a luta feminista...
Todas apresentam uma fórmula parecida: aqueles que sofrem, aqueles que perdem por carência na ordem social e política estabelecida, rebelam-se. E conseguem articular uma identidade de luta comum, marcando um horizonte de mudanças desejáveis, e entrando na disputa pelo rumo que a sociedade deve tomar. Além disso, as conexões e a herança recebidas pelos movimentos sociais mais antigos são evidentes. A transformação social sempre é uma corrida de revezamentos. Hoje, são os jovens que a assumem pelo clima.
O que esta “nova onda” de ativistas climáticos está fazendo diferente?
As lutas dos jovens pelo clima apresentam uma novidade fascinante. Estão colocando sobre a mesa uma demanda imprescindível, mas inédita: a democracia geracional. Estão dizendo aos de 50 e 60 anos que não possuem o direito de decidir sobre suas vidas, sem levá-los em conta, porque as piores consequências de não se fazer nada contra a emergência climática serão pagas pelas e pelos jovens, não pelos altos funcionários, nem os altos executivos que hoje monopolizam decisões climáticas que, além disso, serão irreversíveis.
Os avanços democráticos são sempre novos direitos conquistados. E a juventude pelo clima está abrindo espaço para novos tipos de direitos que a crise ecológica colocará na linha de frente de disputa: a democracia geracional, o direito ao futuro, que estamos perdendo. Nada garante a vitória nesse combate, na história não há leis, nem certezas. Mas, sim, o certo é que se conseguirmos evitar uma mudança climática catastrófica, nas próximas décadas, terá sido graças à sua irrupção rebelde, desobediente, pela sua bela maneira de dizer: por aqui, não.
Qual é a sua leitura a respeito do momento em que estamos agora em relação à ação climática, também no plano institucional?
Por um lado, estamos tornando a mudança climática um ponto forte na agenda política oficial da Europa. Isso tem algumas implicações muito amplas: desde a constatação de que está em trâmite uma lei de mudança climática - enfim -, até o fato que um organismo de pesquisa como o CSIC considere que a mudança climática é uma linha prioritária de pesquisa, a médio e longo prazo.
A mudança climática se tornou um problema social oficial e a sociedade está orientando suas instituições a buscar uma solução. Mas isto não significa que a solução que será dada esteja apontando para a direção correta, aos meios corretos e ao ritmo correto. Sem dúvida, é uma primeira vitória, mas não é suficiente. O resultado dependerá agora de como estas ações, estas políticas públicas e estas linhas de inovação se desenvolverão.
O que está claro é que a mudança climática já é um tema a respeito do qual nenhum partido político pode se esquivar e que estará nas decisões de orçamentos públicos, mas a pandemia gerou uma situação social complexa, porque estamos em um momento muito complicado para enfrentar o lado difícil da emergência climática.
É conjunturalmente um momento ruim para a luta climática, entre outras coisas porque a mobilização está limitada pelas próprias características do confinamento e das restrições para proteger a saúde pública, mas também porque os imaginários sociais estão ainda muito impactados pela dor e o drama que a pandemia significou. Enquanto não sairmos do assunto pandemia, será difícil que a mudança climática volte a estar no centro da preocupação coletiva do modo como, por exemplo, esteve em 2019. O que é paradoxal porque não há melhor forma de recompor nossas economias e nossos países do que fazendo da transição ecológica uma coluna vertebral da reconstrução.
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“Sem as ciências sociais, a crise climática é simplesmente incompreensível”. Entrevista com Emilio Santiago Muíño - Instituto Humanitas Unisinos - IHU