26 Novembro 2020
Silvia Ribeiro é diretora para América Latina do Grupo de Ação sobre Erosão, Tecnologia e Concentração (Grupo ETC), organização com status consultivo junto ao Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas.
Nascida no Uruguai, vive há mais de duas décadas no México, onde realiza um trabalho reconhecido internacionalmente como ativista social e ambiental.
A entrevista é de Santiago Liaudat, com a colaboração de Candela Reinares, publicada na revista argentina CTyP e reproduzida por Rebelión, 25-11-2020. A tradução é do Cepat.
Você disse que existe uma relação entre o sistema agroalimentar industrial e o surgimento e expansão de doenças, entre elas, a pandemia de coronavírus. Poderia nos explicar como é esta relação?
O sistema alimentar agroindustrial, não o sistema alimentar em geral, mas o agroindustrial, tem um papel central na geração de pandemias, sob vários pontos de vista. Se tomamos os dados oficiais da Organização Mundial da Saúde (OMS), 72% das causas de morte da população mundial são doenças não transmissíveis. E, desse conjunto, mais ou menos a metade delas estão diretamente relacionadas ao sistema alimentar agroindustrial. Por exemplo, as doenças cardiovasculares, que são a causa número um de morte em quase todos os países, estão muito relacionadas ao excesso de colesterol, e, portanto, à forma de alimentação.
Mas, além disso, entre as seguintes principais causas de morte encontraremos a diabetes, as doenças renais, vários tipos de câncer associados ao aparelho digestivo, como o câncer de cólon ou de estômago. Precisamos mencionar também a epidemia mundial de obesidade, que está na base de muitas das doenças mencionadas anteriormente.
Já faz tempo que, segundo a Organização das Nações Unidas, há mais obesos que famintos. Tudo isso está relacionado ao sistema agroindustrial, à produção e consumo de alimentos ultraprocessados, com baixo nível nutritivo e à apropriação da cadeia agroindustrial por empresas que se preocupam mais em manter uma “longa vida” dos alimentos nas prateleiras, ou o atrativo estético dos produtos, antes que com a qualidade nutritiva em si.
Por último, muitas doenças pulmonares estão relacionadas à atividade agroindustrial. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês) destaca que, na população rural, sobretudo entre os trabalhadores, o uso de agrotóxicos é uma das principais causas das doenças respiratórias.
Por tudo o que foi dito, e ainda que não se possa extrapolar linearmente, afirmamos que parte importante das doenças não transmissíveis estão relacionadas ao sistema alimentar agroindustrial.
Por outro lado, temos as mortes por doenças infecciosas, as transmissíveis. Neste momento, como vivemos em uma pandemia, possivelmente seja gerada a falsa imagem de que estas doenças são a maior causa de morte. Mas representam 28%. Pois bem, desse número, segundo a OMS, na última década, 75% têm a ver com doenças zoonóticas. E dentro das zoonóticas, a maioria são doenças relacionadas com a agricultura e a pecuária industrial, como a gripe aviária ou a gripe suína.
Inclusive doenças derivadas de animais silvestres, como a COVID-19, tem uma conexão com o sistema alimentar agroindustrial. Por um lado, em razão dos vírus destes animais entrarem em contato com as “grandes fábricas de pandemia”, que são as instalações de criação de porcos, frangos e bois em grande escala e em confinamento extremo. Grandes quantidades de animais, com sistemas imunológicos muito fragilizados, em que estão sendo geradas, a todo momento, novas cepas de vírus, até que alguma se torne contagiosa para os seres humanos. E tem, além disso, um grande potencial de disseminação internacional, porque são parte de cadeias globais de produção e comercialização.
Por outro lado, os micro-organismos potencialmente infecciosos para os seres humanos, que vivem nos animais silvestres, estão em equilíbrio nessas populações. Mas a destruição de ecossistemas rompe esses equilíbrios naturais. E qual é o principal fator de devastação dos ecossistemas? O desmatamento relacionado à expansão da fronteira agrícola. Segundo a FAO, na América Latina, de 70% a 80% do desmatamento está relacionado à expansão da fronteira agropecuária, tanto para pastagens como para plantações. E, destas últimas, quase 60% são destinadas a rações para animais em criadouros industriais.
Por tudo isto, as epidemias estão diretamente relacionadas a algum dos fatores dos sistemas alimentar-agroindustriais. O que está documentado, entre outros, por Rob Wallace em seu livro “Grandes granjas, grandes gripes”. Conectar todos estes pontos é o que faz com que, apesar da COVID-19 vir de um morcego, o fator principal continua sendo o sistema alimentar agroindustrial.
Como analisa a fusão corporativa de empresas agroalimentares com companhias farmacêuticas, químicas e biotecnológicas? Qual é a relação entre o sistema agroalimentar industrial e o controle sobre estas áreas científicas e tecnológicas?
A indústria química, a farmacêutica e a agropecuária industrial estão historicamente entrelaçadas, através dos agroquímicos e produtos farmacológicos. Nas últimas décadas, soma-se a estas indústrias tradicionais a biotecnologia, com as sementes transgênicas e outros produtos. Muitos dos novos empreendimentos biotecnológicos estavam vinculados ao setor farmacêutico e ao agronegócio ao mesmo tempo, ou derivam diretamente do farmacêutico. Ao passo que outras pequenas empresas biotecnológicas, as conhecidas como “empresas startups”, acabam sendo absorvidas pelas grandes multinacionais. Ou seja, estes quatro setores, químico, farmacêutico, agroindustrial e biotecnológico são da mesma matriz.
Ultimamente, com a compra da Monsanto pela Bayer, ficou muito claro esta relação entre setores, porque todo mundo sabe quem é a Bayer e quem é a Monsanto. Mas sempre estiveram entrelaçadas, só que se juntam ou se separam conforme convém ao mercado no momento.
Por exemplo, há vinte ou trinta anos, ocorreu uma separação entre as farmacêuticas e as empresas de sementes transgênicas, porque estas foram muito questionadas e combatidas, em nível mundial. Então, as farmacêuticas quiseram cuidar dessa má reputação, razão pela qual a separação foi de tipo comercial. Nos últimos tempos, ao contrário, voltaram a se juntar no marco de uma rodada de fusões das empresas de agronegócios.
Vou dar um exemplo que apresentamos em um relatório do Grupo ETC. Neste momento, quatro empresas transnacionais têm cerca de 60% do mercado global de sementes e agrotóxicos. A primeira é a Bayer, uma farmacêutica que acaba de comprar a Monsanto. A segunda é a Corteva, que provém da Dupont e da Dow, companhias que também possuem o seu ramo farmacêutico. Depois vem a Basf, que também está no setor veterinário e farmacêutico, além no de sementes e agroquímicos. Por fim, a Syngenta, origem direta na indústria farmacêutica, já que é uma divisão agrícola que se forma com a fusão da Novartis e AstraZeneca.
Este exemplo do setor das sementes é muito interessante para dar um panorama dos efeitos da concentração global. Se voltarmos quarenta anos, existiam sete mil empresas de semente no mundo, e nenhuma chegava a 1% do mercado. Então, as empresas fabricantes de produtos químicos, que por sua vez eram farmacêuticas, começam a comprar as empresas de semente. Vão desaparecendo as empresas nacionais, que tinham majoritariamente uma origem familiar. Por que compraram todas as empresas de sementes? Para criar uma dependência a seus produtos químicos. A expressão máxima disso são as sementes transgênicas, que requerem um produto agroquímico em especial que é comercializado pela mesma empresa que vende a semente. Assim fecham o círculo.
Qual é o papel dos direitos de propriedade intelectual na dinâmica destas companhias globais? A quem beneficia a expansão da propriedade intelectual e que função tem no capitalismo globalizado?
A propriedade intelectual é fundamental no domínio de mercado e no processo de fusões corporativas. As grandes empresas farmacêuticas e biotecnológicas, que eram praticamente da mesma matriz, são as que lutaram para impor sistemas de propriedade intelectual sobre os seres vivos. Pressionaram sobre o que era o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês), que depois, a partir de 1995, se tornou a Organização Mundial do Comércio.
Lá pelos anos 1980 e inícios dos anos 1990, influenciaram nas rodadas do GATT para impor um sistema de propriedade intelectual que validasse que suas sementes fossem patenteadas. Em termos históricos, este processo de privatização é muito recente. A agricultura tem milhões de anos. E somente há poucas décadas as sementes começaram a ser registradas com patentes. Antes disso, até inícios dos anos 1980, eram de livre circulação. O número de sementes com registros ou patenteadas era muito baixo, na ordem de 5%.
Neste processo, há dois marcos fundamentais ocorridos nos Estados Unidos, no ano 1980. Em primeiro lugar, a sentença da Suprema Corte dos Estados Unidos, no julgamento Diamond vs. Chakrabarty. Ali, permite-se o patenteamento sobre um micróbio transgênico que se afirmava que era capaz de comer petróleo. Esta famosa sentença abre o antecedente jurídico para as mudanças legislativas que viriam depois, permitindo patentes sobre seres vivos.
Em segundo lugar, a sanção da Lei Bayh-Dole, que permite o patenteamento dos processos e produtos obtidos em universidades e centros de pesquisa públicos. Até então, compreendia-se que se esses estudos eram financiados com fundos públicos, deveriam ser bens públicos. É uma mudança de concepção muito perversa. As pesquisas públicas passam a ter fins lucrativos e deixam de ser abertas. O que afeta, é claro, a própria produção de conhecimento, que antes funcionava melhor que agora.
Finalmente, quando se instaura a propriedade intelectual sobre as sementes, ficam estabelecidos dois mecanismos. Por um lado, as patentes sobre seres vivos, respaldadas pelo Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (ADPIC), da Organização Mundial do Comércio. Por outro, os certificados de obtentor da União para a Proteção das Obtenções Vegetais (UPOV). Trata-se de um organismo que já existia antes, mas, em 1991, é sancionada uma nova normativa conhecida como UPOV91, que é muito mais restritiva que as anteriores. Estes dois mecanismos de propriedade intelectual tiveram um impacto muito nocivo em termos de privatização, tanto dos conhecimentos, como das sementes.
Em definitivo, tanto as fusões corporativas, como a restrição ao acesso a sementes e tecnologia, por meio da propriedade intelectual, servem às empresas transnacionais para exercer um controle de mercado.
Isto se relaciona à crescente pressão sobre cientistas, tecnólogos e instituições públicas para patentear conhecimentos?
Efetivamente. Tudo o que foi dito se traduz em uma pressão sobre pesquisadores do âmbito público, que começaram a ver que a qualidade de sua atividade se media pela quantidade de patentes. É uma aberração avaliar os cientistas pela quantidade de patentes! Devemos pensar sistemas de reconhecimento que não impliquem patenteamentos.
O sistema de patentes é funcional aos países do norte global e às empresas transnacionais. Os dados da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, na sigla em inglês) destacam que mais de 90% das patentes registradas no mundo são de países do norte global e mais de 75% são de empresas transnacionais. Está claro que é um sistema que favorece estes atores.
Além disso, as patentes não se vinculam mais diretamente à inovação. Registrar uma patente é parte das estratégias das grandes empresas para obstruir que outra companhia pesquise o mesmo ou impedir que entre em um mercado. De fato, a maioria das patentes nunca são aplicadas.
Por tudo isto, no Grupo ETC, pensamos que todo o sistema de propriedade intelectual não é um sistema de proteção, mas de privatização. Portanto, somos contra todo tipo de propriedade intelectual. Por isso, os materiais que geramos são de livre acesso. Acreditamos que é preciso buscar formas não privatizadas de reconhecimento das pesquisas e desenvolvimentos.
A publicidade destas grandes corporações as apresenta como a base da alimentação mundial. Este discurso tem permeado fortemente gestores públicos, meios de comunicação, profissionais e técnicos agrícolas, universidades e produtores rurais. O que há de correto nessa afirmação?
Esse é um dos muitos mitos com os quais se sustenta o sistema alimentar agroindustrial. Dizem: “bom, pode ter alguns defeitos, tem agrotóxicos, é venenoso, está ultraprocessado, mas não podemos sobreviver sem isso, porque produz a maior parte dos alimentos”. Isso é uma mentira!
Desenvolvemos um material de referência em que realizamos uma comparação entre a cadeia agroindustrial e as redes de produção camponesa. E o que acontece é que as cadeias alimentares agroindustriais produzem efetivamente uma grande quantidade de grãos. Mas, se analisamos país por país, em quase todo o mundo, as hortaliças são produzidas na média e, sobretudo, na pequena agricultura. O mesmo acontece com a produção de leite.
A grande produção agrícola produz principalmente uma grande quantidade de cereais para a ração, a maioria destinado à criação industrial de animais. Além de outros cultivos de exportação, que não são a base da alimentação, como o café e o açúcar. A agricultura industrial, além disso, tem um enorme grau de desperdício. Segundo dados da FAO, da semente aos lares, ocorre até 50% de desperdício.
Por último, a alimentação baseada nesta forma de produção gera nas pessoas doenças como obesidade, colesterol, hipertensão, doenças cardiovasculares. Ou seja, na realidade, não é alimentação, mas excesso que não consideramos que deva ser chamado de alimentação, porque não nutre e adoece.
Então, caso se faça o cálculo do impacto que tem tudo isto, constatamos que a cadeia alimentar agroindustrial somente alimenta, no sentido de nutrição saudável, o equivalente a 30% da população mundial. E para isso usam mais de 75% da terra agrícola, mais de 80% da água agrícola e mais de 90% de todos os combustíveis que são utilizados na agricultura. Usam a grande maioria dos recursos agrícolas, mas produzem um enorme desperdício e o que não é desperdício é excesso, devido ao vício produzido pelos alimentos processados industrialmente e a doença.
Do outro lado, estão as redes campesinas que, com muito menos recursos, alimentam 70% restante da população. Com estes dados cai outro mito que ressalta que a produção agroindustrial é eficiente e a pequena produção, não. É totalmente o contrário. O problema é o que e como se mede.
Também há um mito de tipo malthusiano que diz: “a população cresce a tal ou qual velocidade, portanto, a expansão da produção de alimentos deve acompanhar essa taxa de crescimento para que não haja fome”. Com esse discurso, legitimam o desmatamento, a monocultura...
É um discurso gravemente preconceituoso. Quando se fala de qual é o problema da população, devemos partir da consideração de que a maior parte dos recursos naturais no mundo é consumido por menos de 10% da população mundial. Então, falar em termos de população, em abstrato, é uma falácia.
Em relação à alimentação, neste momento, são produzidos mais do que o dobro dos cereais que são necessários para alimentar toda a população... em 2050! A razão pela qual não é suficiente é porque a maior parte é destinada para alimentar porcos, frangos e bois em confinamento. O desperdício é enorme. Na produção de um porco industrial, por exemplo, calcula-se que chega como alimento às pessoas apenas de 5% a 10% da energia investida.
Em termos de uso de energia, a produção industrial de carne é muito ineficiente. Esclareço que não me oponho ao consumo de carne. Mas é preciso ver o modo como é produzida. Porque é evidente que a alimentação com base em plantas é muito mais eficiente do ponto de vista energético, sobretudo quando se produz localmente.
Para entender isto, é importante levar em conta o chamado “efeito diluição”. Porque às vezes se acredita que mais quantidade sempre é melhor. Por exemplo, pode ocorrer que a agricultura agroindustrial obtenha o dobro de toneladas por hectare frente a outras formas de produção orgânicas, camponesas, locais. Mas quando analisamos o valor nutricional dos alimentos, quando avaliamos o tempo de viagem, o gasto energético, ocorre que estas últimas são muito mais nutritivas e mais eficientes que os agronegócios. Nas monoculturas são produzidas mais plantas de um só cultivo por unidade de superfície, mas os nutrientes do solo se diluem, por isso se chama “efeito diluição”. Por isso, é muito importante o que dizia antes, ver como e o que se mede.
Por exemplo, nos sítios do México, a pequena agricultura não cultiva uma só coisa, mas existe diversidade. Então, quando se faz a comparação entre a grande e a pequena produção, se mede só o milho, para mostrar a diferença em quantidade de produto obtido. Mas, na realidade, na produção camponesa temos sistemas integrados de milho com feijão, com abóbora, com pequenas hortaliças.
Caso mudemos a visão e olhemos para a integralidade, vemos que a produtividade das pequenas propriedades é muito maior que a dos agronegócios. Não se deve olhar só para o volume de um determinado cultivo, mas a produtividade total do terreno. Há um trabalho de Peter Rosset, entre outros, que fornece evidências substantivas nesse sentido.
Sem dúvidas, a agroecologia é uma alternativa ambientalmente sustentável ao modelo de agronegócios com base química-industrial. Mas... pode ser também uma opção em termos econômicos para países como a Argentina, altamente dependentes do ingresso de dinheiro por exportações de grãos?
Sim, a resposta é definitivamente sim. Neste momento, na Argentina, após três décadas de agronegócio, há 40% de pobres. Então, de que desenvolvimento estamos falando? A quem enriqueceu essa entrada de dinheiro? Se só olhamos números agregados como a quantidade de dinheiro que entra no país ou os dólares per capita, não estamos dando conta do que realmente ocorre. Esse tipo de produção em grande escala, uniformizado, é realmente argentino?
Se olhamos para dentro da produção agropecuária argentina, o quanto é nacional, veremos que a maior parte é controlada por empresas globais transnacionais, em cada um dos setores da cadeia. Ou seja, da semente à distribuição, o armazenamento, o processamento, a comercialização. O que é que a Argentina põe? A terra, o trabalho mal remunerado, os povos fumigados, as doenças, a erosão, a contaminação e... para quem fica o dinheiro da exportação?
É claro que algo disso paga impostos. A Argentina é um dos países onde se paga impostos pela exportação agrícola, mas na maioria dos outros países de agricultura industrial mal são pagos ou diretamente não pagam impostos. É um mecanismo sumamente perverso. Uma roda que faz com que as transnacionais ganhem muito, mas que chegue pouquinho lá embaixo e que a maioria das pessoas sejam pobres. Tudo com um enorme custo em matéria de devastação ambiental, doenças e contaminação por agrotóxicos.
Como disse Walter Pengue, a Argentina sofreu, nas últimas décadas, uma reforma agrária ao avesso, com uma enorme redução de estabelecimentos agropecuários, despovoamento do campo, etc. Toda essa gente foi parar nos cordões de pobreza das grandes cidades.
A Argentina poderia ampliar a agricultura orgânica ou agroecologia, inclusive de forma descentralizada e em pequenas parcelas, e pelas condições naturais do país, poderia ter uma produção alta e inclusive exportar. Por sua vocação agrícola, por suas características geoclimáticas e históricas, a Argentina poderia ter excedentes muito importantes para exportação. Além disso, o fato de que conjunturalmente os produtos agroecológicos estejam mais bem pagos no mercado internacional, torna-os uma opção ainda mais viável.
Mas penso que o fundamental é repensar as prioridades. A primeira coisa deveria ser produzir para uma alimentação nacional sadia e suficiente, depois ver os excedentes que podem ter uma saída no mercado internacional. É preciso apontar para um desenvolvimento endógeno que esteja baseado no bem-estar da população, tanto na alimentação como em saúde. Isso traria uma equação completamente diferente em favor da produção agroecológica. O problema é que os grandes ganhadores nacionais e transnacionais do modelo agroindustrial não o permitem.
Conhece experiências, especialmente na América Latina, em que a ciência e a tecnologia ofereçam um apoio valioso às redes campesinas e a produção popular de alimentos? O que seria possível fazer para que essa contribuição seja ainda mais substantiva e transversal em diferentes áreas científicas e tecnológicas?
Há uma contribuição histórica vinculada aos setores de extensão das faculdades de agronomia e da pesquisa agrícola pública. Há muitas demonstrações de que pode haver uma relação muito frutífera. Por exemplo, instituições públicas de pesquisa que trabalham junto com os produtores para desenvolver sementes adaptadas a certos climas, situações e necessidades. Mas tudo isto vem sofrendo um desmantelamento e privatização na América Latina, há ao menos trinta anos. Embora em alguns lugares existem lutas para que existam e conseguem sobreviver.
O que contávamos sobre as patentes é justamente uma das coisas que começa a esvaziar este tipo de relação. Porque essas sementes e variedades eram públicas, de livre circulação. Os sistemas de extensão rural também mudaram. Os agrônomos que trabalhavam junto com os camponeses ou produtores começaram a ser substituídos por vendedores das empresas. As empresas chegam diretamente até o produtor e dizem que convém usar o veneno que elas oferecem. E que, com esse produto, irá funcionar bem a semente que elas vendem.
Vou contar um exemplo que me surpreendeu e que é desconhecido. Nas cidades, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), produz-se de 15% a 20% dos alimentos. É muitíssimo! Isto desmantela outro mito do sistema alimentar agroindustrial. Em geral, pensa-se que as hortas urbanas são algo marginal, para hippies ou ambientalistas. Na realidade, em todo o mundo, as hortas urbanas, justamente pela migração que houve do campo para a cidade, produto do sistema agroindustrial, têm um papel muito importante também na alimentação. Bom... qual é a cidade do mundo com a maior agricultura urbana? Rosário, em Santa Fé, Argentina. A razão é que houve um programa antigo mediante o qual o INTA promovia a criação de agricultura urbana.
Há outros exemplos, claro. Por um lado, frente ao desmantelamento das instituições públicas, surgem muitas organizações não governamentais ou organizações independentes de pesquisa, como o Grupo ETC, que fazem um trabalho muito bom, muitas vezes, em colaboração com instituições públicas, mas sem as restrições que às vezes são impostas nesses âmbitos. Por outro lado, existe a Sociedade Científica Latino-Americana de Agroecologia (SOCLA), que reúne muita gente trabalhando de diferentes universidades e instituições cientificas e onde há muitos exemplos de apoio entre tais tipos de pesquisadores críticos e associações de pequenos produtores e camponeses.
Outro exemplo é a União de Cientistas Comprometidos com a Sociedade e a Natureza da América Latina (UCCSNAL), uma rede de pesquisadores que, inspirados em Andrés Carrasco, consideram que a ciência pode e deve contribuir com conhecimentos necessários para a maior parte da população.
Um último exemplo é a contribuição dada por profissionais das Universidades Nacionais de Rosário e La Plata para apresentar em números os impactos da agricultura industrial nas províncias argentinas em que a produção de soja transgênica é mais intensa. Trata-se de uma contribuição extraordinariamente importante! São estudos e iniciativas, como os acampamentos sanitários, que colaboram para que as pessoas saibam que o que está acontecendo com elas não é um problema individual ou familiar, ou que tiveram má sorte porque tiveram câncer, mas é consequência de um modelo de produção. Isso seria impossível se de fazer sem a colaboração destes cientistas e pesquisadores críticos que estão trabalhando junto com as populações afetadas. E também devemos nomear as ciências sociais, que nos ajudam a entender as dinâmicas que estamos descrevendo.
A Ciência e a Tecnologia estão na base das modernas técnicas de exploração e manipulação da natureza. Mas também nos permitem conhecer, prever e agir. São parte ao mesmo tempo do problema e da solução da crise ambiental? Como seria possível gerar uma maior responsabilidade social, ambiental e política no setor de Ciência e Tecnologia?
Por tudo o que são as pressões empresariais, que também se manifestam através de políticas públicas sobre a pesquisa, é fundamental o pensamento crítico através de organizações como a UCCSNAL e a Rede PLACTS. Ou seja, que os próprios pesquisadores e as pessoas que trabalham na academia pensem criticamente qual é o papel da ciência e da tecnologia. Porque é fácil pensar que a ciência e a tecnologia estão somente a serviço das transnacionais e, na realidade, na maioria dos casos, não é assim ou não é o que se pretende. Mas é necessário um pensamento crítico de dentro das instituições para conceber um tipo de pesquisa e de resultados completamente diferentes, que tenham a ver com o bem-estar da maioria da sociedade. Algo tão simples como isso, nesses dias, nem sequer se leva em conta.
A esse respeito, gostaria de mencionar algo que iniciamos a partir do Grupo ETC, mas com muitas outras organizações. Chama-se Rede de Avaliação Social das Tecnologias na América Latina (Rede TECLA). Ainda que seja modesto, porque praticamente não temos fundos e se baseia na colaboração das instituições e nas organizações em que estamos, é um enfoque que tem a ver com como podemos criar uma plataforma de análise que integre perspectivas, visões e necessidades que vão do acadêmico e o técnico, com cientistas e tecnólogos de diferentes disciplinas, à visão das organizações camponesas, ambientalistas, de mulheres, de indígenas, de trabalhadores. Não vemos tanto esta rede como uma organização, mas como uma plataforma, é um lugar onde buscamos promover essa confluência.
Outro exemplo que gostaria de mencionar é algo muito interessante ocorrido no México. A partir de um estudo realizado pelo atual governo desse país, descobriu-se que o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CONACYT) contribuía com milhares de milhões de pesos... para empresas transnacionais de pesquisa! E não é só uma questão de dinheiro, mas, claro, estas coisas favorecem que as pesquisas críticas tenham menos recursos e mais dificuldades.
Então, acredito que é muito importante a promoção de mudanças de dentro das instituições. Tudo isto tem muito a ver com o conceito da ciência digna que foi pensado por Andrés Carrasco. Felizmente, estão crescendo as associações de cientistas críticos em todas as disciplinas. Além disso, são interdisciplinares. Existe uma contribuição aí que é fundamental para analisar, entender, questionar as políticas dentro das academias, das instituições, etc.
E, por último, o reconhecimento de outras formas de conhecimento. Não precisamos chamar tudo pelo mesmo nome, não precisamos chamar tudo de “ciência”. Mas é muito importante a interlocução com outas formas de produção de conhecimento. Há todo um conhecimento ambiental muito sofisticado, por exemplo, que provém do conhecimento tradicional, das comunidades locais.
Temos um exemplo recente de articulação no México que é muito bom. Existe o que se chama de Assembleia Nacional de Afetados Ambientais (ANAA). Há uns quinze anos, começaram reunindo pessoas afetadas por fumigações, por lixões, por contaminação. A UCCSNAL fez um importante trabalho em conjunto com a ANAA, cujos temas e relatórios foram retomados para alimentar um dos Programas Nacionais Estratégicos do CONACYT sobre toxicidades.
A contribuição das populações nestes temas é imprescindível. Quando em um lugar as pessoas têm o problema de uma instalação poluente, desenvolve uma experiência, adquire muitíssimo conhecimento, porque teve contato, buscou averiguar, reúne informação do que está acontecendo. Mas, muitas vezes, ainda faltam elementos do ponto de vista técnico e científico. Por isso, tal tipo de colaboração é fundamental, e além disso nutre muito as duas partes. Certamente, há outros exemplos na América Latina, no mesmo sentido.
Nos países periféricos, muitos conflitos socioambientais são atravessados por uma dicotomia. Por um lado, a possibilidade de atrair investimentos, gerar dinheiro e criar emprego. Por outro, as consequências socioambientais que geram. O que há de certo nesse dilema e no que a ciência e a tecnologia podem contribuir para superá-lo?
É sobretudo uma dicotomia assentada em mitos. Particularmente, neste momento em que estamos em uma pandemia que mexeu com todas as economias do mundo, e particularmente impactou as nossas economias do sul, do terceiro mundo. Como dizia no início, a pandemia está diretamente relacionada ao sistema alimentar agroindustrial. Razão pela qual pensar em ampliar os riscos a partir da mesma base que criou o que está acontecendo é demencial.
Por exemplo, o recente anúncio de investimentos para megacriadouros de porcos na Argentina. É o tipo de produção que gerou a gripe suína. Quanta gente sabe que neste momento há uma nova cepa de gripe suína na China, que ainda não proliferou? Na realidade, há 179 novas cepas, mas há uma que é altamente contagiosa e que tem características para se desenvolver como pandêmica. Como a China quer abrandar seus riscos, a transfere para outro país e, ironicamente, o governo da Argentina vê isso como se fosse desenvolvimento.
Na realidade, o que esse investimento trará é muito pouco trabalho, novas doenças e uma enorme quantidade de contaminação. E esse mesmo volume de investimento poderia estar dedicando à produção descentralizada, agropecuária e de transformação de pequenas agroindústrias, que dariam muitíssimo mais trabalho, mas sobre a base de garantir uma boa alimentação e, sobretudo, não produziriam novos problemas de saúde.
Falei da Argentina porque é um caso recente, mas poderíamos mencionar as fábricas de celulose no Uruguai, ou qualquer um destes grandes projetos. Está errado o modo de pensar o tema do investimento estrangeiro. Quando já vem definido de fora, o que buscam é retirar mais do que trouxeram, aumentar os lucros das empresas transnacionais. E o que deixam? Algumas migalhas frente ao impacto social e ambiental.
É preciso pensar em formas de desenvolver, em nível nacional, uma produção muito mais diversificada e integrada. A ciência e a tecnologia podem contribuir para analisar para onde realmente vai e a quem beneficia tais tipos de projetos de grandes investimentos estrangeiros, além dos efeitos sociais e ambientais que tem. E, é claro, pode contribuir para agregar valor na origem, sempre em conjunto com os conhecimentos que já existem distribuídos entre as pessoas, nas e nos produtores.
A urgência em resolver os déficits sociais privilegiando o crescimento econômico e relegando a questão ambiental foi e é um dilema para os governos progressistas de nossa região. Crescimento econômico é sinônimo de desenvolvimento? Que parâmetros deveriam ser considerados?
Está claro que o crescimento econômico não é o mesmo que desenvolvimento. Pode até ser o contrário! Por exemplo, todo o crescimento econômico que vimos nas últimas duas décadas, na América Latina, inclusive em nível mundial..., levou a maior desigualdade social da história! Então, temos que começar a pensar em formas de desenvolvimento que tenham a ver com a integração de todos os fatores sociais e ambientais, que façam com que o núcleo desse “desenvolvimento” seja o bem-estar das pessoas, da maioria, de todos e todas, mas sobretudo das maiorias.
Esse momento deveria ser aproveitado para, justamente, estimular um desenvolvimento baseado no bem-estar social e na integração com os ecossistemas e com a natureza, com a recuperação da biodiversidade, etc. A política pública deveria apontar nesse sentido. Mas, lamentavelmente, a maioria dos Estados aponta para uma recuperação pelas mãos do grande capital transnacional.
Existe um ecologismo despolitizado ligado, quando não exclusivamente, a condutas individuais ou ao chamado “capitalismo verde”. Considera que a pandemia produziu alguma mudança favorável na consciência social e política acerca das causas estruturais da problemática ambiental?
Não sei se houve uma mudança favorável, mas, sem dúvidas, deveria haver. O sistema atual baseado nas transnacionais e o peso que têm sobre as políticas públicas, que conduz a uma falta de políticas para o bem-estar da maioria das pessoas, mostra que estamos em um caminho realmente perigoso. É espantoso ver Bill Gates, um dos oito homens mais ricos do mundo, dizendo que haverá novas pandemias, e que então é preciso preparar vacinas. É um enfoque sumamente estreito, porque não diz nada em relação às causas. Veem nas pandemias a possibilidade de criar um mercado cativo.
Nesse sentido, o que o capitalismo verde está fazendo é ver como é possível fazer mais negócios sobre as próprias crises criadas pelo capitalismo. Isto é terrivelmente nocivo, porque em vez de atacar as causas, sempre está criando novos negócios sobre os desastres, sobre as catástrofes. É o que está acontecendo, neste momento, em muitos planos.
Acredito que há uma mudança favorável na consciência acerca de que os sistemas de produção estão ligados à saúde. Existe uma crise de saúde há muito tempo, mas agora fica mais claro, e que não é possível ser separada da crise da biodiversidade. Nesse sentido, por exemplo, um relatório recente do PNUD e da ONU Ambiente afirma que as pandemias vão continuar se repetindo, caso não haja um cuidado com a biodiversidade. E também fala do sistema agropecuário industrial e do impacto que tem. Nesse ponto, sim, houve um avanço.
Mas é preciso ter clareza de que é necessário insistir justamente para não cair nesta nova onda de “capitalismo verde” ou nesta espécie de “capitalismo de arrumações tecnológicas”, em que se acredita que a solução está nas vacinas. É a mesma ideia de fazer novos negócios com as catástrofes que as próprias empresas criam, sem questionar em nada o sistema que criou esses desastres.
Tem aparecido que a solução para a gravíssima crise ecológica em que estamos não pode ser encontrada dentro do capitalismo. Qual é sua opinião a esse respeito? A partir de quais coordenadas podemos pensar essa superação?
Tem a ver com o que estava dizendo antes. Há vinte anos, ninguém falava do capitalismo, exceto as organizações de esquerda ou militantes. Deixou-se de falar do capitalismo, como se não fosse o que está no substrato de tudo. Isso mudou. Agora está claro que é necessário falar e questionar o capitalismo, é um avanço muito importante. É uma mudança de época, como a marcou, por exemplo, o feminismo.
Não é de um dia para o outro, pode durar dez ou vinte anos até que comece a se generalizar um questionamento ao capitalismo. O capitalismo é um sistema no qual não podemos continuar, porque está acabando com a vida no planeta, a dos humanos e a dos outros seres vivos. É um sistema suicida! Talvez esse seja o gatilho que leve as sociedades a questionar a base do capitalismo.
Mas, alguém poderia dizer: "Bem, então, sem questionar o capitalismo não podemos fazer nada?”. Não, porque como disse Eduardo Galeano, “finalmente, somos o que fazemos para mudar o que somos”. Não podemos ficar esperando, porque “um dia o mundo irá mudar”. Devemos ter claro que é necessário um questionamento radical do sistema, que começa pela reflexão e a ação cotidiana e que deve ser ampliado para todos os lugares onde possamos enfrentá-lo.
Nesse sentido, as ciências sociais têm um papel fundamental. Não podemos continuar pensando dentro dos mesmos parâmetros, sem questionar as empresas transnacionais, sem questionar a desigualdade e o crescimento cada vez mais monopólico de empresas cada vez maiores. É preciso questionar radicalmente esta imoral desigualdade. Isso tem que ser uma tarefa de ampla difusão e discussão em todos os níveis, na vida acadêmica e fora da academia.
Ao mesmo tempo, já temos que estar pensando em alternativas, dia a dia, a partir do local, de cada um. É claro que cada um tem que pensar qual é o seu lugar, através de, por exemplo, o consumo. Mas isso não é o suficiente, porque oferece uma falsa imagem. É como dizer “bom, se mudarmos o consumo, tudo mudará”. E não, porque temos que mudar as formas de produção. O que precisamos realmente como sociedades para satisfazer as nossas necessidades? O que estamos dispostos coletivamente a assumir para cobrir nossas necessidades?
Sou bastante otimista. Temos pontos de partida. Por exemplo, as redes campesinas. Abarca não só o que se produz no campo, mas também as hortas urbanas, as redes de pescadores e de pastores, etc. Enfim, a pecuária descentralizada e em pequena escala. Estas coisas são as que alimentam 70% da humanidade e que ajudam a prevenir a mudança climática.
Tudo isso já está acontecendo e acontece em um plano de luta, já que muitas vezes precisam resistir para se manter como camponeses e defender seus direitos. E é a luta que incomoda, que tem efeitos, por isso, lamentavelmente, assassinam uma grande quantidade de defensores da terra, da água, do território. A organização Global Witness reúne informação o tempo todo e mostra que defender a natureza tem consequências graves.
Apesar disso, sou otimista. É preciso reconhecer a realidade como é, com todas essas dificuldades. Mas, ao mesmo tempo, entender que muitas das soluções que necessitamos já existem e poderão se estabelecer e expandir. Ou seja, já existem respostas. Não é que um dia o capitalismo irá cair e aí iremos começar a construir algo. Mas que tudo isto está sendo feito a partir da construção das comunidades locais e da agroecologia camponesa, que é o tema que hoje mais falamos. Mas também, por exemplo, a partir do questionamento do patriarcado, que é fundamental como um dos pilares do capitalismo. Ou o questionamento acerca do tema do desenvolvimento. Tudo isso já está construindo esse futuro, já o estamos prefigurando, já o estamos fazendo. Então, eu penso que sim, é possível.
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“A maior parte dos recursos naturais no mundo é consumida por menos de 10% da população mundial”. Entrevista com Silvia Ribeiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU