03 Setembro 2020
“O crescimento da Apple evidencia o peso que o chamado capitalismo de vigilância adquiriu, uma nova forma de organização do capitalismo que está afetando tudo, das indústrias e empregos aos sistemas eleitorais e as formas de estimular o consumo de produtos das empresas que pagam pelos dados”, escreve Silvia Ribeiro, pesquisadora do Grupo ETC, em artigo publicado por La Jornada, 29-08-2020. A tradução é do Cepat.
A transnacional Apple alcançou, na semana passada, um valor de mercado de 2 trilhões de dólares. Duplicou o valor de suas ações, de março a agosto de 2020, graças à pandemia. Tornou-se a empresa com o maior valor de mercado no mundo. Apenas a petroleira estatal Saudi Aramco, da Arábia Saudita, alcançou esse montante por um breve período, em 2019, mas voltou a baixar com a queda nos preços do petróleo.
Para colocar o valor em perspectiva, pensemos que somente uma dúzia de países no mundo possui um Produto Interno Bruto (PIB) superior a 2 trilhões de dólares. Nenhum latino-americano e nem a maioria dos europeus chegam a esse volume. Na América Latina, o Brasil é o país mais próximo, com um PIB de 1,89 trilhão de dólares. É seguido por México, com cerca de 1,3 trilhão. A Apple tem cinco vezes o valor de todo o PIB da Argentina.
Próximas ao absurdo valor de mercado da Apple estão a Amazon e a Microsoft, que em curto tempo poderão alcançá-la. As ações do Facebook, Alphabet (dona do Google) e das chinesas Alibaba e Tencent estão em rápida ascensão.
São as donas de grandes plataformas digitais, que atuam no comércio eletrônico, entretenimento, redes sociais, etc. Essas sete controlam 75% do mercado global de plataformas. Com a pandemia, cresceram exponencialmente, devido ao aumento da dependência e vício digital, que fez explodir as tendências que já existiam de digitalização de todos os setores industriais e acrescentou setores fundamentais como educação e saúde.
O crescimento da Apple evidencia o peso que o chamado capitalismo de vigilância adquiriu, uma nova forma de organização do capitalismo que está afetando tudo, das indústrias e empregos aos sistemas eleitorais e as formas de estimular o consumo de produtos das empresas que pagam pelos dados. Baseia-se na extração massiva, interpretação, venda e manipulação de dados de todas as pessoas, instituições, empresas, cidades, vias de transporte, natureza e ambiente (Shoshana Zuboff, 2019).
A Apple, através de telefones, relógios digitais, computadores, acessórios domésticos inteligentes, plataformas de televisão e música, coleta uma quantidade enorme de dados de nossas condutas, saúde, preferências de compras, lazer, trabalho, educação, relações e família, tudo isso georreferenciado. Em conjunto com os dados que fornecemos por meio de outras plataformas, forma uma rede de extração e interpretação de nossos dados por idade, gênero, situação econômica, localização e outros. Vende os mesmos para outras empresas e entrega às agências de vigilância dos governos.
Este volume imenso de dados só pode ser administrado com sistemas de Big Data. Os serviços de nuvens de computação com essa capacidade são dominados por poucas empresas: Microsoft Azure, Amazon Web Service (AWS), Google Cloud, Alibaba Cloud, IBM, Oracle. Os serviços de iCloud, onde a Apple armazena nossos dados, estão na realidade em nuvens da Amazon e Google, que ela contrata para isso e que, portanto, acessam os dados.
No volume de vendas anuais registradas - não em valor de ações, que é um número especulativo -, a maior empresa do mundo continua sendo a Walmart, seguida por empresas petroleiras e automotivas chinesas e estadunidenses. Mas mesmo na lista de receitas por vendas compilada anualmente pela revista Fortune, a Amazon aparece em nono lugar e a Apple em décimo segundo. Alphabet e Microsoft estão entre as 50 maiores do mundo.
A Apple levou 38 anos para chegar a um valor de mercado de um trilhão de dólares, mas o duplicou em apenas dois. No início da pandemia, seu valor caiu, porque os investidores hesitaram por sua dependência da FoxConn, na China, para a fabricação de telefones. Mas se recuperou, aumentou a porcentagem de outros produtos e, sobretudo, as adesões em suas plataformas de entretenimento.
Adicionalmente, os analistas financeiros estimam que diante da incerteza econômica provocada pelas múltiplas crises derivadas da pandemia da Covid-19, muitos capitais deixaram outras indústrias para investir em empresas tecnológicas. Outras companhias em ascensão na capitalização de mercado são as grandes farmacêuticas, em razão da especulação com medicamentos e a corrida por vacinas para Covid-19.
O fato de os titãs tecnológicos contarem com tal poder implica em enorme peso na definição de políticas nacionais e internacionais, que utilizam para não pagar impostos, impedir regulamentações que as supervisionem ou responder pelo uso que fazem de nossos dados, etc. Tudo isso, porque possuem acesso e controle privilegiado, como aranhas nas redes, à informação e possível previsão de nossas condutas e escolhas, do consumo às preferências políticas, cuja comercialização é o que as enriqueceu.
São muitos e complexos os temas que urge analisar coletivamente para enfrentar o capitalismo de vigilância. Como contribuição a uma dessas arestas, a coalizão internacional Just Net lançou, em 2019, um chamado para que o futuro digital nos pertença.
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A maçã mordida. Artigo de Silvia Ribeiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU