17 Novembro 2020
As reflexões de Walter Kasper – cardeal alemão de 87 anos, teólogo muito conhecido e apreciado, com uma brilhante carreira acadêmica e presidente emérito do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos e para as relações religiosas com o judaísmo – se caracterizam pela sua clareza, simplicidade e profundidade de sensibilidade humana e teológica.
O comentário é de Roberto Mela, teólogo e professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimana News, 14-11-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os discípulos viram Jesus rezando e pediram que ele os ensinasse a fazer isso também. Se Jesus rezou, isso significa que a oração não é uma renúncia à dignidade humana, mas sim o exercício de uma faculdade espiritual que toca as raízes do ser, que, para os cristãos, é um Deus Pai onipotente no amor.
Kasper comenta brevemente os seis pedidos do Pai-Nosso presentes no Evangelho de Mateus, no centro do Sermão da Montanha. Embora escrita em grego, a oração de Jesus também circulou nas comunidades na língua aramaica original, mas as diferenças não foram tão sentidas a ponto de ter que recusar a versão grega.
O Pai-Nosso está fortemente enraizado na oração judaica e bíblica em geral. É um discurso a Deus e com Deus, uma forma de doxologia em que o ser humano reconhece a sua própria dignidade de filho de Deus e, ao mesmo tempo, de ser oprimido pelas dificuldades mortais com que a vida cotidiana pesa o seu caminho.
Kasper dá a conhecer ao leitor a longa história dos efeitos conhecidos do Pai-Nosso e que, portanto, essa oração deve ser compreendida com a linguagem e a sensibilidade de hoje.
Os três primeiros pedidos vão ao essencial. O discípulo não reza como uma criança pequena, mas, com a invocação “abba”, se dirige com respeito a uma pessoa em quem tem confiança, que ele reconhece como fonte de vida, de paternidade que guarda, ama, protege e dá vida (embora um certo número de pessoas do nosso tempo podem ter ou tiveram uma experiência muito negativa do próprio pai...).
Como münding (maiores de idade), nós abrimos a boca (Mund) com plena liberdade para nos dirigirmos com confiança ao Pai fonte de vida, de luz, de força e de fraternidade. Deus é pai de todos, e, portanto, todos são filhos e irmãos entre si. Fratelli tutti é o título da última encíclica do Papa Francisco. A pessoa orante reconhece a alteridade de Deus em relação a todas as realidades mundanas (“estais no céu”).
Com a Bíblia e o Novo Testamento, o fiel aprendeu que Deus é Pai sobretudo de Jesus Cristo, seu Filho. Seu modo de ser Pai ilumina os vários tipos de paternidades que existem no mundo, desmascarando aquelas que abusam do seu papel para infligir submissão e escravidão. O Deus Pai dos cristãos é um Deus revolucionário, que ama e protege preferencialmente os pequenos e os pobres que a ele se confiam.
O nome identifica as pessoas, a sua identidade profunda. O nome “YHWH” qualifica o Deus da Bíblia como um Deus de amor, presente para salvar, em plena liberdade de modos e de tempos. Permanece incapturável e não manipulável. O seu nome não pode ser pronunciado em vão, mas santificado, isto é, reconhecido como totalmente outro em relação à realidade mundana.
O fiel reza para que esse nome seja reconhecido por aquilo que é, por todos. Um Nome que, a partir dos testemunhos bíblicos, assegura presença, salvação, amor fiel, unidade entre os fiéis e na própria criação. O pedido é expressado no passivo, um passivum divinum. O ser humano deve honrar a Deus, mas somente Ele pode fazer com que o seu Nome seja aceito por todos na terra e no céu.
Embora o conceito de reino permaneça mais ou menos estranho à concepção moderna, ele desempenha um papel central na Bíblia. Jesus anuncia a realeza de Deus que se aproxima até tocar o mundo dos homens e mulheres. Ele o anuncia com a palavra, torna-o visível com os prodígios, tenta ilustrar a sua natureza com parábolas muito eficazes.
O reino de Deus não é de tipo político, mas um reino de vida, paz, amor, justiça, fraternidade. Conjuga-se aos frutos do Espírito lembrados na Carta aos Gálatas. É uma realeza que se instaura não de modo surpreendente, mas discreto, respeitando a liberdade do ser humano e, ao mesmo tempo, possuindo um poder automático próprio, capaz de produzir resultados exaltantes a partir de começos pequenos e insignificantes. Um poder “dentro” das coisas, como o do fermento na massa.
Foi dito com razão que Jesus Cristo é o Reino em pessoa. O reino não se iguala à Igreja, que é primícias e uma antecipação dele, mas ultrapassa todas as fronteiras culturais e religiosas. Por isso, é preciso rezar, celebrá-lo na antecipação da eucaristia, testemunhá-lo com uma vida coerente com o Evangelho.
No Pai-Nosso, abundam os imperativos passivos divinos: é Deus quem tem o papel principal de santificar o seu Nome, de fazer vir o seu Reino, de fazer cumprir a sua vontade assim na terra como no céu.
A vontade de Deus não representa uma heteronomia que mata a liberdade do ser humano, mas uma teonomia amante do ser humano, que floresce dentro dele como vida e luz. Ela propõe ao ser humano os requisitos mínimos para permanecer na liberdade e na vida que Deus lhe proporcionou com a criação e a libertação da escravidão do Egito. A vontade de Deus é universal e salvífica. Ela assume e fundamenta, conserva e faz crescer a liberdade do ser humano.
O mal no mundo existe e não pode ser negado nem explicado. Nem Jesus fez isso, ele que também o assumiu até o fim, derrotando-o na cruz. Cada um deve vigiar sobre seus próprios comportamentos que tendem ao mal, porque Deus não renuncia ao julgamento sobre o agir humano.
O fato é que Cristo venceu o mal e dá ao fiel a possibilidade de viver uma vida no amor. Porém, não será uma vida isenta da tentação do mal nem das provações que permitem o crescimento do ser humano na sua liberdade e maturidade completa.
A libertação do mal e do não abandono na tentação serão o último pedido do Pai-Nosso. Os outros dois que precedem esse pedido dizem respeito às necessidades sociais do ser humano.
O primeiro é a do pão para viver com dignidade todos os dias. Pão também no amanhã confiado à hospitalidade e talvez também o pão supersubstancial que alude à eucaristia. O ser humano pede pão a Deus, mas nem por isso não se compromete com um trabalho digno e com a solidariedade de partilhá-lo com as pessoas e com os continentes em dificuldade e empobrecidos pela malvadeza organizada dos poderes fortes.
Uma necessidade pessoal e social forte é a do perdão. É preciso pedi-lo a Deus, é preciso estar disponível para concedê-lo ao próximo. Os dois perdões estão ligados. O perdão é uma nova criação possível somente a Deus e ao seu Santo Espírito. Desse modo, a vítima, o homem e a mulher feridos pelo mal, recebem na oração a possibilidade de não permanecerem para sempre prisioneiros do ódio, da amargura, mas de chegarem a vencer o mal com o bem, recuperando a serenidade e rompendo, dessa forma, o círculo vicioso que só multiplica a violência, talvez até legalizada. O perdão pacífico, embora não exclua o justo curso da justiça humana.
Deus nos criou sem nós, mas não nos redime sem nós. No Pai-Nosso, a principal obra pedida ao Pai não exclui a participação ativa da pessoa fiel e de todas as pessoas de boa vontade na edificação do reino de Deus, que é sempre um dom divino.
O mundo está cheio de tentações ao mal e também de provações que permitem o crescimento da pessoa na sua maturação. As tentações não só e nem tanto as sexuais; há muito piores, afirma Kasper. São aquelas contra o amor ao próximo, o fato de buscar habilmente a própria vantagem, de fazer com que pague caro quem nos enganou, de nos fazer viver bem e de fazer os outros viverem mal, de reacender a fofoca, o abuso de poder, as grandes tentações do dinheiro etc.
“Não deve ser necessariamente Deus quem nos induz a todas essas tentações; todos nós já estamos embebidos nelas” (p. 133). O fiel pede a Deus para ser protegido das tentações, que não são desejadas por Deus, para não sucumbir a elas miseravelmente. Também pede para ser guardado e sustentado nas provações, para que não se transformem em tentações.
Assim, Kasper desdobra o pedido, de difícil interpretação, que também se refere à tradução alemã “führe uns nicht in Versuchung” (“não nos deixeis cair em tentação”): “Fazei com que, para nós, que somos fracos, essas tentações, entendidas no sentido de provações, não se tornam tentações ao mal. Guiai-nos e protegei-nos da tentação, não permitais que caiamos na tentação” (p. 138).
Por fim, não se pense que o mal, o Maligno, o Diabo, não existe mais, e a oração para sermos libertados dele inclui os três aspectos com que ele está presente no mundo. O Diabo tem a estrutura de um ser, como os seres livres. Hesitamos com razão – continua Kasper – em reconhecer ao diabo a dignidade de pessoa e acrescenta: “Joseph Ratzinger acerta o alvo quando afirma que o diabo é uma pessoa em degradação, a caricatura e a perversão de uma pessoa. Ele tem em si como que uma careta, uma loucura e, na realidade, é louco” (p. 140).
Na cruz, Jesus assumiu a totalidade do mal feito e sofrido pelos seres humanos, e o venceu com o amor, a sua oblação generosa e onerosa, a ressurreição, a efusão/entrega do Espírito Santo.
Embora não seja mencionada por Kasper, acho que a oração de libertação da tentação também pode ter uma notação escatológica e, portanto, também pode se referir à trágica possibilidade de cair na tentação decisiva e última da perda da fé. Há quem afirme que o Pai-Nosso é uma oração escatológica, a ser rezada muito poucas vezes, não de forma devocional, mas com referência à máxima seriedade do momento escatológico...
O Pai-Nosso se apresenta, portanto, como uma oração revolucionária, capaz de derrotar o delírio de onipotência do ser humano, de subverter os critérios mundanos de vida consolidados, de vencer o mal que cerca o coração do ser humano, de infundir esperança certa de que o mal pode ser vencido em Jesus e de que a vida de Deus, Pai bom de todos os seus filhos, pode reinar no mundo. Ele nos convida e nos dá a força para cuidar e assumir a responsabilidade por todos os irmãos e irmãs que aparecem na face da terra.
Este livro de Kasper sobre o Pai-Nosso é útil para a meditação e para a oração. Ele faz com que todos voltemos às coisas essenciais, sobretudo para não nos sentirmos onipotentes, mas, pelo contrário, dependentes de uma graça original proveniente de um Pai que nos ama, nos protege e deseja a vida plena para cada um dos seus filhos e filhas.
Walter Kasper. Padre nostro. La rivoluzione di Gesù (Meditazioni 256). Bréscia: Queriniana, 2020, 160 páginas.
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O Pai-Nosso, segundo Walter Kasper - Instituto Humanitas Unisinos - IHU