04 Setembro 2020
"A seleção para o mundo de trabalho já era dificultada pela substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto, do homem pela máquina. Com o trabalho remoto as exigências serão ainda maiores. Além da qualificação acadêmica, os futuros candidatos às vagas para trabalho remoto serão questionados se possuem conhecimentos em utilização de redes sociais e aplicativos diversos e os equipamentos necessários para este tipo de trabalho, até mesmo se possuem um ambiente dentro de casa apropriado para o trabalho. Mulheres poderão ser preteridas devido à ampliação da jornada feminina dentro de casa e as que possuem filhos pequenos tendem a sofrer ainda mais para conseguir se encaixarem no mercado de trabalho remoto", escreve Jordana de Souza Santos, doutora em Ciências Sociais pela Unesp (Campus Marília), professora universitária da rede privada, executivo público na Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, em artigo publicado por Alai, 03-09-2020.
A crise sanitária inaugurada pela pandemia do novo coronavírus trouxe mudanças inesperadas como o isolamento social e o fechamento das instituições de ensino, das atividades de comércio, bares, restaurantes e casas noturnas decretados como serviços não essenciais pelos governos de estado. Neste contexto, o mundo do trabalho se adaptou às novas circunstâncias utilizando-se de estratégias de revezamento de funcionários em grandes empresas, serviços delivery e online, teletrabalho em escritórios e em alguns setores do serviço público, ensino a distância nas escolas e universidades. Ao contrário das medidas de isolamento social, o trabalho remoto não é novidade e se ainda havia resistência ou dúvidas quanto à sua implementação, a pandemia deu condições de tornar esta modalidade de trabalho inevitável.
A modalidade de trabalho remoto se coaduna com o discurso do capital em relação à não paralisação da economia, das atividades laborais. Em favor deste discurso é que o presidente Jair Bolsonaro e sua equipe de governo minimizaram a pandemia chamando-a de “gripezinha” e incentivaram a população a violar as normas de quarentena impostas pelos estados e municípios. Nas entrelinhas, a saúde da população poderia ser sacrificada em prol do bom andamento da economia e os que insistiam em enfrentar a pandemia com medidas restritivas estariam colaborando para a instalação de uma grave crise econômica.
Atendendo à máxima de que o “Brasil não pode parar”, o trabalho remoto tornou-se uma opção vantajosa para os empresários que manteriam suas atividades em funcionamento e para os trabalhadores que teriam garantidos os seus empregos. À medida que a doença avança e o número de pessoas contaminadas e de mortes aumentam, o trabalho remoto deixa de ser uma alternativa para uma situação específica e passa a se consolidar como medida permanente. A princípio, empregadores e empregados só teriam a ganhar com o trabalho remoto. Mas se analisarmos o trabalho remoto como uma estratégia de acumulação de capital nos parâmetros do modelo de flexibilização das condições de trabalho, concluiremos que se trata de mais uma forma de exploração da classe trabalhadora. A partir desta perspectiva, quais as consequências para o mundo do trabalho?
A lei federal nº 14.020/2020 que instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda prevê a suspensão de contratos e a redução de jornada de trabalho e salário que podem ser negociados individualmente ou em acordos coletivos. Esta lei atende às necessidades das empresas que alegam diminuição dos lucros e, por conseguinte, aumento das demissões e assegura ao trabalhador o recebimento de benefício, caso tenha o contrato de trabalho suspenso ou a redução de jornada e de salário. Muitas empresas do setor industrial adotaram o regime de revezamento de turnos a fim de evitar aglomerações, além de se valerem das prerrogativas desta lei. Diante da crise sanitária, as condições de negociação dos trabalhadores ficam prejudicadas pelo medo de perderem o emprego. O desemprego é velha estratégia do capital para minar a organização da classe trabalhadora e aumentar a produtividade.
Para as empresas do ramo de serviços, como escritórios de advocacia, contabilidade, publicidade e propaganda etc., o home office foi alternativa para evitar aglomerações e uma tendência para o futuro. Defensores da modernização das relações de trabalho argumentam que, com os “colaboradores” trabalhando em casa, os custos com aluguel de imóveis, manutenção (luz, internet, equipamentos, mobiliário), benefícios como vale transporte e vale alimentação, diminuem, ao passo que a produtividade se mantém ou pode aumentar. Para estimular a produtividade do trabalho em casa o discurso empresarial destaca que o trabalhador é mais feliz trabalhando no aconchego do seu lar, sem precisar se deslocar e enfrentar o estresse urbano.
Até mesmo nos serviços médicos em que era mais distante a possibilidade de atendimento remoto, a telemedicina inaugurou um novo padrão (precário) de atendimento. Serviços de terapia psicológica em que o contato entre o terapeuta e o paciente era tido como imprescindível foram ressignificados para adequação ao “novo normal”.
Quando o assunto é adaptação às inovações do mercado trabalho não há nada de novo para a classe trabalhadora que deve estar sempre se reinventando no contexto de flexibilização. O uso de tecnologias no mundo do trabalho era uma tendência crescente, mas que ainda encontrava resistência por parte dos trabalhadores, especialmente dos mais velhos, e obstáculos em relação à falta de acesso e qualificação profissional. Mas o que era tendência fixou-se como realidade incontornável. Àqueles que não possuíam espaços adequados em suas casas para o trabalho remoto tiveram que se adaptar sob o risco de perder o emprego. Esta é a realidade da imensa maioria dos trabalhadores do ramo de serviços. Ter um computador e acesso à internet em casa não implica ter um cômodo reservado para navegar na rede ou digitar trabalhos; ter um celular ou telefone não implica que os mesmos possam ser utilizados também para o trabalho. O fato de o indivíduo estar trabalhando em casa não implica o corte do auxílio alimentação uma vez que esta necessidade é inerente ao ser humano, não ao local de trabalho.
Fazer da residência o local de trabalho compromete as fronteiras entre a vida individual e o mundo do trabalho, entre a esfera privada e o exterior. Algumas empresas fornecem equipamentos e auxiliam nos custos que o empregado terá trabalhando em casa. Entretanto, os efeitos negativos para o trabalhador extrapolam os gastos financeiros. A dificuldade em estabelecer uma rotina no home office faz do indivíduo um trabalhador em tempo integral, em horários noturnos, finais de semana e feriados. O(a) chefe de família está sempre na função de trabalhador(a), assim, a vida individual se confunde com o mundo do trabalho, tornam-se um só e o indivíduo perde seu espaço de refúgio, de lazer, de descanso. O conforto, a privacidade, a suposta liberdade que o trabalho em casa promete, “caem por terra” quando o indivíduo percebe que não tem controle sobre o processo de trabalho. Passa a sofrer maior estresse e ansiedade, a ter maior responsabilidade em realizar as tarefas num ambiente onde ele não consegue ser apenas trabalhador, que requer o tempo todo que ele exerça as funções de pai ou mãe, marido ou esposa, ou simplesmente a versão privada dele mesmo.
Para as mulheres, o home office possui efeitos específicos uma vez que a maioria delas se divide entre o trabalho e as tarefas domésticas. Mães que deram à luz recentemente tendem a considerar o home office como uma alternativa à sua condição, pois possibilita maior contato com os filhos. Mas, com o tempo, o que era solução tende a se tornar um problema, pois o cuidado com os filhos muitas vezes exige atenção integral. Como os filhos também estão isolados em casa tendo aulas virtuais, nem sempre há mais de um computador disponível ou internet de boa qualidade e crianças menores muitas vezes precisam de ajuda, além da constante vigília dos pais quando estão navegando na internet.
Outro aspecto negativo do trabalho remoto é a falta de contato com os colegas de trabalho e com o público em geral. Este contato propicia sensibilidade, integração, empatia, cooperação e contribui no desenvolvimento de aptidões e habilidades de relacionamento. É possível conhecer a realidade das pessoas as quais o nosso trabalho afeta de dentro de casa ou pela internet? Não é o caso de demonizarmos o contato virtual ou o trabalho remoto, mas é preciso refletir sobre a permanência destas modalidades que gerarão mudanças importantes na nossa forma de sociabilidade e comportamento.
A seleção para o mundo de trabalho já era dificultada pela substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto, do homem pela máquina. Com o trabalho remoto as exigências serão ainda maiores. Além da qualificação acadêmica, os futuros candidatos às vagas para trabalho remoto serão questionados se possuem conhecimentos em utilização de redes sociais e aplicativos diversos e os equipamentos necessários para este tipo de trabalho, até mesmo se possuem um ambiente dentro de casa apropriado para o trabalho. Mulheres poderão ser preteridas devido à ampliação da jornada feminina dentro de casa e as que possuem filhos pequenos tendem a sofrer ainda mais para conseguir se encaixarem no mercado de trabalho remoto. Por ser um tipo de trabalho em que o indivíduo está conectado em tempo integral, o trabalhador deverá ser mais vigilante quanto ao uso das redes sociais. O indivíduo que utilizava o WhatsApp apenas para fins pessoais e passou a utilizar o aplicativo como instrumento de trabalho deverá ser mais cauteloso para não criar problemas e situações desagradáveis que possam prejudicá-lo. Se, por um lado, o trabalho em casa parece ser prazeroso e o uso de tecnologias facilitador, de outro pode gerar um estresse a mais devido aos cuidados que se somam a este “novo normal” que vão desde a criação de uma rotina até o uso equilibrado das ferramentas tecnológicas.
No serviço público e na educação, a tecnologia é apresentada como panaceia. Muitas parcerias têm sido feitas entre o setor público e privado para a compra de programas para o trabalho remoto. No caso da educação a situação é ainda mais grave, pois envolve demissões, contratação de tutores no lugar de docentes, aumento da pressão aos docentes que devem “fazer com que os alunos aprendam”, gravação de aulas, além da exclusão dos alunos que não têm condições de acompanhar o ensino online por falta de estrutura e por dificuldades de aprendizagem que não podem ser sanadas virtualmente.
São muitas as nuances que o “novo normal” traz para o mundo do trabalho, principalmente com a consolidação da modalidade de trabalho remoto. O importante é não perder de vista que se trata de mais uma forma de exploração da classe trabalhadora. O “Brasil que não pode parar” é o que atende às necessidades de acumulação do capital.
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Trabalho remoto: o “novo normal” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU