18 Agosto 2020
Se existe uma Virgem protetora das prostitutas trans, deve ser esta – Beata e Imaculada – que dá nome à paróquia de pedras claras na costa de Torvajanica. Guarda-sóis espalhados em desordem, vendedores de milho, tatuagens desbotadas nas costas e decotes, casais de adolescentes, idosos com cadeiras dobráveis, um "Barco do Amor" que se aproxima da costa ao ritmo do reggaeton, prometendo diversão e mergulhos no mar "por apenas 5 euros!”. Padre André Conocchia chegou no ano passado, no primeiro dia do outono, quando as espreguiçadeiras já estavam guardadas e a brisa já ia esfriando. Ele é da província de Roma, tem 49 anos, que carrega como um garoto, com barba e cabelos pretos, e já teve experiência por aqui, pároco assistente em Anzio. Mesmo assim, nesse trecho de praia, ele encontrou uma comunidade que não conhecia, necessitados que o colocaram à prova como nunca antes.
A reportagem é de Alessandra Coppola, publicada por La Lettura, 17-08-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mais uma vez, a notícia chegou com o Covid. “Formou-se uma fila na porta da paróquia, quarenta, sessenta pessoas, que precisavam de ajuda. Era mais ou menos meados de março”, ele conta. Aqui, como em outras partes da Itália, o fechamento total para conter o contágio por coronavírus havia atingido primeiro os trabalhadores mais precários, sem contratos ou tutelas, e tinha gerado um empobrecimento generalizado. O padre então se organiza, para distribuir sachês de leite, macarrão, latas. E uma tarde na fila quando ele se vê diante, entre tantos outros, de "uma pessoa trans", ele não recua. Sua atitude não era dada como garantida, até sua chegada não era assim. A palavra se espalha. “Essa pessoa volta no dia seguinte com uma amiga – continua Padre André – e depois a amiga traz outra...”. O boca a boca leva ao pároco uma população que vive abaixo dos radares, que nunca havia conseguido pôr os pés na igreja, estigmatizada pelo sexto mandamento (“Não cometer atos impuros”) e uma tradição de preconceito. Exausta de uma vida às margens, ansiosa por reconhecimento até as lágrimas.
Torvajanica, Itália. (Fonte: Weather Forecast)
Dom André não apenas as acolhe, as escuta, as consola ("Eu dava comida, elas em troca me ofereciam fragmentos de humanidade"); mas faz algo impensável por elas: pede ajuda ao esmoleiro do Papa. E o Cardeal Krajewski responde logo com firmeza com as palavras que lhe foram confiadas pelo próprio Francisco: "A caridade não tem limites".
Paola está sem ar pelo calor e pelo esforço para não chorar: “Fiquei no bosque de Ostia desde as sete da manhã – agora são 5 da tarde, com a luz que cai obliquamente numa salinha da paróquia – nem um único cliente: não sei se é o medo, o vírus, a crise... não consegui um euro”. Como as outras pronuncia “pandémia” com acento no “e”, em espanhol: é o cataclisma que arrasou com as trans de Torvajanica, reduzindo-as à fome.
“Há 28 anos que me prostituo, nunca houve uma situação tão dramática – diz –. Continuo indo até o local de trabalho porque morreria de depressão em casa. Não somos ninguém, gente esquecida. Que a Virgem proteja Padre André de todo o mal, ele nos ajuda materialmente e também moralmente. Agradeço ao Senhor que enviou o Papa Francisco para mudar a Igreja. Tive herpes por causa do estresse, mas eles me trataram e eu estou melhor.”
As amigas trans têm longas histórias de fuga, transformação, dor e exploração em sua bagagem, da América do Sul a Roma.
Se cortaram a luz na casa de Paola – o refrigerador está desligado e ela não sabe onde pôr o iogurte oferecido pelo pároco – é porque “nascemos com uma maior falta de sorte”: mas, sobretudo, muitos aproveitaram-se disso. Ela não menciona isso, e nenhuma de suas colegas fala sobre isso. Mas isso é explicado por um levantamento dos Carabinieri da unidade de investigação de Frascati, competente no litoral, que em 2015 identificou e desarticulou uma associação criminosa para a exploração de transexuais; dirigida por um grupo internacional de criminosos, com apelidos do tipo "Cici", "Perla Bianca" ou "El Diablo", argentinos, romenos ou italianos. Eles atraíam garotos para um hotel em Buenos Aires, prometiam mudanças de sexo e dinheiro fácil na Itália e depois os amarraram eternamente ao circuito; privando-as do passaporte, obrigando-as a prostituir-se dias e noites intermináveis em "áreas de descanso na beira da estrada", obrigando-as a aluguéis elevados e supostas dívidas com a "Mama" que nunca terminavam, sob o controle de motoristas-seguranças.
As primeiras a se aproximar de Padre André não foram por acaso trans argentinas, ex-adolescentes de províncias pobres do norte como Jujuy e Salta, agora com quarenta anos, que trabalham atrás dos arbustos entre Castelfusano e Pontina. "Argentinas como o Papa: por que não lhe escrevem contando com simplicidade e coração aberto sobre a sua condição?" Elas não ousavam, "pensavam que não eram dignas". Por fim, tentaram, junto com o padre, "e acabamos todos chorando em volta de uma mesa".
A resposta com o carimbo da Santa Sé continha 4 notas de 50 euros. Mais lágrimas “quando abri o envelope, uma loucura: sou católica do meu jeito, disse ‘meu Deus!’ a igreja faz alguma coisa até por nós que somos transexuais ... Agradeço muito ao Papa Francisco que não julga”.
Quem relata isso é Gervasio "nome de batismo da trans Laura". Ela tem mais de cinquenta anos, ajudou por muito tempo sua família em Assunção, no Paraguai, “somos gente humilde”, agora não tem mais ninguém: “Minha vida é aqui, não vou voltar para aquele lugar”. No caso dela, a rota passou pelo Brasil, depois Bélgica, Alemanha, Milão e por fim Roma, o seio novo e tudo mais. "Eu via amigas que haviam partido e estavam com dinheiro, apartamento, carro: eu disse a mim mesma, quero chegar nisso também."
Houve tempos melhores, diz ela, depois a pandemia trouxe "uma situação horrível": "Eu fiquei em casa sem comida por quarenta dias, ouvi dizer que um padre estava nos ajudando, um cara de barba e óculos, pensei que era conversa, mas fui lá para ver. Como as outras, Laura encontrou a porta aberta e voltou a bater de novo. Uma vez são torradas, outra, como esta tarde, por exemplo – são máscaras cirúrgicas de um branco puro que a Santa Sé encomendou no Japão e enviou a paróquias necessitadas, entre elas Torvajanica. Padre André distribui cinco para cada uma. “Compreendo bem que estou numa zona limítrofe para a Igreja – ele explica -, mas penso que tenho que acolher as pessoas perguntando: o que posso fazer por você? Sem preconceitos e muito menos julgamentos”. E, ao que parece, o próprio Vaticano o abençoa.
Marcela se tivesse tido condições, diz ela, teria continuado na escola: “Mas comecei pequena, numa época em que não éramos aceitas, era difícil: para se tornar trans você tinha que se prostituir porque não tinha outra escolha. Eu gostava de estudar, mas sempre deixava pela metade por causa do bullying, como se diz: até os professores zombavam de mim”.
Aos 16 anos, do Uruguai, com os documentos de um vizinho que também se chamava Marcelo e tinha os cabelo compridos, ela foge de casa, finge ser maior, cruza a fronteira e se encaminha por essa estrada. “Uma família simples, os avós eram agricultores da Basilicata, não me faltava nada”. Mas ele precisava de mais. Sua mãe, que a teve muito jovem, primeiro ficou desesperada, depois se resignou, por fim a aceitou e hoje fala com ela por vídeo-chamada de Montevidéu dando dicas de maquiagem e recomendando que não roa as unhas.
Toca um celular, com a música Soldi de Mahmood. Minerva ri envergonhada e desliga. Ela veio do Peru, mais ou menos como as outras, muitos irmãos e poucos recursos: "Eu saí para poder sobreviver de alguma forma." As primeiras operações foram feitas na Argentina, a última na Itália. “Não queria ser uma super star – conta ela timidamente –, chamar a atenção. Eu gostaria de ter passado despercebida”. Consegue os clientes via internet: "Existem muitas páginas para fazer isso, pagas ou não." Mas com a pandemia, ela também parou: "Ninguém respondia mais." Os visitantes regulares, acrescenta Marcela, se antes vinham uma vez por semana, agora aparecem a cada duas se tudo correr bem. "E eles também falam sobre a crise, sobre o dinheiro que falta." Também é preciso consolá-los. Sempre digo que nós, garotas trans, somos psicanalistas a baixo custo”, sorri Marcela: “Mas antes de conhecer Padre André, quem nos ouvia? Quem nos ajudava?”.
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“Caro Papa, obrigado”. As trans ajudadas pelo padre de Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU