23 Julho 2020
"Até agora, Francisco tem se mantido à margem, evitando comentar diretamente sobre o projeto de lei. Com efeito, isso está criando uma situação em que tanto os partidários quanto os opositores acabam citando o papa, com os partidários frequentemente lembrando o 'quem sou eu para julgar?', enquanto os opositores têm apelado às críticas do papa à 'teoria de gênero' e sua insistência em que o casamento é um vínculo entre um homem e uma mulher", escreve John L. Allen Jr., em artigo publicado por Crux, 20-07-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O papa é uma figura que geralmente tenta se manter acima das disputas havidas na política nacional dos diversos países. Isso, porém, fica um pouco complicado na Itália pelo fato de o papa também ser o bispo primaz e o bispo de Roma. Por isso, ele constantemente se vê pressionado a participar do que ocorre na península.
Nesse exato momento, o melhor exemplo é um projeto de lei italiano contra a homotransfobia, que os apoiadores definem como uma medida necessária para proteger uma minoria vulnerável, enquanto alguns críticos, entre eles os bispos italianos, o concebem como uma possível violação da liberdade de expressão e da liberdade religiosa.
Embora a proposta tenha sido apresentada sob diferentes formas, um texto recém-unificado e adotado esta semana estenderia as disposições existentes sobre discursos de ódio na Itália com base em motivos étnicos, raciais e religiosos em quatro novas categorias: “sexo, gênero, identidade de gênero e orientação sexual”. Se aprovada, a lei estabeleceria uma pena de até quatro anos da prisão por crimes motivados por “estigma sexual, em particular em relação a pessoas homossexuais ou transexuais”.
O principal proponente do projeto é um membro da Câmara dos Deputados da Itália pelo Partido Democrata, de esquerda, chamado Alessandro Zan, conhecido ativista LGBT e participante do grupo de direitos gays Arcigay. Segundo Zan, o projeto é necessário por causa de uma “diferença irracional” na lei atual.
“No momento, segurar um cartaz racista em um estádio de futebol, pelo menos em teoria, é contra a lei”, diz Zan, “mas segurar exatamente o mesmo cartaz dirigido aos homossexuais é a expressão de uma opinião”.
A poderosa conferência episcopal da Itália, CEI, divulgou uma nota em meados de junho onde insiste que é desnecessária uma nova lei.
“Não apenas inexiste um vácuo regulatório, mas também inexistem lacunas que justifiquem a urgência de novas disposições”, escrevem os bispos.
Além disso, segundo os bispos a linguagem empregada no projeto em consideração poderia acabar criminalizando as manifestações de apoio à família tradicional fundada na união entre um homem e uma mulher.
“Em vez de punir a discriminação, essa lei acabaria atingindo a expressão de uma opinião legítima, conforme aprendemos com a experiência dos sistemas jurídicos de outros países nos quais já foram introduzidas regulamentações semelhantes”, lê-se no texto publicado pela CEI.
Os bispos citam os processos havidos em alguns países contra pessoas “que acreditam que a família exige um pai e uma mãe” e alertaram que o projeto de lei poderia criar um “crime de opinião”.
Alguns observadores católicos foram muito mais incisivos em suas críticas. Por exemplo, no mês passado o jornalista católico italiano Marco Tosatti publicou um artigo sobre o projeto intitulado “O ataque mais grave à liberdade na era republicana”, isto é, desde o fim do fascismo italiano.
Por outro lado, o jornal da conferência dos bispos, o Avvenire, escreveu que a proposta de lei não deveria ser ignorada simplesmente como uma “propaganda política LGBT”, e o padre jesuíta Antonio Spadaro, figura próxima do Papa Francisco, tuitou, em 15 de junho – cinco dias depois de os bispos escreverem que não havia necessidade de uma nova lei –, que “é necessário apoiar normas cujo sentido seja o de defender pessoas vulneráveis”, acrescentando que tais medidas também “não devem ofender ideias legítimas”.
Podemos ver as paixões despertadas pelo projeto de homotransfobia em uma situação surreal ocorrida na cidade de Lizzano, na última terça-feira, 14 de julho, onde o pastor local autorizou que os fiéis segurassem um rosário “para defender a família contra as ameaças atuais, o que inclui o projeto de lei contra a homotransfobia”.
Quando a notícia veio à tona, um pequeno grupo de ativistas LGBTs se formou no lado de fora da igreja para expressar apoio ao projeto de lei, após o que o pastor, o Pe. Giuseppe Zito, chamou a polícia militar, os carabinieri, que fazem a segurança em eventos públicos. Quando chegaram, os agentes pediram que os manifestantes se identificassem com algum documento.
A essa altura, a prefeita local, que é pediatra e mãe de quatro filhos chamada Antonietta D’Oria, apareceu, mais tarde dizendo que foi sem querer que ela esteve ali; D’Oria teria ido a um bairro perto de onde fica a igreja para pegar um bolo de aniversário para uma das filhas. Ao ver o que estava acontecendo, pediu aos carabinieri que parassem de verificar as identidades dos manifestantes e, em vez disso, fossem à igreja ver quem eram aquelas pessoas.
No final, a polícia conferiu a identidade dos ativistas e não aconteceu nada demais. No entanto, a ideia de a polícia pedir pelas identidades de quem estava dentro de uma igreja para rezar o rosário fez surgir a ideia de uma possível violação da liberdade religiosa e de possíveis violações à Constituição.
Enquanto isso, D’Oria, mesmo insistindo que o papel dela era puramente secular, permitiu-se dar à paróquia alguns conselhos.
“A Igreja é uma mãe, e mãe alguma iria rezar contra os próprios filhos, não importa qual seja sua orientação sexual deles”, disse ela.
Ela também invocou o Papa Francisco: “Não me parece que nosso grande papa diga o tipo de coisa usada aqui para justificar o rosário”, disse D’Oria.
Até agora, Francisco tem se mantido à margem, evitando comentar diretamente sobre o projeto de lei. Com efeito, isso está criando uma situação em que tanto os partidários quanto os opositores acabam citando o papa, com os partidários frequentemente lembrando o “quem sou eu para julgar?”, enquanto os opositores têm apelado às críticas do papa à “teoria de gênero” e sua insistência em que o casamento é um vínculo entre um homem e uma mulher.
Uma votação no parlamento deve ocorrer em 27 de julho, o que significa que as disputas sobre qual a posição adotada pelo papa diante do caso talvez fiquem mais acirradas ainda, gerando uma pressão para ele ou se posicione ou explique por que tem se mantido de fora do debate.
Aqui na Itália, os especialistas costumam falar da perspectiva de um autunno caldo, ou seja, um “outono quente”, quando as movimentações políticas recomeçam após o recesso de agosto. Este ano, no entanto, para o Papa Francisco, esse “outono quente” já pode ter chegado.
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Papa Francisco talvez sinta o calor do debate sobre a “homotransfobia” na Itália - Instituto Humanitas Unisinos - IHU