28 Julho 2020
"Tendo assumido também o horizonte evolutivo, o Concílio introduziu um espírito novo que implica a contínua adequação aos processos culturais da humanidade a caminho, de acordo com a convicção de que o reino de Deus deve ser realizado na história através de escolhas correspondentes ao Evangelho", escreve Carlo Molari, teólogo italiano, padre e ex-professor das universidades Urbaniana e Gregoriana, em Roma, em artigo publicado por Rocca, n. 14, 15-07-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
À medida que o Concílio Vaticano II se afasta no tempo, as suas dimensões se ampliam, e aparece com maior clareza a virada provocada na Igreja Católica e, consequentemente, também em outras Igrejas cristãs.
Gostaria de propor algumas reflexões sobre uma intervenção do historiador bolonhês Enrico Morini nas polêmicas de alguns anos atrás sobre as novidades introduzidas pelo Concílio Vaticano II. A intervenção se intitula: “Continuidade ou ruptura?” e está datada de 13 de junho de 2011.
A sua posição cultural está claramente delineada: “Não sou um teólogo, nem tenho a veleidade de assumir o seu papel. Por vocação, em vez isso, sou um historiador. Ponho como premissa também que, embora sendo bolonhês – por nascimento, formação, residência, docência – e de fervorosa fé dossettiana – o Pe. Giuseppe Dossetti foi o meu pai espiritual e o meu ponto de referência religioso –, não tenho nenhum vínculo, nem científico nem acadêmico, com a ‘escola bolonhesa’”, que à época se referia a Giuseppe Alberigo (1926-2007) e hoje se refere a Alberto Melloni (1956).
A posição de Morini é declarada claramente, mesmo que, no fim, talvez, não seja completamente coerente. Esta é a declaração: “Ora, na minha hermenêutica pessoal, mas convicta, do Vaticano II, o Concílio foi, ao mesmo tempo, intencionalmente, tanto continuidade quanto ruptura”.
Para esclarecer bem o problema, ele mesmo se interroga: “Em relação a quê” se fala de continuidade ou ruptura? Talvez à tradição católica? E ele esclarece: “Pergunto-me se a tradição, mesmo dentro da própria Igreja, é um fato unívoco ou, em vez disso, há uma pluralidade de tradições na sua diacronia mais do que milenar”.
Por outro lado, desculpando-se pela excessiva esquematização, ele se declara convencido de que a “recuperação, por parte da Igreja Católica, da tradição do primeiro milênio, envolveu, de fato, uma ruptura implícita com a tradição católica do segundo milênio”.
Como historiador, ele insiste: “Não é verdade, na minha opinião, que não tenha havido rupturas na tradição da Igreja. Já houve um hiato, precisamente na passagem do primeiro para o segundo milênio, com a virada imprimida pelos reformadores ‘lorenenses-alsacianos’ (como o Papa Leão IX, assim como dois dos três legados em Constantinopla no fatídico 1054, os cardeais Umberto e Stefano di Lorena, futuro papa) e pela chamada reforma ‘gregoriana’, e depois por uma abordagem eminentemente filosófica das verdades teológicas e pelo transbordante interesse pela canonística (já lamentado por Dante Alighieri), às custas das Escrituras e dos Padres, próprios da plena era medieval. Sem falar, depois, da reforma tridentina, com a rígida dogmatização – indo além até dos pressupostos da Igreja medieval –, assim como do ‘sequestro’ das Escrituras aos simples fiéis, até a apoteose da ‘monarquia’ pontifícia no Concílio Vaticano I, relegando ainda mais para o segundo plano o perfil da Igreja indivisa do primeiro milênio. Não é de se admirar: justamente porque a Igreja é um organismo vivo, a sua tradição está sujeita à evolução, mas também a involuções”.
Tenho a impressão de que Morini não aceita todas as novidades que estão emergindo na história eclesial. Pareceria quase que, com o Vaticano II, as novidades são tão numerosas a ponto de não permitir um desenvolvimento a mais ou, melhor, de impedir toda nova modificação. Como prova da ruptura realizada com o retorno ao primeiro milênio, Morini traz dois exemplos: a recuperação da colegialidade episcopal (também com a retomada do diaconato permanente) e a reforma litúrgica. A recuperação da colegialidade despertou a resistência de juristas e teólogos que temiam o ofuscamento do primado do bispo de Roma.
Morini observa: “Ora, precisamente, a colegialidade dos bispos é uma característica própria da eclesiologia do primeiro milênio, também no Ocidente, onde estava perfeitamente conjugada com o primado romano. É indicativo que, no primeiro milênio, todos os pronunciamentos dogmáticos romanos que os legados papais levavam ao Oriente nos Concílios Ecumênicos – relativos às questões neles debatidas – eram precedidos por um pronunciamento sinodal de todos os bispos aferentes à jurisdição superepiscopal de Roma”.
Nessa perspectiva, ele observa que o temor de ofuscar o primado papal impediu que se atribuísse ao Sínodo o poder deliberativo. O fato de ter atribuído ao Sínodo apenas a função consultiva “não tira todas as consequências plenas do ensinamento do Vaticano II a respeito da colegialidade episcopal”. Nessa mesma perspectiva, a introdução do diaconato permanente como grau da ordem sagrada também foi uma recuperação da tradição do primeiro milênio.
O segundo exemplo é ainda mais significativo. Diz respeito à reforma litúrgica. A crítica que é dirigida pelos tradicionalistas à reforma litúrgica de trair a tradição é expressão de ignorância dos fatos reais. De fato, identifica-se a tradição unicamente com as decisões tridentinas.
Na realidade, Morini, como historiador, pode atestar: “Talvez não tenhamos bem em mente que o incriminado novo missal contém a fantástica recuperação de orações tiradas dos mais antigos sacramentários que remontam precisamente ao primeiro milênio, o Leoniano, o Gelasiano e o Gregoriano, além, para o Advento, do patrimônio eucológico do antigo Rolo de Ravena, tesouros que permaneceram em grande parte fora do missal tridentino. O mesmo vale para a recuperação, no contexto de uma oportuna pluralidade de orações eucarísticas, da antiga anáfora de Hipólito e de outras retiradas da tradição hispânica. Nesse sentido, o missal ‘conciliar’ é muito mais ‘tradicional’ do que o anterior”. De fato, ele se move na direção “de uma recuperação da grande tradição do primeiro milênio, o da Igreja indivisa”.
Merece um esclarecimento a expressão “patrimônio eucológico do antigo Rolo de Ravena, tesouros que permaneceram em grande parte fora do missal tridentino”, já que a fórmula é utilizada em várias ocasiões. O amigo Piero Stefani me comunica que, neste caso, o antigo “Rolo de Ravena” designa uma faixa de pergaminho com pouco menos de quatro metros de comprimento mutilada nas extremidades, um singular testemunho eucológico que remonta aos séculos VI-VII, com influências de área norte-italiana e com possíveis influências gálicas.
Ele contém 42 orações para o Advento até a Vigília de Natal, trata-se de um tipo de “oracional” para uso do celebrante, provavelmente para o Ofício Divino. A edição do texto latino com versão italiana é da G. M. Vannucci: “Rotolo di Ravenna. Orazioni per l’Avvento” (Vicenza: Edizioni patristiche di Santa Maria di Monte Berico, 1967). Agradecido pela indicação, transcrevo-a para a utilidade dos leitores.
Mas não gostaria que, a partir dessas fórmulas, se deduzisse que o Concílio não introduziu novidades. Ele o fez, mas não as introduziu como dogma e não as impôs como prática absoluta. Morini acrescenta, a esse respeito: “Em vez disso, sinto a necessidade de compartilhar com a ‘escola bolonhesa’ a possibilidade ou, melhor, a oportunidade de uma leitura ‘acrescitiva’ do Concílio, coerente com os seus princípios inspiradores (a expressão é de Alberto Melloni), que permite ou, melhor, sugere que o supremo magistério tome decisões hoje que o Vaticano II, no clima histórico do momento, não pudera levar em consideração. Esse princípio inspirador – naquela que considero como a correta hermenêutica do Concílio – é precisamente a retomada da tradição do primeiro milênio, como enfatizou implicitamente o cardeal Ratzinger quando escreveu que [...] aos ortodoxos, na fisionomia de uma Igreja finalmente reunificada, não é preciso impor nada mais do que aquilo que eles acreditavam no primeiro milênio de comunhão”.
Esse princípio, porém, não deve levar à rejeição de toda novidade que se refira ao espírito do Concílio. Como, pelo contrário, Morini parece defender na sua conclusão, ao escrever: “Em suma, para encerrar estas minhas considerações pessoais com uma fórmula sintética, promovendo a renovação da Igreja, o Concílio não pretendeu introduzir algo novo – como progressistas e conservadores, respectivamente, desejam e temem –, mas sim retornar àquilo que se havia perdido”.
Esse certamente é um aspecto importante do Concílio Vaticano II, mas não é o único. Tendo assumido também o horizonte evolutivo, o Concílio introduziu um espírito novo que implica a contínua adequação aos processos culturais da humanidade a caminho, de acordo com a convicção de que o reino de Deus deve ser realizado na história através de escolhas correspondentes ao Evangelho.
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O Concílio Vaticano II no caminho da Igreja. Artigo de Carlo Molari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU