25 Janeiro 2020
“Justamente, e de forma não apenas afetuosa, Francisco chamou o bispo emérito com a palavra ‘avô’, que não deve ser subestimada. Bento, de fato, foi um pai do Concílio, e o Concílio, como um filho que se tornou adulto, gerou Francisco. O papa responde, como um filho, ao Concílio e sobre o Concílio.”
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, em Pádua. O artigo foi publicado por Come Se Non, 24-01-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“É triste ver o bispo emérito de Roma se afastar do seu próprio legado conciliar.” Em um artigo breve e denso para a revista Commonweal (“Desvio teológico: a alienação de Bento em relação a Ratzinger”), Massimo Faggioli reflete cuidadosamente sobre algumas implicações que o recente livro “Do fundo de nossos corações” [em tradução livre] – assinado por R. Sarah e por Bento XVI – suscita no leitor. O cerne da consideração é o Concílio Vaticano II e a sua herança problemática em J. Ratzinger.
Gostaria de sintetizar brevemente a tese de Faggioli, para depois valorizar ainda mais alguns de seus aspectos.
A análise de Massimo Faggioli é convincente ao evidenciar um paradoxo: no triste livro sobre celibato, propõe-se uma teoria do sacerdócio totalmente desprovida de referências ao Concílio Vaticano II, enquanto J. Ratzinger foi certamente um dos “pais” do Concílio. Como é possível?
Faggioli ilustra brevemente uma “história da alienação de Bento XVI em relação ao Concílio”, cujas etapas remontam ainda a 1965, depois às experiências de 1968-1969, em seguida à sua longa experiência como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e, por fim, a três lugares “tópicos” do pontificado de Bento XVI : o discurso à Cúria Romana de 2005 sobre a “hermenêutica do Concílio”, a prolusão de Regensburg em 2006 e o motu proprio Summorum pontificum de 2007, até chegar ao discurso ao clero romano, de fevereiro de 2013.
Mas isso não basta. Porque os anos do “emeritado” amplificaram, de algum modo, esse “desconforto” e o conectaram indiretamente às alas mais extremas da reação contra o Papa Francisco. De uma forma dificilmente controlável, afirmações individuais do período papal e novas expressões do período do emeritado são explicitamente jogadas em função “antipapal”, criando uma tensão que dificilmente pode ser institucionalmente controlada e orientada. E o bispo emérito se encontra posto, assim, para além das suas intenções, em profundo contraste com a Igreja que ele ajudou a edificar.
Entre as coisas mais penosas do recente livro sobre o celibato está a repetição do conceito de “obediência filial” que os autores expressam em relação ao Papa Francisco. É triste ver o conceito de filialidade usado de um modo tão hipócrita, ainda mais por parte de “pais” bispos. E o desânimo é ainda mais forte, porque ser “pai” e “filho” é, para a experiência eclesial, algo totalmente decisivo.
Aqui, no entanto, o fundamental não é que Francisco seja “pai” para Ratzinger e Sarah, ou que Francisco considere Ratzinger “como um avô”. Fundamental é reconhecer que a relação de J. Ratzinger e a de J. Bergoglio com o Concílio Vaticano II são diferentes. J. Ratzinger, nunca se repetirá o suficiente, é um “pai/padre conciliar”. E o é de uma forma “anômala” – padres conciliares são, com efeito, aqueles que eram bispos durante o Concílio, como ainda hoje Luigi Bettazzi –, mas também é verdade que J. Ratzinger foi, sem dúvida, um dos teólogos que mais influiu em muitas decisões conciliares.
Portanto, sem forçação, ele pode ser considerado “pai”: porque lê, vive e considera o Concílio “como seu filho”. Portanto, ele traz a sua responsabilidade por ele, sente-se causa dele e o vive, como é inevitável para os pais em relação aos filhos, também com um sentimento de culpa. Essa relação de paternidade pareceu, em alguns casos, chegar até ao “desconhecimento do filho”, na figura de um pai que não reconhece mais o Concílio como “seu filho” e que o desmente aberta e pesadamente. A ponto de reconstruir a realidade da liturgia, da Igreja, do sacerdócio “como se o Concílio nunca tivesse existido”, tratando o Concílio, ousaria dizer, “perinde ac cadaver”.
É evidente, porém, que essa relação de paternidade desconhecida não pôde impedir que o Concílio, gerado e tornado adulto, se tornasse, por sua vez, “pai” e também gerasse filhos. Jorge Mario Bergoglio é “filho do Concílio”, acima de tudo por um motivo: como todos os filhos, ele não traz sobre si a responsabilidade dos pais. São os pais que se sentem responsáveis pelos seus filhos. Os filhos, não. E são filhos justamente por isso!
A diferença de datas biográficas entre Ratzinger e Bergoglio é decisiva aqui: Ratzinger nasceu em 1927 e foi ordenado presbítero em 1951, aos 24 anos; Bergoglio nasceu apenas nove anos depois, em 1936, mas foi ordenado presbítero apenas em 1969, aos 33 anos. Entre as duas ordenações, há quase uma geração.
Nessa diferença, o Concílio Vaticano II se insere como mediação fundamental. O imaginário eclesial, a autoconsciência ministerial, a valorização da liberdade de consciência e a correlação com as outras confissões e fés são, em Francisco, marcados “na carne e no sangue” pelas palavras conciliares. Poderíamos dizer que, para Bergoglio, o Concílio é uma língua materna vital, enquanto, para Ratzinger, é fruto de uma aguda reflexão intelectual.
Os pais deixam a herança para as gerações posteriores. Para a Igreja em caminho, essa verdade permanece decisiva. Ora, na história que estamos considerando, devemos reconhecer que cada geração tem as suas razões. Há razões para elaborar o remorso e razões para se lançar no entusiasmo. Mas a relação entre Bento XVI e Francisco não é uma relação direta.
Justamente, e de forma não apenas afetuosa, Francisco chamou o bispo emérito com a palavra “avô”, que não deve ser subestimada. Bento, de fato, foi um pai do Concílio, e o Concílio, como um filho que se tornou adulto, gerou Francisco. O papa responde, como um filho, ao Concílio e sobre o Concílio.
Esse caminho encontra na instituição do “papa emérito” um elemento de possível alteração, pois tende a “frear a evolução”, que é vital para a Igreja. Se, além disso, uma “corte do papa emérito” favorece uma reelaboração da tradição, na qual os avós repudiam filhos e netos, e dilaceram a normal tradição eclesial, então é claro que um sentimento de tristeza envolve toda a história, e uma demanda institucional de clareza se torna ainda mais razoável.
E, assim, o filho do Concílio, Francisco, deve agora cuidar do pai Vaticano II e se torna, de algum modo, um pouco responsável por ele, também para protegê-lo das intemperanças com as quais o avô, mas sobretudo os amigos do avô, continuam a assediá-lo. Essa é a “obediência filial” de que precisamos.
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Pais e filhos do Vaticano II: em diálogo com Massimo Faggioli. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU