15 Julho 2020
De 2016 a 2019, a população brasileira afetada pela insegurança alimentar moderada e aguda aumentou de 37,5 milhões para 43,1 milhões.
Mesmo com o cenário retratado pelo relatório Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo 2020 (State of Food Security and Nutrition - SOFI) e uma crise socioeconômica sem precedentes, o país não retornou ao chamado Mapa da Fome, desenvolvido pela Organização das Nações Unidas (ONU) com base nos dados levantados pelo documento.
No entanto, isso não significa que o Brasil tenha enfrentado essa mazela social. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, o diretor do Centro de Excelência Contra a Fome do Programa Mundial de Alimentos da ONU (WFP, na sigla inglês), Daniel Balaban, explica que as informações apresentadas nesta segunda-feira (13) pelo novo relatório, ainda não consideram os impactos socioeconômicos da crise do novo coronavírus, adiando o retorno do Brasil ao Mapa.
Para diretor do Centro de Excelência Contra a Fome no Brasil, apoio ao pequeno agricultor é crucial para combater a insegurança alimentar no país
(Foto: Arquivo/Agência Brasil)
Segundo Balaban, mesmo as consequências das políticas de ajuste fiscal e do desmonte de políticas de proteção social dos últimos anos, processos anteriores à pandemia, serão registrados a médio e longo prazo pelos órgãos internacionais.
“É muito provável que nos próximos relatórios o Brasil apareça como um país com mais de 5% de pessoas em insegurança alimentar e nutricional”, afirma.
Para ele, o processo de retorno ao Mapa da Fome já está em curso .“Nosso caminho hoje vai fazer com que aumentemos e muito o número de pessoas em extrema pobreza no país em 2030. Os reflexos não acontecem de um ano pro outro. [As políticas] do início dos anos 2000 tiveram reflexo no Mapa da Fome em 2014/2015, 15 anos depois”, exemplifica, retomando a saída do Brasil do levantamento.
Na avaliação de Balaban, caso as políticas sociais continuem sendo deixadas de lado e as políticas voltadas para a agricultura familiar, responsável pela produção de 70% da alimentação no país, não sejam retomadas a todo vapor, a perspectiva é negativa. “Se nada for feito, não existe milagre. Vamos ao caminho de volta ao Mapa da Fome”.
O diretor da ONU Brasil cita o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), como políticas essenciais neste momento.
A entrevista é de Lu Sudré, publicada por Brasil de Fato, 14-07-2020.
Conforme o relatório, a insegurança alimentar severa caiu no Brasil, passando de 3,9 milhões de pessoas entre 2014-2016 para 3,4 milhões entre 2017 e 2019. No entanto, devido à crise, havia uma previsão que o Brasil entraria no Mapa da Fome. A que se deve essa pequena diminuição e a porque o país não entrou no Mapa da Fome?
O relatório é um reflexo de 2019, não considera o coronavírus, o que está acontecendo agora, em 2020. Quando se fala muito da fome, é a partir de agora, de 2020. É muito provável que nos próximos relatórios o Brasil apareça como um país com mais de 5% de pessoas em insegurança alimentar e nutricional.
Tudo são estatísticas, determinadas filtragens. Durante muito tempo, o relatório não levava em conta a influência dos programas de alimentação escolar. Não levava em conta que as crianças das famílias eram alimentadas nas escolas.
Só considerava os pais. Em nível global, isso tudo pesa, porque significa que elas recebem uma alimentação saudável na escola, apesar dos pais não terem dinheiro. O Estado banca isso por meio da alimentação escolar e esse processo, por muito tempo, não estava aparecendo. Por isso ainda há reflexos.
O Brasil ainda não está no Mapa da Fome. Mas, tendo em vista o que temos visto hoje, quais as perspectivas?
A perspectiva é que, se não houver uma volta à dinamização de programas como existiam antes, como Pronaf, como PAA, como cisternas e o fortalecimento da alimentação escolar, programas de incentivo ao agricultor familiar... Se nada for feito, não existe milagre. Vamos ao caminho de volta ao Mapa da Fome.
Precisamos principalmente de crédito para os agricultores por meio do Pronaf. O caminho está dado. Se o governo, e aí incluo legislativo, governos estaduais, municipais e federais, todos juntos, se considerarem que precisa combater a fome, tem que começar dinamizando e olhando pro pequeno agricultor familiar. É por ele que vamos conseguir fazer a coisa funcionar. E pra isso precisamos de apoio. Dar o que já foi feito há anos atrás. Não é reinventar a roda. Basta voltar ao que foi bem sucedido. O Brasil ganhou prêmios no mundo. Só voltar aquilo que já foi feito um dia.
Durante a conferência de lançamento do relatório, a Mona Jull, presidente do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (Ecosoc) falou sobre a transformação da agricultura para combater a fome. Como isso se daria? Se as pessoas não tem acesso à comida saudável, o que é preciso fazer para que passem a ter?
Sistemas alimentares curtos. Fazer com que as pessoas consumam alimentos de produtores de uma determina região. Que consumam os produtos produzidos por eles e não consumam os produtos da grande indústria.
A grande indústria é muito poderosa e consegue fazer com que seu pacote de biscoito, dando um exemplo, chegue a lugares muito distantes, com quantidade baixíssimas de nutrientes e em um preço muito baixo.
Então muitos trabalhadores se alimentam, às vezes, no dia a dia, com isso. Ele abre um pacote de biscoito, toma uma coca cola e acha que está alimentado. Temos que fazer com que os alimentos produzidos na região, tenham sistemas nos quais seja possível comercializar esses alimentos para as pessoas, que elas tenham acesso com o preço que os produtores recebem.
E isso, muitas vezes, é difícil. É preciso transformar os sistemas alimentares em várias regiões do mundo porque muito desses pequenos agricultores não conseguem vender sua produção, perdem muito do que produzem, ou vendem a um preço muito baixo. Principalmente para a indústria transformadora. Que vai transformar aquela produção em produtos ultra processados.
Não existe combate à fome sem ajuda ao pequeno agricultor familiar. Não existe. É por ele que vamos conseguir combater a fome e a desnutrição.
O que temos que fazer? Ajudar o pequeno produtor para que ele consiga se inserir nos mercados, fazendo com que ele tenha o financiamento para sua produção, que o dinheiro chegue para ele. É coisa simples mas que não acontece.
No Brasil, tínhamos muito. O PAA era um deles, o Programa de Aquisição de Alimentos. Chegamos a ter R$ 1,2 bi para os pequenos agricultores. Hoje não checa a R$ 100 milhões.
O pequeno agricultor precisa de apoio, de financiamento e de organização para que possa produzir, se organizar em grupos, cooperativas, e também possam processar minimamente aquela produção e fazer com que chegue aos mercados. Às vezes não tem mercado para isso e é isso que o Estado tem que estimular.
Organizar cooperativas, ajudar no crédito, ajudar o agricultor a fazer a melhor uso da sua técnica de produção, das sementes, da sua água.
É a única saída. O pequeno agricultor é quem faz o alimento saudável. Ovos, leites, iogurte, frutas, legumes, verduras. Tudo que tem os nutrientes que precisamos está nas mãos dos pequenos agricultores, não está nas mãos do grande.
Então é o pequeno agricultor que conseguirá fazer essa mudança, romper com esse processo?
Ele é o agente, mas quem vai fazer é o Estado. Ai que está o drama. Se o Estado não tem interesse, ou não procura fazer, temos o que temos hoje. Mudou-se a política. Tudo é uma questão de política. Se o Estado não tem uma política de tentar engrandecer ou melhorar a produção do pequeno agricultor familiar, ele fica perdido.
O nosso agribusiness no Brasil é um dos mais fortes do mundo. Nunca o Estado deixa de colocar dinheiro. Toda hora, por meio de subsídios e dos dinheiros de recursos do Banco do Brasil, toda safra tem muito dinheiro para plantarem e produzirem. Quando não tem, é uma chiadeira. Agora, o pequeno não tem esse poder de convencimento. Muitas vezes cortamos determinados apoios do Estado que são básicos para ele, são fundamentais. Tem que fazer o contrário. Dinamizar a produção do pequeno agricultor se você quer combater a fome.
Não existe combate à fome sem ajuda ao pequeno agricultor familiar. Não existe. É por ele que vamos conseguir combater a fome e a desnutrição.
Mesmo essa diminuição no número de pessoas em insegurança alimentar severa, ainda que pequena, aconteceu por conta de anos de um programa que envolve o pequeno agricultor…
Exatamente. Isso é reflexo dessas políticas. As coisas são lentas. As pessoas podem olhar os números e achar que estamos no caminho certo. Não, nós não estamos no caminho certo. Nosso caminho está errado. Os números estão indicando. Temos que voltar aos trilhos do início do século, do início dos anos 2000. Foi aquele caminho que fez que atingíssemos os números que temos hoje.
Nosso caminho hoje, vai fazer com que aumentemos e muito o número de pessoas em extrema pobreza no país em 2030. Os reflexos não acontecem de um dia pro outro, de um ano pro outro. O início dos anos 2000 teve reflexo no Mapa da Fome em 2014/2015, 15 anos depois. Hoje, o que estamos fazendo, terá um reflexo depois.
O que temos que entender é que não estamos fazendo o dever de casa certo. Temos que voltar a ajudar e fortalecer os agricultores familiares que são a grande força da produção nacional de frutas, verduras e legumes. Cerca de 70% dos alimentos que consumimos vêm deles. Sem eles, inevitavelmente vamos entrar nesse processo de novo. Eles são afetados e acabam largando suas glebas, suas terras, para ir para as grandes cidades. Em busca de uma esperança.
Mas o que eles precisam mesmo é ficar no campo. Produzindo. Que é o que eles sabem, gostam, precisam e querem fazer. Eles só precisam de apoio. E ele não é caro. O custo da fome, da miséria, é muito maior do que o investimento na estruturação do pequeno agricultor familiar.
O que está acontecendo hoje e as mudanças das políticas vão ter reflexo daqui a dois, três, quatro, cinco anos. E vai ser muito duro.
Para além do não acesso à alimentação, o relatório deu destaque para a qualidade da alimentação. Por que é necessário trazer essa discussão à tona?
Pela primeira vez, entra uma questão nutricional que é muito, muito importante. Durante muito tempo, se achava que encher a barriga com alguma coisa estava se salvando a pessoa da morte. Logicamente em lugares onde não há alimentos produzidos, é preciso manter a pessoa viva.
Mas isso vai fazer com que ela continue desnutrida. Enfrentar a fome dando uma garrafa de coca-cola e biscoito recheado, a pessoa vai saciar a fome, mas continuará desnutrida como qualquer outro. Ali só tem puro açúcar e carboidrato. O que vai acontecer? Terá outros males e outros problemas de saúde relacionados à má nutrição.
O obeso também é um desnutrido, porque não tem os nutrientes necessários para sua alimentação saudável. Hoje, as Nações Unidas preconizam que é preciso refeições equilibradas, com proteínas, com carboidratos, com todos os nutrientes necessários, com todas as vitaminas. Para isso, é preciso de alimentos in natura e não alimentos processados ou ultra processados, como biscoitos recheados e congelados.
Mas, [os alimentos in natura] são muito mais caros. As pessoas não têm acesso porque acaba, em várias partes do mundo, sendo muito mais caro ter uma alimentação de qualidade do que ir no mercado da esquina porque a porcaria chega com um preço muito mais baixo.
Preconiza-se que comecemos a verificar a qualidade da nutrição que as pessoas estão tendo. Hoje, estima-se que 3 bilhões de pessoas no planeta não tenham recursos, não tenham condições, mesmo que queiram, de ter uma alimentação realmente saudável. Sabe aquela alimentação que tem todos os nutrientes, todas as proteínas, tudo equilibrado, para comer todos os dias? Elas não têm dinheiro para isso.
É muito mais fácil e barato comprar qualquer porcaria em um supermercado ou em alguma lanchonete e se alimentar com aquilo. Principalmente os refrigerantes, que são uma praga mundial, não só eles como os sucos açucarados, que estão fazendo com que as pessoas estejam ficando diabéticas.
Em tudo quanto é lugar tem todo tipo de refrigerante. As pessoas vão ter outros tipos de doença. Não adianta dizer que não está com fome. Não está com fome mas não está nutrido.
Então agora, o relatório começa a preconizar uma dieta saudável, com os nutrientes necessários, tudo para que a pessoa realmente não tenha os efeitos de uma má nutrição que vão acabar recaindo no sistema de saúde.
Quais fatores levaram esse aumento da fome de forma tão acentuada na América Latina e Caribe? O que há em comum entre os países mais afetados?
A desigualdade. A desigualdade extremamente grande e crescente. A maioria dos países da América Latina enfrentaram governos com políticas mais restritivas. Ou seja, as políticas sociais foram colocadas de lado e políticas de estabilização fiscal foram colocadas em prática.
O que significa isso? Que menos dinheiro vai para as políticas sociais. Isso aconteceu em todos os países. Colômbia, a Argentina antes do novo presidente, Venezuela com uma situação deteriorada por causa do embargo, os países da América Central toda como a Guatemala, El Salvador, Honduras, Haiti, todos eles seguem a mesma cartilha.
Durante muito tempo, eles começaram políticas de investimento social maior. E a partir de 2015, 2016, começou a ter mudanças. Se formos analisar, a América Latina anda em bloco. Nos anos 60, um país entrou em ditadura militar, os outros países a mesma coisa. Um saiu, os outros saíram. Governos mais a esquerda em todos os países. E agora vemos a volta às políticas conservadoras, de equilíbrio fiscal e de diminuição das políticas sociais.
Isso aconteceu com Brasil, com Argentina, com o Chile, com todos os países da América Latina. E aí é inevitável que aumente o número de pessoas passando fome. Esse tipo de política faz com que se aumente a desigualdade. Não tem como.
Se há diminuição das políticas sociais, que são a forma de colocar mais recursos nas mãos dos mais pobres, continua concentrando-se renda. A América Latina é uma das regiões mais concentradoras de renda do mundo.
O que deveria ser feito para reverter esse cenário?
Desconcentrar renda, criar renda básica universal, voltar a fomentar políticas sociais. Na semana passada, o secretário-geral da ONU soltou um relatório e fala exatamente sobre isso, colocando em perspectiva a América Latina com apoio da Cepal [Comissão Econômica para América Latina e Caribe].
Há uma análise econômica, mostrando tudo que aconteceu e tudo que a América Latina tem que fazer para voltar a entrar no track de novo para conseguir, em 2030, atingir as metas.
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