08 Julho 2020
“O humano não é linear. No entanto, a utopia digital, versão atualizada da ideia de progresso, acabou alterando o conceito da existência humana. É o mundo que chega pelas mãos de Bill Gates, Steve Jobs, Mark Zuckerberg, Jeff Bezos e seus acólitos. O sonho do Vale do Silício, nucleado em torno da ideologia da inteligência artificial. O ser humano como operador sistêmico, executor de um mundo que não lhe pertence. Não mais indivíduos, mas uma soma de pixel para sua identificação e controle”, escreve Marcos Roitman Rosenmann, analista político e ensaísta chileno-espanhol, em artigo publicado por La Jornada, 07-07-2020. A tradução é do Cepat.
O humano do ser humano se congelou. A pandemia evidencia a fragilidade de nossas existências. Não é próprio da espécie passar semanas ou meses confinados em um espaço fechado, muitas vezes claustrofóbico. As causas são diversas, mas sempre por causa da intervenção do ser humano.
Em 2010, por falta de investimentos em segurança, 33 mineiros ficaram presos durante 69 dias na mina de San José, no Chile. Seus relatos são significativos. Forjar moral, evitar discussões, racionar o alimento. Foi uma situação extraordinária, em condições extremas. Em semiescuridão, com um ar contaminado, a centenas de metros de profundidade, precisaram se unir, cooperar e esperar um resgate. Viver para ser libertados.
Mas, em 2020, uma decisão política frente a uma crise produto do capitalismo selvagem, mistura de opulência e extrema pobreza, fome induzida e especulação alimentar, aquecimento global, extrativismo e poluição nos chamou a um confinamento de urgência. As classes dominantes e suas organizações são responsáveis pelo colapso não apenas sanitário, mas da desumanização. Suas ambições, desatinos e egoísmo competitivo, em nome da economia de mercado, manipulou a natureza. As doenças zoonóticas se expandem.
A Covid-19 coloca o mundo de pernas para o ar. A saída, congelar o humano. A mensagem: a vida social é adiada até nova ordem. Ninguém entra, nem sai, um cerco à mobilidade. Ansiedade, medo, perda de referências, estresse, depressão, condutas autolíticas, são alguns sintomas derivados de um isolamento não desejado e de uma socialização abruptamente paralisada. A natureza social nos obriga a expandir o mundo. Os abraços, beijos, apertões de mão, jogos, celebrações, definem a cultura, inclusive o ritual da morte. Velar o falecido, o luto e o enterro foram suspensos. Não foi possível socializar a dor e a perda. A vida online é uma excrescência.
Não importa onde, as sociedades humanas descansam no contato físico. A reprodução sexual é uma demonstração do dito. A antropobiologia do ser social é expansiva. Linguagem, comunicação, sentimentos, emoções e gestos são um ponto de partida, não de chegada. O humano não é linear. No entanto, a utopia digital, versão atualizada da ideia de progresso, acabou alterando o conceito da existência humana. É o mundo que chega pelas mãos de Bill Gates, Steve Jobs, Mark Zuckerberg, Jeff Bezos e seus acólitos. O sonho do Vale do Silício, nucleado em torno da ideologia da inteligência artificial. O ser humano como operador sistêmico, executor de um mundo que não lhe pertence. Não mais indivíduos, mas uma soma de pixel para sua identificação e controle.
Éric Sadin em seu ensaio La silicolonización del mundo. La irresistible expansión del liberalismo digital aponta: “Instaura-se outro gênero de alteridade que não faz outra coisa a não ser responder a nossos supostos desejos e necessidades, e que está dedicado a nos respaldar, guiar, divertir e consolar. [...] É uma alteridade de novo tipo, sem rosto e sem corpo, que retira todo conflito e que está consagrado somente a nos oferecer ‘o melhor’ em cada instante”.
Fazer do mundo um lugar melhor e feliz é o lema que preside as empresas no Vale do Silício. A meta: apequenar o humano e agigantar a inteligência artificial. Retirar dele a faculdade de pensar. Um mundo de aplicativos que tornam a vida mais cômoda e leve. Novamente Sadin: “Não é a extinção da raça humana que a visão do mundo do Vale do Silício instaura, mas, de modo mais preciso e bastante mais malicioso, a erradicação da figura humana. É a ‘morte do homem’, o do século XXI, [...] que, para o seu bem e o da humanidade inteira, deve agora se despojar de suas prerrogativas históricas para delegá-las a sistemas mais aptos de outra maneira, para ordenar perfeitamente o mundo e garantir a ele uma vida livre de suas imperfeições”.
A guerra neocortical tem seu centro de operações no Vale do Silício. O general russo Valery Gerásimov chamou a atenção para esta realidade: “No século XXI, vemos uma tendência a desfazer as linhas entre estados de guerras e de paz. As guerras já não são declaradas”. A estratégia militar se desloca para o controle das emoções, dos desejos, os sentimentos. Necessita dos dados capturados pelas empresas informáticas, Facebook, sem ir muito longe. Trolls, notícias falsas e manipulação em tempo real são as armas desta guerra.
Éric Sadin nos alerta em seu ensaio La humanidad aumentada. La administración digital del mundo: “O conceito moderno de humanidade entendido como um conjunto próprio, trans-histórico, evolutivo e a priori livre de seu destino se rompeu em benefício da emergência de um composto orgânico sintético que rejeita in fine qualquer dimensão soberana e autônoma [...] emerge uma governamentalidade algorítmica, e não somente aquela que permite a ação política se determinar em função de uma infinidade de estatísticas e de inferências projetivas, mas inclusive aquela que ‘às escondidas’ governa numerosas situações coletivas e individuais. É a forma indefinidamente ajustada de uma ‘administração eletrônica’ da vida, cujas intenções de proteção, de otimização, dependem nos fatos de um projeto político não declarado, impessoal, expansivo e estruturante”.
Sadin vai mais longe, recorre a Steven Spielberg para reforçar sua tese: “Os seres humanos criaram um milhão de explicações do significado da vida, na arte, na poesia, nas fórmulas matemáticas. Certamente, os seres humanos devem ser a chave da significação da existência, mas os seres humanos já não existem”. É o momento de enfrentar esta guerra e reverter a dinâmica onde passamos de robôs alegres a operadores sistêmicos.
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O vazio humano: do robô alegre ao operador sistêmico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU