01 Setembro 2011
A maçã da Apple rivaliza em termos de reconhecimento universal com a cruz, a lua crescente, as orelhas do Mickey e as letras cursivas da Coca-Cola. As "stores" estão organizados com naves centrais e sacristias. O fundador da Apple deixou a cúpula da sua empresa. Mas, nestes anos, aquilo que ele criou não foram só produtos tecnológicos, mas ícones.
A reportagem é de Vittorio Zucconi, publicada no jornal La Repubblica, 01-09-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No princípio era a maçã, o fruto da inocência perdida e o desejo que a avó Eva mordeu, arrebatando-nos da eterna monotonia do Éden. Sem ainda perceber plenamente que desse símbolo, ao mesmo tempo místico e científico – a maçã da Serpente, mas também a maçã de Newton –, nasceria uma seita religiosa, e ele seria o seu guru.
Steve Jobs, o árabe americano abandonado no grande rio dos Estados Unidos pelos pais naturais, assim como Moisés na cesta no Nilo, havia intuído aquilo que ninguém mais havia compreendido no redemoinho atordoante dos hippies: que a idade do computador para todos, então em sua aurora, despertaria novamente na humanidade a mais profunda e insaciável das necessidades. A de acreditar em alguma coisa e, portanto, de "pertencer" a alguém.
Agora que olhamos e vivemos o calvário do profeta, 35 anos depois da criação de um símbolo inventado por uma agência de publicidade que rivaliza, em termos de reconhecimento universal, com a cruz, a lua crescente, as orelhas do Mickey, as letras cursivas da Coca-Cola e os dois grandes seios de ouro do McDonald`s, hoje, a transformação transcendental de um produto em um objeto de fé, de um dono de empresa a um líder místico, é óbvia. Tornou-se fácil ver que a Apple é muito mais do que uma empresa ou um catálogo de gadgets, celulares e computadores.
Não se "compra" um iPad, um MacBook, um iPhone, um iPod assim como se escolhe um Ford ao invés de um VW, um laptop da Dell ao invés de um Toshiba. "Convertemo-nos" à Apple. "Eu me converti para o Mac" é a expressão mais usada por aqueles que, depois de anos de uso de outros sistemas, PCs e gadgets, mesmo que excelentes, dão um passo que parece ser, de fato, como a adesão a um culto. Se não se corresse o risco de parecer blasfemo, se poderia dizer que a comunidade dos "da maçã" não é uma comunidade, mas sim uma comunhão.
A evolução do seu fundador para a figura do "guru", aquele que lhe conduz para à luz além da escuridão, foi ao mesmo tempo planejada e involuntária. Foi como se o próprio Jobs, tendo partido de algumas notáveis, mas não extraordinárias escolhas industriais, montando circuitos e programas existentes na sua própria gruta de Belém – a garagem –, tivesse desdoberto, ao longo do caminho, a sua própria vocação a ser nada mais do que outro montador de circuitos.
A intenção original não era a de formar um novo culto, com hierarquias, bispos, "evangelizadores", como se chamavam os propagandistas do primeiro Macintosh (o nome de uma qualidade de maçãs, por sinal). Ao contrário, o paradoxo do culto da maçã está justamente em ter nascido da ambição de subverter as igrejas de informática existentes, principalmente a odiada e ubíqua IBM, com o sistema operacional Microsoft de Bill Gates.
Ela havia sido representada no celebérrimo comercial de televisão de 1984 e na tediosa alusão orwelliana aos escravos que quebram as correntes do Big Brother. Mas todas as novas religiões sempre nascem como sinais de contradição para o já existente, antes de se tornarem aquilo que queriam demolir.
Esse é o caminho, e também a contraprova da clássica metamorfose de um herege em um pontífice (se não for empalado antes), que Jobs percorreu, chegando a tornar novamente atraentes, legais e admiráveis – como escreveu Virginia Postrel no Bloomberg News – o negócio e o homem de negócios, depois do ódio coletivo dos anos 1960 e 1970. Cada vez mais despótico e absolutista, especialmente depois do exílio ordenado pelos judas da empresa criada por ele e o apelo ao desespero, ele tratava os empregados e os colaboradores segundo os extremos da raiva e do amor, sem compromissos. Os anúncios de novos produtos tinham que ocorrer em consistórios anuais precedidos pelo mais impermeável segredo, os "MacWorld Meetings". A liturgia se tornava cada vez mais intensa e mística, culminando na aparição dele, trajando o seu suéter preto sobre um fundo preto, cada vez mais esquelético, ascético, até o momento da revelação de algo que mudaria "para sempre" a nossa vida. "Mais uma vez", pregava, indiferente ao oxímoro, à contradição entre esse "para sempre" e aquele "mais uma vez".
Templos
Os outros riam e zombavam, como se ri inicialmente de todos os profetas, guias espirituais, gurus. Riram quando a Igreja da Divina Maçã deu, em 2001, aquele passo que outras empresas, embora lendárias, como a Sony japonesa, tinham tentado sem sucesso: abrir suas próprias lojas. Mas, novamente, Jobs tinha seguido o esquema de todos os cultos: a necessidade de ter templos consagrados exclusivamente ao seu próprio evangelho, não mais compartilhados com máquinas de lavar e televisores, geladeiras e outros computadores feios no espaço confuso e grosseiro das grandes redes comerciais. Ele abriu sua primeira igreja em uma localidade inesperada.
Não no Vale do Silício californiano dos computer geeks, dos nerds da informática, mas sim em um enorme e desordenado shopping center na Virgínia, nos subúrbios de Washington, chamado Tyson`s Corner, poucos meses antes do 11 de setembro. Sua primeira "Apple Store" – organizada segundo um esquema que viria a ser reproduzido centenas de vezes, brilhante de luzes, repleto de clérigos serviçais e sorridentes com camisetas iguais, organizada com a nave central para todos, as sacristias para quem quisesse aprofundar a catequese, os oficiantes e toda a produção disponível para quem quisesse jogar – destacava-se como um farol luminoso e acolhedor no "techno souk" das lojas de roupas e perfumes.
Dez anos depois, foram abertos 400 templos em 12 países do mundo, e novos lugares de culto são consagrados a um ritmo de 30 por ano, fundamentalmente idênticos na atmosfera. É o sentimento afetuoso, relaxante e confortante do fiel que entra na Notre Dame de Saigon assim como na Notre Dame de Paris e reconhece imediatamente os sinais e os lembretes do seu próprio pertencimento, nos sinais, nos móveis, nos ícones, no "applês", a língua da liturgia.
É nessa prodigiosa convergência de transcendência e de dinheiro, de pertença e de mudança, que o misticismo de Jobs se fundiu com o marketing. Com um elemento de vantagem formidável. A partir da conversão e da obediência ao totalitarismo suave da "Casa" e dos seus dogmas, o catecúmeno sai segurando entre os dedos o ex voto. O paraíso está ao alcance do cartão de crédito, encerrado sob o celofane da caixa. Deus existe, e é possível tocá-lo com os dedos. Pelo menos enquanto o seu guru existir.
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Steve Jobs: a transformação de uma marca em um estilo de vida global - Instituto Humanitas Unisinos - IHU