30 Junho 2020
A imagem do presidente Donald Trump segurando uma Bíblia em frente à Igreja Episcopal de São João, em Washington, durante um ano eleitoral, foi o exemplo mais flagrante até agora da cooptação do imaginário religioso para fins políticos.
A reportagem é de Christopher Lamb, publicada por Religion Media Center, 27-06-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Mas, para entender o papel que a religião está desempenhando no fomento das forças políticas conservadoras, não devemos nos focar apenas nos Estados Unidos. A batalha é global, e a Rússia está desempenhando um papel crucial.
“A Rússia e a Igreja Ortodoxa russa se tornaram atores ativos nas guerras culturais”, explicou a professora Kristina Stoeckl, da Universidade de Innsbruck, na Áustria, durante uma palestra no congresso digital da Academia Europeia de Religião.
“A partir da perspectiva dos cristãos conservadores em todo o mundo, a ortodoxia está se tornando uma atraente religião do tradicionalismo e do antiliberalismo.”
A professor Stoeckl, socióloga, citando pesquisa de Sarah Riccardi-Swartz, da Universidade de Nova York, disse que havia um número crescente de comunidades no Meio-Oeste dos EUA que estão adotando a ortodoxia russa.
As forças religiosas conservadoras, afirma a professora Stoeckl, formaram alianças que atravessam as divisões denominacionais e as fronteiras nacionais, e são atraídas pela agenda antiliberal dos “valores tradicionais” do presidente Vladimir Putin, fortemente apoiado pela liderança da Igreja Ortodoxa russa. Esses valores impulsionam uma mensagem pró-família e antigays e tornam mais privilegiada a posição da Ortodoxia russa na sociedade.
Na Rússia, a linha entre Igreja e Estado está cada vez mais ofuscada e, em certa medida, espelha o “namoro” de Trump com os evangélicos e católicos romanos conservadores em troca de apoio político.
Os “valores tradicionais” podem se expressar em uma linguagem religiosa, mas, na realidade, dizem respeito à oposição da Rússia à proteção das minorias pela democracia liberal e aos limites à soberania do Estado impostos por obrigações com os direitos humanos. No entanto, a Rússia teve algum sucesso em conseguir que os valores tradicionais fossem reconhecidos pelas Nações Unidas.
“Os valores familiares conservadores se tornaram uma moeda global para os atores de direita que desejam se opor aos valores democráticos liberais e aos instrumentos supranacionais dos direitos humanos”, explica a professora Stoeckl, especialista em conflitos pós-seculares.
“A Igreja Ortodoxa russa hoje é tão global quanto nacional. Ela faz parte de um mercado religioso mundial, em que seu apelo reside justamente em ser considerada uma Igreja particularmente conservadora.”
Em toda a Europa, a agenda da direita religiosa está ganhando apoio, como visto pela ascensão de Viktor Orbán na Hungria, pelo governo na Polônia e pela Liga Norte na Itália.
Matteo Salvini, líder do partir de extrema-direita Liga Norte, usou a iconografia cristã em comícios políticos e, no ano passado, discursou no Congresso Mundial das Famílias em Verona, organizado por uma coalizão de grupos de direita. Salvini também tem sido associado ao dinheiro russo.
Um novo livro do jornalista italiano Iacopo Scaramuzzi sobre as ligações da religião com o nacionalismo populista relata que pessoas próximas a Putin veem a Itália como um laboratório político.
Em “Dio? In Fondo a Destra” [Deus? No fundo, à direita], Scaramuzzi cita um consultor de Putin, Aleksandr Dugin: “Tivemos uma nova grande vitória sobre as forças globalistas. Depois de Putin, depois de Trump, depois do Brexit, depois de Orbán, depois de Kurz [o primeiro-ministro austríaco], as forças do povo começam a conquistar as elites antipopulares, e a Itália hoje está na vanguarda desse processo”.
Scaramuzzi escreve que Putin olhou para a Ortodoxia para “dar profundidade e espírito ao seu poder”, enquanto o colapso financeiro de 2008 permitiu que o líder russo se destacasse em um tempo de desordem e colapso nos valores liberais.
“Com uma reviravolta desconcertante da história, em poucos anos, ele tornou a Rússia o farol do pensamento conservador e dos líderes populistas de direita em todo o mundo.”
Como religião estatal da Rússia, a Ortodoxia deu a Putin autoridade moral nas tentativas de romper o consenso liberal do pós-guerra e a ordem mundial ocidental que emergiu após o colapso da União Soviética. A professora Stoeckl diz que quem está no centro da disseminação global da Ortodoxia russa é “mais Putin do que o patriarca”, já que o presidente russo, um ex-coronel da KGB, é amplamente admirado em círculos conservadores.
Um novo conflito está surgindo sobre a própria natureza do cristianismo e o seu papel na vida pública, e nem todos na Igreja Ortodoxa russa estão felizes com o comportamento do Kremlin. Em setembro passado, mais de 180 padres ortodoxos pediram às autoridades que diminuíssem sua repressão aos oponentes políticos.
Desde a Segunda Guerra Mundial, as Igrejas aceitaram que haviam se tornado apenas uma voz entre as muitas que ditavam a sociedade. Um novo relacionamento havia sido estabelecido entre Igreja e Estado, em que a Igreja defendia uma sociedade pluralista que protege diferentes visões de mundo.
Mas, na era pós-Guerra Fria, diz a professora Stoeckl, a suposição de que o liberalismo prevaleceria em uma sociedade aberta implodira.
Ela diz que as guerras culturais foram uma tentativa de redesenhar as fronteiras entre Igreja e Estado e de desafiar a posição dos moderados religiosos. A liderança das Igrejas também estava sob fogo cruzado, fato ilustrado pelos ataques conservadores ao Papa Francisco.
Enquanto isso, Scaramuzzi argumenta que o papa – que se recusa a se envolver nas guerras culturais e apoia a cooperação multinacional – é um antídoto contra a cooptação da religião pela direita.
O conflito que está ocorrendo, diz a professora Stoeckl, “não é mais entre confissões diferentes, nem entre o religioso e o secular, mas sim sobre o próprio significado do cristianismo na Europa”.
Ela acrescenta: “São três significados que estão em conflito entre si: o cristianismo é um protetor ou benfeitor da democracia liberal europeia, como sugere uma perspectiva da era secular? O cristianismo é uma base cultural e cívica da civilização europeia, como sugere o argumento da religião civil, com todas as consequências excludentes que isso teria? Ou o cristianismo é a religião que une os atores contra a democracia liberal, como sugere a perspectiva da guerra cultural?”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Trump usa roteiro de Putin para cortejar a direita religiosa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU