11 Junho 2020
As fotografias coloridas se misturam com as em preto e branco nas redes sociais de Martin Luther King III. Com mais de meio século de diferença, alguns homens com faixas, em Harlem [Nova York], em 1963, que dizem “A brutalidade policial deve desaparecer”, e duas crianças sustentam alguns cartazes, em 2020, onde se lê “Black Lives Matter” [As vidas negras importam]. Entre elas, o rosto de seu pai, Martin Luther King Jr., e alguns fragmentos de seus discursos mais conhecidos. Suas frases mais uma vez ganham vigência entre os lemas que hoje são entoados em todo os Estados Unidos: “Sem justiça, não há paz”, “respeite nossa existência ou espere resistência”.
Martin Luther King III, de 62 anos, se une a eles, escrevendo-os repetidamente. O filho do histórico líder afro-americano atende ao jornal El Diario no início da terceira semana de protestos contra o racismo e a violência policial nos Estados Unidos, uma explosão social que muitos consideram a mais importante desde a que ocorreu em 1968, após o assassinato do reconhecido ativista pelos direitos civis e Nobel da Paz.
Seu filho, também ativista e membro da junta diretiva do King Center – dedicado a difundir o legado de Martin Luther King -, há dias demonstra um férreo apoio às mobilizações e esteve presente na homenagem a George Floyd, que foi celebrada na semana passada. “As pessoas seguem pedindo dignidade, respeito e justiça, 50 anos depois’, afirma em uma conversa com este jornal.
A entrevista é de Icíar Gutiérrez, publicada por El Diario, 09-06-2020. A tradução é do Cepat.
O que sentiu quando viu o vídeo de George Floyd dizendo que não podia respirar sob o joelho do policial Derek Chauvin?
A primeira sensação que tive foi um sentimento de raiva, pensando que já basta. Quando esta conduta irá parar? Quando parará esta dor que se está infligindo? E depois pensei em Eric Garner, que também foi assassinado na cidade de Nova York, estrangulado pela polícia [2014]. Foi o que me passou pela mente.
Concorda com aqueles que dizem que os atuais protestos são a maior explosão social desde o assassinato de seu pai, em 1968?
Em 1968, houve incêndios e distúrbios em mais de 100 cidades. Hoje, há protestos em mais de 130 cidades e a maioria delas foram manifestações pacíficas. Houve algo de violência, mas esta é a maior onda de manifestações desde o assassinato de meu pai. Sendo assim, concordo.
Durante a maior parte do tempo, vimos protestos pacíficos, mas também distúrbios e enfrentamentos. Você defende o legado de seu pai, expoente da não violência. Como está vivenciando estes atos?
Meu pai costumava dizer que a violência é a linguagem dos não escutados. A maior parte dos protestos não foi violenta, só alguns dos manifestantes foram violentos. Meu pai nunca apoiou a violência, mas compreendeu o motivo pelo qual as pessoas se envolvem nela ou sente que não têm opção. No entanto, sempre acreditou que as manifestações pacíficas dão os melhores resultados. E foi isso o que sempre fez.
É difícil falar por seu pai, mas as referências à sua figura são inevitáveis, nesses dias, e você recordou várias vezes seu trabalho e suas palavras. O que ele pensaria se pudesse presenciar os protestos?
Em primeiro lugar, acredito que se meu pai estivesse vivo, muito do que estamos enfrentando já não seria um problema porque tanto meu pai como minha mãe queriam erradicar deste mundo a pobreza, o racismo e a violência. Se meu pai estivesse vivo, certamente estaríamos em uma posição diferente.
Se viesse agora e visse o que está acontecendo, estaria muito descontente com o que aconteceu [a morte de George Floyd], mas também estaria muito feliz por ver que as pessoas estão protestando. A diferença entre o que aconteceu em 1968, há 52 anos, e o que está acontecendo agora é que há mais cidades e também mais brancos que estão participando, dizendo que isto não está certo. Em 1968, havia muitos negros e alguns brancos. Mas hoje em dia há um montão de brancos em todo o país que também estão protestando, pedindo que haja uma mudança já. E acredito que isso alegraria meu pai.
E onde acredita que estaria? Talvez em Minneapolis?
É uma boa pergunta, não sei se posso respondê-la. Sim, talvez teria ido a Minneapolis, como minha família e eu, que fomos à cerimônia em memória de George Floyd e ao lugar dos protestos para participar deles e prestar homenagem à família. Sim, certamente estaria ali, mas, é bem provável que também estaria em Atlanta [sua cidade natal] ou em outros lugares onde há manifestações. O que é certo é que faria parte delas.
Mais de 50 anos depois, são ouvidas reivindicações básicas, como a que haja justiça.
Sem dúvida alguma. As pessoas continuam pedindo dignidade, respeito e justiça. É algo que acontece todos os dias em alguma cidade dos Estados Unidos.
A lista de pessoas negras que morreram em casos de violência policial nos Estados Unidos é longa. Por que isso continua acontecendo?
Porque há racismo. Os negros representam 13% da população, mas mesmo assim representam de 60% a 80% da população carcerária. Isso significa que a polícia está focada nas pessoas negras. Isso é parte do problema, o racismo. E enquanto não encararmos o racismo nos Estados Unidos, não abordaremos o problema dos controles seletivos e a má conduta da Polícia.
O outro problema é que os policiais causam medo nas pessoas negras e respondem a um agressor negro de maneira diferente em relação a um agressor branco. Tudo isso precisa mudar. A maior parte está enraizada no racismo. Se formos capazes de eliminar e conscientizar a sociedade sobre o racismo, então pode ser que a Polícia faça o seu trabalho de uma maneira diferente.
Uma reforma policial pode mudar algo? O que é necessário para acabar com o racismo?
Os policiais precisam de diversidade, relações humanas e formação para serem sensibilizados. São necessários órgãos civis de supervisão dos departamentos de polícia, que sejam formados por cidadãos dessa comunidade, de modo que quando um policial faça algo, este órgão tome a decisão sobre o que lhe acontece, não o departamento, porque a Polícia se mantém unida. É preciso haver consequências quando há certas ações e a Polícia não presta contas. Quando fazem algo contra as pessoas negras, normalmente são capazes de escaparem. Isto precisa mudar e tem que ser já.
O que pensa dos protestos antirracistas que se estendem por todo o mundo?
São incríveis. Antes destes protestos, muitas vezes ouvíamos comentários como: “Bom, todas as vidas importam”. Agora, as pessoas dizem: “As vidas negras importam”. E há uma quantidade espetacular de vozes brancas. É a primeira vez que o país e o mundo se unem para dizer que as vidas dos negros importam, que as pessoas negras foram gravemente maltratadas e que devemos fazer algo. É tremendamente positivo que o mundo perceba que as pessoas negras não foram tratadas de maneira correta e justa, e que devemos mudar isso.
O presidente Donald Trump investiu contra os manifestantes, chamando-os de “radicais” e “anarquistas”, e defendeu o uso do Exército. Qual a sua avaliação a respeito de sua resposta aos protestos?
Estou muito decepcionado. Gostaria de ter visto um presidente com o poder de unir a nação e que sentisse no mais profundo de seu coração. Com o presidente Trump não parece ser assim. Deveriam chamá-lo de “o chefe dos que dividem”, porque é isso o que faz, divide as pessoas. Não deseja uni-las e isso é muito míope.
Quando foi à igreja [Saint John, perto da Casa Branca], em outro dia, afastou com suas forcas da ordem os manifestantes que protestavam em paz. E fez isso para pode tirar uma foto, e depois disse que irá utilizar o Exército contra os cidadãos estadunidenses. Em vez de reduzir a tensão, aumentou-a. Um presidente deveria saber como serenar esta situação. Teria sido maravilhoso se tivesse ido ali com os ministros para pedir calma e união, para pedir uma nação e um mundo melhor, trabalhando juntos. Mas não fez isso. Estou muito decepcionado com sua liderança.
Você criticou algumas das polêmicas práticas policiais que vimos no momento de responder aos protestos. O que pensa da atuação da Polícia nesses dias?
Houve reações diversas. Ainda há policiais que estão respondendo com ações extremas. Mas a maioria das manifestações é pacífica e existem policiais que se ajoelharam e caminharam com os manifestantes, algo que acredito que é bom. O senador [republicano] Mitt Romney se uniu aos manifestantes, em Washington, D.C, o mesmo que fez um xerife em Michigan. Vimos diferentes reações.
Frente às eleições de novembro, pode o Partido Democrata – que você apoia – realizar as reformas que estão sendo reivindicadas?
Bom, já estamos vendo algumas reformas. Em Minnesota, os cidadãos pediram para que desfaçam e retirem os fundos para a polícia. Os vereadores do município possuem votos suficientes, apesar do prefeito não querer, razão pela qual a lei terá que mudar. O prefeito não se importa que o financiamento seja eliminado e haja uma reestruturação, mas está preocupado com o desmantelamento da polícia.
Em Nova York, o governador Cuomo propôs uma legislação para reformar as técnicas policiais. Os congressistas também apresentaram uma lei que mexe com a prestação de contas. Estão acontecendo muitas coisas no Congresso ou em nível local.
Após mais de duas semanas de protestos, quanto diria que falta para tornar realidade o “sonho” de seu pai?
Há alguns aspectos do sonho de meu pai que foram conquistados, mas ainda temos um longo caminho a percorrer. Meu pai queria eliminar a pobreza, o racismo e a violência de nossa sociedade, e ainda temos uma tremenda pobreza neste país, um tremendo racismo e, infelizmente, uma violência que está crescendo. Sendo assim, precisamos nos dedicar para eliminá-los.
Nesse momento, as pessoas precisam se mobilizar. As pessoas precisam se organizar, elaborar estratégias e debater. As pessoas precisam se registrar e votar, porque necessitamos de uma nova liderança no Congresso e na Casa Branca. Precisamos de uma nova liderança em nível judicial. Necessitamos de novos governadores, novos prefeitos. Tudo isso é necessário. E a única maneira de mudar os líderes eleitos é participando do processo político. Por isso, temos que nos mobilizar, elaborar estratégias, nos organizar, registrar e votar. Minha esposa e eu votamos nas eleições primárias, na Geórgia, e depois, é claro, votaremos novamente em novembro.
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“Mais de 50 anos depois, as pessoas seguem pedindo dignidade, respeito e justiça”. Entrevista com Martin Luther King III - Instituto Humanitas Unisinos - IHU