06 Junho 2020
“Essa crise é como 'o guerreiro que deixa a devastação em seu lugar', e fazer projeções assumindo que essa devastação não ocorreu ou que, se ocorrer, não afetará o futuro funcionamento da economia, é simplesmente um erro. Temos que admitir que a nossa capacidade de prever o futuro tem limites: não somos 'deuses, únicos donos absolutos de todas as luzes'”, escreve Branko Milanović, economista sérvio-americano e professor da Universidade da Cidade de Nova York, em artigo publicado por Letras Libres, 02-06-2020. A tradução é do Cepat.
Em um de seus poemas, Constantino Cavafis dizia que a arte de adivinhar eventos futuros tem três grupos: os homens que são capazes ver o que existe agora, os deuses - que são os únicos que sabem ver o futuro - e os sábios que percebem “o que está prestes a acontecer”: “Os homens conhecem o presente, o futuro, os deuses, únicos donos absolutos de todas as luzes. Mas do futuro, os sábios captam o que se avizinha”.
Todos nós queremos ser os sábios e as sábias que podem ver o futuro imediato (Cavafis nem sequer acredita que os sábios são capazes de ver o futuro distante) e a demanda por esses videntes é alta quando vivemos em tempos difíceis como hoje. Há uma demanda particular por economistas porque afirmam ser capazes de adivinhar como será a oferta e a demanda futuras, o desemprego e o crescimento. Para isso, criam modelos que, através de equações de comportamento e identidades, mostram a evolução futura de variáveis-chave e pretendem prever quanto tempo durará a depressão e em que medida será rápida a recuperação.
Acredito que esses modelos são inúteis nas condições atuais. Por várias razões. Todos os modelos econômicos, por definição, assumem que a economia é um sistema autossuficiente, exposto a choques econômicos, seja por políticas monetárias mais ou menos relaxadas, impostos mais baixos ou mais altos, salários mínimos inferiores ou superiores, etc. Não podem, por sua própria natureza, dar conta de choques extraeconômicos discretos. Esses choques são impossíveis de prever.
Não é possível prever se a China invadirá Hong Kong, se Trump proibirá todas as importações da China ou se os protestos raciais nos Estados Unidos continuarão por meses ou se haverá outros tipos de protestos no mundo (América Latina, África, Indonésia), inclusive se os Estados Unidos vão acabar sendo dirigido até o fim deste ano por um governo militar.
Todos esses choques sociais e políticos que listei se devem ou foram exacerbados pela pandemia. Não há dúvida de que “a relação mais importante” (para citar Henry Kissinger), a que existe entre a China e os Estados Unidos, se deteriorou significativamente por causa da pandemia. Alguns nos Estados Unidos acreditam que a pandemia é uma invenção dos chineses para enfraquecer a economia americana e seu presidente. Também não há dúvida de que as diferentes reações entre os países, diante da pandemia, desestabilizaram sua política doméstica (Brasil, Estados Unidos, Hungria, Reino Unido) e mudaram a correlação relativa do poder político e econômico global (especialmente entre Estados Unidos e China).
Portanto, é totalmente equivocado acreditar que a história não importa e que as mudanças sociais e políticas trazidas pela pandemia podem ser ignoradas a tal ponto que, se milagrosamente conseguirmos superá-la em dezembro de 2020, estaremos como em dezembro de 2019, apenas com um atraso de doze meses. De forma alguma. Mesmo se acabarmos com a pandemia em dezembro de 2020, estaremos em uma situação completamente diferente da de dezembro de 2019 e as forças políticas que foram lançadas nesses doze meses - e que atualmente não podemos prever - afetarão fundamentalmente o comportamento das economias no futuro.
Com a covid-19, somos confrontados com uma situação sem precedentes (com exceção das duas guerras mundiais). Isso ocorre por duas razões: a natureza global do problema e sua natureza incontrolável e imprevisível. Essa pandemia, como quase todas as pandemias recentes (SARS, MERS, gripe suína) é verdadeiramente global. Afetou quase todos os territórios do mundo.
Se compararmos com crises econômicas anteriores, vemos que também não há precedentes de uma crise de natureza global. A crise da dívida dos anos 1980, a crise sofrida pelas economias pós-comunistas nos anos 1990, a crise financeira asiática de 1998 e mesmo a Grande Recessão, foram todas crises contidas regionalmente. De fato, tiveram efeitos colaterais, mas podemos colocar, em nosso modelo de avaliação e previsão de assuntos globais, os países mais afetados (por assim dizer) entre parênteses e observar o resto do mundo usando a abordagem econômica padrão. Não podemos fazer isso quando o planeta inteiro se vê afetado.
A segunda característica da situação atual é sua imprevisibilidade: ninguém sabe quando a pandemia terminará, como afetará países diferentes e mesmo se pensar em um fim claro e definitivo da pandemia faz sentido. De fato, podemos viver anos com políticas de abertura e fechamento: a remoção de restrições provocará um aumento de surtos de infecção, o que, por sua vez, levará a novos fechamentos e confinamentos.
Também não temos ideia não apenas de quais países e continentes serão mais afetados pela pandemia e quando a segunda onda ocorrerá, ao contrário, não podemos prever o êxito de cada país em sua luta contra ela. Ninguém poderia prever que os Estados Unidos, um país com o maior gasto em saúde per capita do mundo e com centenas de universidades com departamentos de saúde pública que publicam provavelmente milhares de artigos acadêmicos anualmente, poderiam fracassar até o ponto de terem um dos mais altos números de falecidos. Da mesma forma, poucos poderiam prever que o Reino Unido, com seu lendário NHS, lideraria a Europa em número de mortes. Ou que um país tão modestamente rico como o Vietnã teria zero mortes pela pandemia.
Há mais interrogações. Não são questões em um único nível, mas em três ou quatro dimensões. A expansão geográfica futura da pandemia é desconhecida (afetará seriamente a África?), a reação dos países, como vimos, é também impossível de prever (quanto êxito terá a Índia? A China pode parar a segunda onda?) e talvez, e isso é mais importante, as consequências sociais e políticas são desconhecidas. É possível que, como eu disse em um artigo na Foreign Affairs, em março, as consequências sociais e políticas serão o produto mais desastroso a longo prazo da pandemia, com efeitos óbvios na recuperação global.
• Apenas poucas coisas - as mesmas que já mencionei em meados de março - que podemos prever com alguma confiança:
• Um agravamento do conflito entre os Estados Unidos e a China, no qual a China sobe de nível e se torna a potência que “desafia” os Estados Unidos.
• Uma tendência para um papel maior do Estado em muitos países.
• Um retrocesso da globalização, em termos da capacidade das pessoas em viajar internacionalmente e do capital de se movimentar pelas fronteiras (motivado em parte por incertezas políticas).
• Aumento da instabilidade, tanto interna como global.
Essa crise é como “o guerreiro que deixa a devastação em seu lugar”, e fazer projeções assumindo que essa devastação não ocorreu ou que, se ocorrer, não afetará o futuro funcionamento da economia, é simplesmente um erro. Temos que admitir que a nossa capacidade de prever o futuro tem limites: não somos “deuses, únicos donos absolutos de todas as luzes”.
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Por que é inútil fazer previsões econômicas agora. Artigo de Branko Milanović - Instituto Humanitas Unisinos - IHU