06 Mai 2020
Em carta aberta, autoridades políticas locais francesas exortam o chefe de Estado para que aproveite o desconfinamento para fazer da qualidade do ar uma “prioridade nacional”.
A reportagem é de Stéphane Mandard, publicada por Le Monde, 05-05-2020. A tradução é de André Langer.
“Seria inaceitável sair amanhã da crise da Covid-19 para morrer em decorrência da poluição do ar”. Em uma carta aberta a Emmanuel Macron enviada ao Le Monde, mais de 10 autoridades políticas locais de todos os espectros políticos pedem ao chefe de Estado que “a luta contra a poluição do ar seja finalmente reconhecida como uma prioridade nacional e levada em consideração em todas as políticas públicas, para que as quase 67 mil mortes que a França tem a cada ano sejam rapidamente relegadas ao passado”. Porque se o coronavírus já fez mais de 25 mil vítimas, as partículas finas e outros óxidos de nitrogênio são responsáveis por cerca de 67 mil mortes (cânceres de pulmão, AVCs, infartos, etc.) todos os anos, de acordo com as últimas estimativas publicadas em 2019 na revista médica European Heart Journal.
Esse grito de alarme contra essas “mortes passadas em silêncio” vem da Aliança das Coletividades Francesas pela Qualidade do Ar, rede que agrupa cerca de quarenta membros, entre as quais estão aglomerações e cidades como Paris. Entre os signatários há vice-presidentes de metrópoles (Guy Bergé, centro-direita, Metz; Christiane Bouchart, EELV, Lille; Jérôme Dutroncy, partido de esquerda, Grenoble; Pascale Hameau, EELV, Saint-Nazaire), o prefeito de Champlan (Christian Leclerc, sem partido), a vice-prefeita de Villeurbanne (Anne Reveyrand, PS), a conselheira de Paris responsável pelo meio ambiente (Aurélie Solans, ecologista) ou ainda Françoise Schaetzel (EELV), conselheira do Eurométropole de Strasbourg e presidenta da Aliança. “Se é muito cedo para considerar seriamente um pós-Covid-19, não é tarde demais para as medidas tomadas nas próximas semanas, nos próximos meses a favor da luta contra a Covid-19, mas também da luta contra outros flagelos da saúde, com atenção prioritária à poluição do ar”, alertam.
“O desconfinamento não deve ser a ocasião para retornar aos tempos pré-crise e aos erros do passado, mas finalmente ter uma verdadeira política global contra a poluição do ar”, afirmou Schaetzel. “A crise da Covid-19 mostra que é possível mobilizar todos os atores e instituições para enfrentar uma crise sanitária sem precedentes”, lembra o texto. Françoise Schaetzel sabe do que está falando. Ela é médica da saúde pública e auxilia as equipes da Agência Regional de Saúde desde o início da pandemia em um departamento classificado como “vermelho”. “Como autoridades locais responsáveis pela luta contra a poluição do ar, nós interpelamos hoje o Estado para que nos proporcione os meios necessários para uma mobilização que esteja à altura deste desastre sanitário”, explica a presidenta da Aliança, também conselheira de Estrasburgo. Não temos tempo, precisamos agir agora!”.
Primeira ação: pedir “desde já” aos prefeitos para que regularizem e reduzam o máximo possível a ação de espalhar o estrume nas roças. Apesar da diminuição da poluição proveniente de fontes automotivas desde o início da contenção, foram observados picos com partículas finas na Alsácia ou em Hauts-de-France. E vários estudos científicos mostraram que a exposição crônica a partículas finas é um fator agravante dos efeitos do coronavírus.
Segunda medida: promover, sem esperar pelo dia 11 de maio, o uso de bicicletas por meio de “importantes subsídios financeiros”. O governo anunciou um plano com 20 milhões de euros. Um primeiro passo considerado insuficiente. Porque todas as autoridades políticas temem que o desconfinamento seja sinônimo de corrida para os carros. “Não devemos nos enganar, muitas pessoas vão andar sozinhas em seus carros e não estão nem aí para os carros compartilhados, diz Aurélie Solans, conselheira de Paris encarregada do meio ambiente. Para as pessoas que vivem nos subúrbios, tomar a RER [Rede Expressa Regional do centro de Paris, uma rede ferroviária urbana que serve a aglomeração de Paris e arredores] e o metrô é necessariamente algo que provoca ansiedade”.
Os membros da Aliança exigem meios que permitam que as coletividades financiem “medidas de emergência”: apoiar os agricultores em práticas que consomem menos insumos, ajudar na renovação dos aparelhos de aquecimento poluentes – “Nós temos ainda 10.000 fogões a lenha velhos na periferia de Estrasburgo”, revela Françoise Schaetzel – ou ainda para criar zonas de baixa emissão (ZFE). Supõe-se que representem a pedra angular da política do governo para reduzir os níveis de poluição por dióxido de nitrogênio (ligada ao tráfego rodoviário), que excedem os valores limites em mais de uma dezena de aglomerações e valem à França uma condenação no Tribunal de Justiça da União Europeia.
Essas EPZs visam excluir gradualmente os veículos mais poluentes dos centros das cidades com base nas vinhetas Crit'Air [O certificado de qualidade do ar da Crit'Air da França é uma vinheta emitida para demonstrar a conformidade do veículo com os padrões de emissão europeus. O Crit'Air cobre todos os veículos rodoviários, incluindo motocicletas, quadriciclos, carros particulares, vans, caminhões e ônibus]. Até o final de 2020, todas as aglomerações afetadas por excedentes devem implementá-las. Hoje, porém, apenas Paris e, em menor grau, Grenoble já deram esse passo. Trata-se agora de criar condições regulatórias para acelerar essas medidas. O mesmo acontece com a sua eficácia. As EPZs ainda tropeçam, por exemplo, na falta de possibilidade de verbalização pelo controle automático de vídeo.
De maneira mais geral, os signatários da carta solicitam que, no futuro plano de recuperação, todos os auxílios públicos estejam condicionados ao cumprimento dos objetivos do Plano Nacional de Redução de Emissões de Poluentes do Ar. Em sua interpelação ao chefe de Estado, traçam um paralelo com as mudanças climáticas e desejam que as propostas da Convenção Cidadã para o Clima sejam examinadas antes do recesso parlamentar. “A poluição do ar é uma ameaça que negligenciamos por muito tempo, como as mudanças climáticas, a ponto de comprometer a resiliência e a economia de toda a sociedade”.
Com a aproximação do 11 de maio e, com ele, o retorno às aulas, o Unicef e a Rede de Ação Climática (RAC) pedem ao governo e aos prefeitos das principais cidades francesas que tomem “medidas fortes para uma reapropriação do espaço público pelos pedestres, especialmente as crianças”, para lutar ao mesmo tempo contra a disseminação do coronavírus e a poluição do ar. Entre as propostas está a de restringir o tráfego nas ruas próximas às escolas mediante a criação, pelo menos temporariamente, de “ruas escolares” ou “ruas das crianças”, pelo menos durante os horários de entrada e saída da escola. O Unicef e a RAC também querem reduzir a velocidade para 30 km/h e ampliar as zonas de pedestres, ciclistas e de espaços dedicados aos transportes coletivos. “Essa crise de saúde pode ser um ponto de inflexão para agir sobre o problema latente da poluição do ar nas cidades francesas”, estimam o Unicef e a RAC.
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“Seria inaceitável sair amanhã da crise da Covid-19 para morrer em decorrência da poluição do ar” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU