04 Mai 2020
Apesar da aproximação da fase 2 das medidas para conter o contágio do coronavírus, mais o tempo passa e mais ficamos desorientados com sua escalada pandêmica, mas principalmente com sua origem e natureza. E, portanto, sobre a melhor estratégia para enfrentá-la. Em todo o mundo, mais vozes se levantam de médicos e pesquisadores, levando ao debate público - ao que parece - mais confusão do que clareza. Em particular, desde que o vencedor do prêmio Nobel francês, Luc Montagnier, expôs sua teoria provocando a comunidade científica - de acordo com La Stampa, um hábito dele desde 2010 - sugerindo que o vírus é o resultado de uma manipulação de laboratório e que em sua estrutura molecular pura, originada de morcegos, existe uma sequência artificialmente introduzida, segundo ele, do HIV.
A reportagem é de Edoardo Toffoletto, publicada por Business Insider Itália, 30-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em 20 de abril, em Il Foglio, Enrico Bucci, referindo-se aos argumentos do professor Burgio, descarta inequivocamente as dúvidas levantadas por Montagnier. De fato, explica Burgio "as partes do genoma do vírus que seriam ... idênticas às do HIV (e, portanto, a prova da manipulação, porque na natureza o híbrido não pode se produzir), são na verdade traços muito curtos do genoma do coronavírus, que são compartilhados não apenas com o HIV, mas com centenas de outras espécies, de cada um dos reinos dos seres vivos".
No entanto, a pandemia não está apenas na origem de uma crise sanitária com repercussões socioeconômicas, mas está se tornando cada vez mais o prisma em torno do qual as potências estadunidense e chinesa pretendem redesenhar a geometria da ordem mundial que vier.
De fato, o drama é tal que o editorial do Financial Times de 23 de abril convida que a tornar o Covid-19 uma questão de segurança internacional a ser delegada não apenas ao saber técnico da OMS, mas ao Conselho de Segurança da ONU, sob cuja égide deveria ser formada uma comissão internacional de especialistas - incluindo chineses e estadunidenses - para determinar a natureza do vírus com a missão de seu foco original em Wuhan. Isso será difícil, já que a relação entre a China e o Ocidente está em um nível mais baixo de todos os tempos, mas uma possível abertura chinesa para essa forma de investigação internacional em seu solo certamente pode ser a chave para restabelecer uma dinâmica de cooperação, em vez de fomentar conspirações nascidas de angústia de ignorância mais que da má fé.
Ao mesmo tempo, justamente em Wuhan, nos garante o Financial Times, a China possui quartéis militares estratégicos que - em tal expedição internacional - poderiam se tornar presas fáceis da espionagem. Por esse motivo, o diretor da Limes, Lucio Caracciolo, no TG2-Post de 24 de abril, expressou claramente como essa possibilidade seria remota. O grau de "culpa" dos chineses em relação à fuga do vírus ou sua expansão planetária permanecerá para sempre em segredo, que talvez algum historiador dos serviços secretos poderá esclarecer daqui há cem anos.
Já se tornou famosa não apenas entre os think tanks a entrevista que Emmanuel Macron concedeu ao Financial Times em 16 de abril. Na entrevista, Macron expressa sem meias palavras críticas ao sistema europeu, que há anos vêm sendo explicitadas apenas pelos movimentos "populistas" mencionados: os mesmos argumentos que levaram a aliança Salvini-Di Maio ao poder e que implodiu pela escolha errada de alianças dos líderes dentro da UE. Repetita iuvant: a assimetria entre os estados do norte – entre os quais Macron se situa - e os estados do sul sobre a possibilidade de o estado garantir seu sistema econômico da falência.
A entrevista de Macron também revela o paradoxal sintoma do mecanismo agora secular da remoção da política como tal, mas que chegou ao paroxismo no quadro da União Europeia, uma vez que se afirma que "agora mais do que nunca somos chamados a ser protagonistas do nosso destino como nação" considerando “que a verdadeira política existe apenas quando não há mais nada a discutir, quando o objetivo é óbvio, quando a escolha mais certa é indiscutível e qualquer debate a respeito é supérfluo, se não perigoso", como observado por dois estudiosos do pensamento político da Universidade de Pádua, Pierpaolo Cesaroni e Lorenzo Rustighi, em Le Parole e le Cose.
Por esse motivo, é ainda mais grotesco o inaudito tempo desperdiçado para estabelecer o acerto do Recovery Fund, do qual também o Sole 24Ore destaca o atraso e insensatez de sua partida no início de 2021. Nesse sentido, em 24 de abril, Eurointelligence aumenta a dose: não venceram nem aqueles que propuseram os coronabonds, nem a proposta espanhola, mas a versão de Angela Merkel venceu. "Os holandeses e os alemães diferem em sua diplomacia e linguagem adotada, mas", adverte, "exortamos os leitores a não cair na retórica da solidariedade. Ambos os países querem que a maior parte dos gastos do fundo ocorra sob a forma de empréstimos". Por fim, “independentemente da forma que assumir, não se trata de um estímulo fiscal. Na melhor das hipóteses, pode se revelar um vetor de transformação da dívida.”
No entanto, Martin Sandbu, em 21 de abril, antes da fatídica quinta-feira, no Financial Times, declarou claramente que, vendo as várias propostas - e as discussões intermináveis e obsoletas - a solução espanhola era a mais eficaz e viável. Seria capaz de criar um fundo de 1,500 bilhões de euros, "fundado através do mesmo mecanismo do orçamento da UE. Teria financiado subsídios - e não empréstimos - aos Estados-Membros proporcionais aos danos infligidos pela pandemia”. Apesar disso, como a solução efetivamente adotada, teria conseguido proporcionar subsídios apenas a partir de janeiro de 2021 por pelo menos dois ou três anos. "Teria sido financiado através da emissão de euro-bond de taxa fixa", sobre os quais seria necessário pagar apenas os juros - fixados no início - sobre a quantia recebida.
Esta última teria sido proporcional à percentagem da contribuição de cada Estado-Membro para a constituição do fundo, pelo que não se trata de uma mutualização da dívida de alguns Estados sobre os ombros de outros, mas de uma verdadeira dívida europeia, separada dos instrumentos habituais. e truques financeiros "que aproveitam as finanças privadas". Sua dimensão, assegura Sandbu, seria igual a "cerca de 10% do PIB anual da UE", que provavelmente é o que será afetado o crescimento da economia europeia. Um fundo inferior a esse "seria uma resposta fiscal inadequada à recessão induzida pelo Covid-19".
O próprio fato de tal proposta não ter sido aprovada é o sintoma evidente do ressurgimento de uma razão de estado dobrada aos níveis nacionais. De fato, se a proposta adotada, que parece atingir o mesmo poder de receita, se substanciará - além da retórica da solidariedade - essencialmente na forma de empréstimos, o resultado obtido não passará de um aumento adicional na assimetria dos sistemas econômicos dentro da UE.
Como os estados mais fracos apenas nada poderão fazer além de atrasar o momento fatídico de pagar suas dívidas antigas e novas, isso apenas confirma o atual status quo. De fato, o Fundo de Recuperação assim constituído apenas atrasaria o efeito produzido pelas intervenções públicas nacionais, que, como Sandbu escreve, "minariam o nível do playng field [literalmente intraduzível, propõe-se: do plano homogêneo] do mercado único, se nem todos os Estados-Membros puderem agir de forma igual ". Conforme denunciado pelo próprio Macron, hoje acontece exatamente isso, apesar das retóricas neoliberais que proibiriam qualquer intervenção estatal na economia. Porém, diante do colapso, felizmente toda retórica se cala. Mas nem sempre parece: a sombra do ordo-liberalismo da provação ainda pesa.
Richard Haas também nos garante que "ao principal questionamento do mundo pós-pandemia é quanto o pêndulo continua a oscilar entre Bruxelas e as capitais nacionais, enquanto os países se perguntam se o controle sobre suas próprias fronteiras não poderia ter retardado o contágio". Depois da questão migratória, que aliás ainda é dramática, embora não se fale a respeito, retorna o fantasma mais sinistro do nacionalismo: o fechamento imunológico sobre si mesmos.
Da mesma forma, em uma escala global, onde, sempre seguindo Haas, o comércio global será retomado, embora "seja administrado na maior parte pelos governos mais que pelo mercado".
De fato, a pandemia poderia acelerar dentro do poder estadunidense a questão do decoupling, ou seja, sua dissociação da economia chinesa, que, de acordo com os acordos de sua entrada na OMC, sempre investiu na dívida dos EUA. Mas, acima de tudo, sempre naquele tácito acordo, foi o principal local das deslocalizações dos gigantes tecnológicos e industriais norte-americanos e ocidentais. A crescente dependência dos EUA da cadeia estratégica da indústria de um país, a China, que parece ser cada vez mais uma rival geopolítica, faz surgir também para o establishment mais liberal algumas dúvidas sobre os riscos da espionagem industrial chinesa.
De qualquer forma, nenhum país, escreve Haas, "pode se alegrar hoje da posição que os Estados Unidos tinham em 1945" e continua afirmando que "nenhum país, nem a China ... tem ao mesmo tempo o desejo e a capacidade de preencher o vazio criado pelos Estados Unidos". Muito se falou sobre o vácuo geopolítico e institucional deixado pelos EUA e, especialmente, desde o governo Trump, embora já a partir de Obama a projeção estrangeira em termos globais tenha começado a se retrair, mesmo que poucos gostariam de admitir isso para si mesmos, porque Obama seria o mocinho e Trump o bandido.
Em meados de abril, nos informa Adam Tooze no Foreign Policy, estavam acontecendo reuniões do FMI e do Banco Mundial. Eles estavam planejando um verdadeiro "Bailout pandêmico global": um Recovery Fund em nível global para cobrir as estimativas das despesas previstas por parte de cada país, que totalizariam 8.000 bilhões de dólares, ou seja, 9,5% do PIB mundial. A proporção perfeita dessa estimativa, com 10% em nível europeu, deveria corroborar as hipóteses, pois, afinal, uma parte importante do PIB mundial é produzida pela Europa sozinha. Enquanto isso, mais de 100 países já teriam solicitado ajuda do FMI. Esse bailout seria estruturado por meio do Special Drawing Rights (SDR), que são "a moeda sintética do FMI composta por uma cesta de dólares americanos, euros, renminbi, iene e libra esterlina" e, Tooze especifica, "não consiste em um empréstimo do FMI, mas em uma reivindicação reconhecida por cada membro do FMI às reservas das moedas de referência de cada um. Os SDR são uma ferramenta destinada exclusivamente aos governos que registram suas solicitações ao FMI".
A atual diretora do FMI, Kristalina Georgieva, confirma, porém, que, para atender às necessidades financeiras dos 165 países de baixa renda, o valor de US $ 2.500 bilhões ainda seria uma estimativa conservadora. E, no entanto, as ferramentas disponíveis para o FMI não seriam suficientes de qualquer maneira. Para isso, Lawrence Summers e Gordon Brown já sugeriram aumentar a capacidade da SDR em pelo menos 1.000 bilhões. De fato, sua constituição em 2008 para responder à crise financeira foi o resultado de um "decreto político", como Tooze explicitamente o define, que fixou o valor em 281 bilhões. Portanto, nada impediria teoricamente que seu valor fosse aumentado praticamente ao infinito. Mas o FMI é um daqueles clubes internacionais em que não há espaço para a hipocrisia de outras instituições - como a ONU ou a OMC - em que cada membro teria o mesmo peso na votação, no FMI se vota por cota de participação no fundo, de forma que os Estados Unidos com uma participação de 16,5% tem quase um poder de veto sobre quase todas as decisões cruciais.
Obviamente, o secretário do Tesouro dos EUA, Steve Mnuchin, defende que o aumento na quantidade de SDR não atinge a meta. De fato, os SDR seriam distribuídos de acordo com as cotas de participações, portanto 70% iriam apenas para o G-20, enquanto apenas 3% para os 165 países mencionados, que teriam maior necessidade deles para não serem cortados do comércio internacional, que sobre tais moedas está estruturado. No entanto, inclusive para enfrentar a crise por meio de empréstimos na forma de empréstimos, os fundos do FMI parecem insuficientes.
Em ambas as frentes, os Estados Unidos mostraram-se reticentes: ao dificultar o trabalho do FMI, eles efetivamente bloquearam a possibilidade de uma estratégia global para enfrentar o coronavírus. Adam Tooze sugere que as razões estão ao mesmo tempo na política externa do governo Trump e em sua delicada posição interna em relação ao Congresso. Parece ridículo, mas parece que a única possibilidade de que dois estados, como Irã e Venezuela, considerados "canalhas" pela política dos EUA, pudessem encontrar um novo alívio através da alocação de recursos do FMI, tenha sido a raiz desse veto, assim como a reação da própria maioria de Trump ao Congresso se os Estados Unidos apoiassem instituições internacionais que beneficiassem os "canalhas" mencionados.
Constata-se que se no topo das finanças e da governança mundial tudo se baseia em um "decreto político", fica claro que os verdadeiros problemas - como sempre - mais que técnicos são eminentemente geopolíticos. De fato, Tooze interpreta essas reuniões de abril como um sintoma adicional "de um mundo multipolar cada vez mais complexo e tenso". Trata-se, portanto, de tirar todas as consequências da afirmação peremptória de Thierry de Montbrial, presidente da Ifri, que indica quanto os 40 anos em que os Estados Unidos se comprometeram a manter a ordem global, em termos históricos, seja um tempo irrisório. Esse empenho parece ser mais da ordem da exceção do que da norma ou, de qualquer forma, ser a expressão de um interesse nacional preciso. Em suma, a América sempre foi first - isso também revela o absurdo do slogan trumpiano.
Como sugerido em outros lugares, o mundo multipolar está estruturado em um entrelaçamento de relações bilaterais centradas em organizações e instituições internacionais, que se tornam cada vez menos globais, isto é, cada vez menos técnicas e neutras, revelando cada vez mais sua verdadeira natureza enquanto vetor da projeção estrangeira das potências a que fazem referimento.
Afinal, como Alexander Cooley e Daniel Nexon apontam no Foreign Policy, na época do unipolarismo incontestado dos Estados Unidos entre os anos 1990 e o início dos anos 2000, a oposição de um estado aos termos estadunidenses para entrar em sua rede de comércio, serviços e segurança "comportava custos internacionais e internos". Não é muito diferente do que está sendo creditado hoje à China ou à Rússia. Isso ainda expressa o veto dos Estados Unidos, bem como o veto teutônico e hanseático a certas medidas político-econômicas que poderiam transformar a UE de uma rede de tratados internacionais em uma verdadeira entidade política. A diferença é que o veto dentro do antigo continente europeu só foi possível em virtude da retirada do próprio poderio estadunidense.
Portanto, muito mais perspicazes do que as fantasias sobre o fim da história de Francis Fukuyama em The End of History (1992), as teses do velho Samuel P. Huntington em The Clash of Civilizations (1996), segundo as quais o colapso das ideologias do século XX (capitalismo liberal e comunismo) reintroduziu as falhas geopolíticas culturais e, em particular, religiosas, ainda parecem válidas, se forem lidas com os olhos de Thomas Hobbes e se afirmar que a cultura e a religião são uma função da razão de estado que cada vez mais retorna com prepotência.
Pena não ter nenhuma de razão - e muito menos de estado - a nível europeu, mas apenas uma rede de interesses nacionais sustentados por retóricas mais ou menos pró-europeias, conforme as necessidades.
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Cenários pós-coronavírus: a aceleração da desintegração da ordem mundial e os sinais da retirada do poder dos EUA - Instituto Humanitas Unisinos - IHU