Nesta primeira parte de seu texto, o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA, disseca os limites teológicos e institucionais do pontificado de Francisco.
O artigo foi publicado em La Croix International, 14-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A segunda parte do artigo está disponível aqui.
Existe um sério risco de que o Papa Francisco esteja perdendo o apoio das pessoas que querem vê-lo ter sucesso e impedir que a Igreja caia nas mãos daqueles que têm se voltado contra a mudança.
Este é um momento importante, porque o papa de 83 anos de idade está mostrando alguns sinais de que ele entende que muitas das pessoas que creem mais fortemente em seus esforços de reforma da Igreja estão ficando decepcionadas. O sétimo aniversário da sua eleição como bispo de Roma, no dia 13 de março, coincidiu com o pico da conscientização sobre a pandemia do coronavírus. Naquele momento, era impossível se aprofundar em uma análise complexa do seu pontificado.
Mas viver em confinamento a fim de conter a propagação da Covid-19 se tornou agora o novo normal e o será por algum tempo em muitos países. Isso oferece uma oportunidade para tentar analisar com mais cuidado o que aconteceu no pontificado de Francisco nos últimos meses.
A pandemia mudou algumas dinâmicas-chave da Igreja Católica. Por um lado, tem havido um foco ainda maior no papado e no seu isolamento, o que poderia ser chamado de solidão institucional. A extraordinária liderança espiritual de Francisco nestes tempos tão difíceis confirmou, mais uma vez, que seu pontificado não foi apenas parte de uma era de mudança, mas sim um participante ativo daquela que claramente é uma mudança de era.
Mas algo perturbador ocorreu recentemente. E não é fácil falar sobre isso. Pelo menos para aqueles que acreditam que o papa jesuíta está fornecendo à Igreja o tipo de liderança servidora de que ela precisa agora. Ou para aqueles católicos que, nos últimos sete anos, sentiram-se muito mais parte de uma jornada rumo a um novo modo de ser Igreja, na única e mesma Igreja.
Francisco está dando uma contribuição inestimável à tradição viva da Igreja em termos de forjar uma nova forma de reviver e atualizar os ensinamentos do Concílio Vaticano II (1962-1965). Ele ajudou a libertar o ensino moral católico da sua camisa de força ideológica e alcançou um novo equilíbrio entre a lei e a misericórdia. Ele reabilitou teólogos que haviam sido silenciados e punidos pela política doutrinária de Roma pós-Vaticano II. Ele também guiou a Igreja Católica rumo ao catolicismo global.
Além disso, seu foco nas questões socioeconômicas (incluindo as relacionadas ao ambiente), em um momento em que a globalização está em profunda crise, tem sido profético. No que diz respeito ao diálogo do mundo nominalmente cristão com o Islã, ele certamente fez a bola avançar. E ele reposicionou geopoliticamente a Igreja em direção ao continente asiático em rápido desenvolvimento, especialmente em relação à China.
Trata-se de conquistas que já estão cimentadas em seu legado.
Mas algo perturbador ocorreu no ano passado. Temos a impressão de que, nos últimos meses, o dinamismo do seu certificado começou a atingir o seu limite. E essa não é apenas a opinião dos teólogos que estão envolvidos nos debates sobre a reforma da Igreja. Mas ficou evidente para mim, pelo menos, que as ideias espirituais muito importantes de Francisco carecem de uma clara estrutura sistemática que possa ser colocada em uma estrutura teológica e em uma ordem institucional.
Tomemos as mulheres, por exemplo. Todos estão familiarizados com a forma coloquial com que o papa fala sobre as mulheres e as palavras não politicamente corretas que ele usa às vezes para descrever o papel delas na Igreja e na sociedade. Mas, ultimamente, tem havido sinais mais alarmantes.
Dois eventos recentes constituem um momento que poderia muito bem marcar uma mudança no seu pontificado.
O primeiro foi aquilo que ocorreu no ínterim desde o Sínodo Amazônico de outubro de 2019 até a publicação da “Querida Amazônia”, em fevereiro de 2020. E o segundo foi a sua decisão de nomear novos membros para uma segunda comissão papal sobre o estudo do diaconato feminino.
Esses dois eventos podem ser lidos de formas muito diferentes, dependendo de onde nos encontremos ao longo do amplo espectro de crenças e opiniões católicas. Os grupos anti-Francisco se regozijaram publicamente e se sentiram justificados pelo que ocorreu. Mas os círculos eclesial e teológico que apoiaram Francisco desde o início do seu pontificado se sentiram traídos de algum modo. Apesar disso, eles tentaram continuar ao lado dele sem revelar muito do estado de choque e de decepção que sentem.
O papado sempre foi uma questão de longo prazo. E esse tem sido particularmente o caso de Francisco. Mas há uma questão de saber se pode realmente haver um longo prazo para uma Igreja que agora está deixando de tomar decisões sobre seus problemas institucionais e estruturais.
Os círculos pró-Francisco estão compreensivelmente relutantes em falar sobre a crise que agora está dominando este pontificado. Pessoalmente, eu acredito que três coisas provocaram essa crise.
A primeira é o estilo de Francisco de governar a Cúria Romana.
Sua tendência a basicamente seguir uma abordagem de não interferência produziu alguns infelizes efeitos colaterais. Por exemplo, ele encorajou os círculos tradicionalistas litúrgicos, como vimos recentemente com os novos decretos relativos à “Forma Extraordinária” da missa. Isso é particularmente doloroso para os mais fervorosos defensores do papa, porque, desde a sua eleição em 2013, ele deixou absolutamente claro que acreditava que o tradicionalismo litúrgico é incompatível com uma Igreja “em saída”. No entanto, ele não apenas permitiu que o espetáculo tradicionalista continuasse, como também não fez nada para impedir que os principais escritórios e autoridades vaticanos o encorajassem. Isso piorou ainda mais a situação, especialmente para algumas Igrejas locais.
O papa pode ignorar a Cúria Romana de um modo que outros católicos não podem – incluindo bispos e padres. Veremos se e como isso mudará com a anunciada constituição apostólica destinada a reformar a Cúria Romana, que já foi adiada várias vezes.
A segunda coisa que acelerou a atual crise no pontificado de Francisco é a pressão proveniente de bispos e cardeais no último ano, o que ameaçou a legitimidade do papa.
Não estou me referindo a extremistas que se tornaram figuras periféricas em uma religião católica virtual, como o arcebispo italiano Carlo Maria Viganò. Pelo contrário, estou falando de cardeais que têm ou tiveram até muito recentemente um papel-chave na Cúria Romana.
Em fevereiro de 2019, por exemplo, o cardeal alemão Gerhard Müller publicou um “Manifesto” para uma audiência mundial em sete idiomas diferentes. Esse documento do ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (2012-2017), de fato, ameaçava uma correção pública a Francisco, sugerindo que a maioria dos bispos da Igreja tinha preocupações sobre a sua ortodoxia.
Basta olhar para a primeira frase do “Manifesto”: “Diante da crescente confusão sobre a doutrina da Fé, muitos bispos, padres, religiosos e leigos da Igreja Católica solicitaram que eu prestasse um testemunho público sobre a verdade da revelação”.
Depois, há o cardeal Robert Sarah, a quem Francisco nomeou chefe da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos em 2014. O cardeal guineense recrutou o aposentado Bento XVI (de formas ainda não claras) no fim de 2019 para contribuir com um controverso livro defendendo o celibato sacerdotal obrigatório. O momento de lançamento do livro não foi acidental. Ele foi publicado quando o Papa Francisco estava no meio de concluir uma exortação apostólica após o Sínodo dos Bispos sobre a Amazônia – no qual a maioria dos participantes votou a favor da mudança da disciplina de celibato.
Em retrospectiva, o discurso do papa na conclusão do encontro sinodal pode ser visto como o começo de um acordo com os tradicionalistas. Naquele discurso final – proferido no dia 27 de outubro de 2019 na Sala do Sínodo – Francisco chamou alguns católicos de “elite” por se concentrarem em pequenas questões “disciplinares”, em vez de se preocuparem com o “quadro geral”. À luz da exortação apostólica pós-sinodal “Querida Amazônia”, alguém poderia facilmente ler a rejeição do papa em relação a essas “elites” como a sua rejeição da proposta de reforma do celibato sacerdotal. E essa também poderia ser vista como a razão pela qual ele rejeitou uma proposta de atribuir às mulheres um papel ministerial na Igreja. De fato, ambas as propostas encontraram um apoio substancial entre os que participaram da preparação do Sínodo, incluindo os bispos.
Eu não acredito, como alguns outros, que Francisco cedeu à pressão dos tradicionalistas por medo. Mas, historicamente, essa pressão extraordinária sobre o papa sempre é um elemento de contexto que deve ser levado em consideração a fim de entender a trajetória de um pontificado (por exemplo, Paulo VI durante o Vaticano II).
Um elemento adicional é a absolvição por parte da Suprema Corte da Austrália, no dia 7 de abril, do cardeal tradicionalista George Pell por acusações de abuso sexual. Isso apenas encorajou os católicos que estão promovendo uma agenda restauracionista – não apenas em Roma, mas também especialmente no país natal do cardeal.
Isso ocorre em um momento em que a Igreja na Austrália está ocupada planejando um processo sinodal crucial – um concílio plenário –, mesmo que a atual pandemia de saúde esteja causando alguns atrasos. Deve-se notar que o julgamento de Pell não faz parte dessa equação. Até mesmo católicos australianos proeminentes que se opõem ao cardeal em muitas questões eclesiais se manifestaram publicamente (e com razão) para dizer que ele nunca deveria ter sido julgado por um crime desse tipo sem provas mais substanciais.
O terceiro e último fator que contribuiu para a crise deste pontifício está relacionado aos limites da teologia de Francisco quando ele fala sobre clericalismo e mulheres.
Até agora, a maioria das pessoas acreditava que, independentemente de como o pontífice se mostrou limitado por estar usando uma segunda língua ou expressões questionáveis, o papa argentino estava fundamentalmente aberto a fazer algumas mudanças disciplinares e permitir desdobramentos teológicos compatíveis com um entendimento orgânico da tradição.
Mas, depois do ano passado – com a “Querida Amazônia” e a decisão sobre a nova comissão sobre o diaconato feminino – alguns se perguntam se o pontificado de Francisco alcançou o seu limite em termos de reforma.
Depois que a primeira comissão sobre as diáconas completou o seu trabalho, ela elaborou um relatório final. Mas ele nunca foi tornado público. As pessoas se perguntam, com razão, por que não. Em uma Igreja sinodal, é certo esperar uma certa quantidade de transparência. A formação da segunda comissão foi anunciada no dia 8 de abril. Nenhuma pessoa entre os sete homens e as cinco mulheres que compõem esse órgão vem do Sul global. Isso é muito difícil de entender e ainda mais impossível de justificar, especialmente para um papa que fez tanto pelo crescimento do entendimento por parte da Igreja Católica da sua dimensão global.
(Revelação: eu escrevi sobre isso em meu último livro sobre o pontificado [intitulado “The Liminal Papacy of Pope Francis: Moving Toward Global Catholicity”].)
O Papa Francisco diz que é necessário ouvir todos os lados antes de tomar uma decisão. E isso é absolutamente certo. Infelizmente, porém, essa segunda comissão dificilmente pode ser vista como representativa de pontos de vista diferentes.
O pontificado se encontra em uma situação muito séria. O que isso nos diz? É algo que abordaremos na segunda parte deste artigo.