Nesta segunda parte de seu artigo, o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA, explica o seu dever, em filial devoção ao papa, de ajudar a Igreja a entender a necessidade urgente de reforma.
A primeira parte do artigo está disponível aqui.
O artigo foi publicado em La Croix International, 15-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os defensores do Papa Francisco e de seus esforços para reformar a Igreja Católica estão preocupados com a diminuição do dinamismo do seu pontificado. Suas intuições espirituais muito importantes carecem de uma estrutura sistemática clara que possa ser posta em um marco teológico e em uma ordem institucional. Eventos recentes – como a sua decisão de ignorar uma sugestão dos bispos da Amazônia de ordenar padres casados e o estabelecimento de uma nova comissão de estudos sobre o diaconato feminino que não parece favorável à ordenação de diáconas – sugerem aos católicos reformistas que seu pontificado está em crise.
O que a situação atual está nos dizendo?
O fato é que Francisco tem sido muito mais eficaz na desconstrução de um paradigma eclesiástico e teológico limitado cultural e historicamente do que na construção de um novo paradigma. Após sete anos de pontificado, isso é algo que deve ser dito.
Em algumas questões, Francisco tomou decisões que produziram efeitos visíveis. Por exemplo, as diretrizes na Amoris laetitia ajudaram a abrir os sacramentos aos católicos em difíceis situações conjugais e familiares, embora o documento ainda esteja sendo ignorado em algumas regiões do mundo. Mas, quando se trata das reformas estruturais na Igreja, o papa de 83 anos de idade é mais um homem de palavras proféticas do que de decisões concretas, inspirando a conversão pessoal em vez de mudanças institucionais. Isso abre espaço para a criatividade, quando possível. Mas também pode levar a contradições.
Tomemos a constituição apostólica Veritatis gaudium sobre as universidades eclesiásticas, por exemplo. Ela abre muitas possibilidades, mas estabelece normas que restringem os modos de aplicá-las.
Aqui há um problema de quanto controle Francisco tem sobre o aparato da Cúria Romana, assim como sobre os seus colaboradores teológicos. Alguns se perguntam se as medidas de confinamento impostas devido à pandemia do coronavírus não intensificaram, de fato, o isolamento institucional de Jorge Mario Bergoglio dentro do Vaticano.
Isso é importante, porque, por mais forte que Francisco seja ao oferecer intuições espirituais transformadoras sobre o problema da conversão individual e coletiva, o problema da mudança estrutural a partir de um ponto de vista sistemático e eclesiológico nunca foi realmente abordado (nem mesmo à luz da tragédia da crise dos abusos sexuais na Igreja Católica).
A visão transformadora de Francisco é um dom do Espírito Santo, quando ele fala sobre questões sociais, econômicas, ambientais (veja-se a Laudato si’, especialmente), e em termos de eclesiologia da família (meu papel de pai de crianças pequenas tem sido moldado de uma forma incrivelmente profunda pelo pontificado de Francisco). Mas, então, parece parar quando se trata de estruturas eclesiásticas pecaminosas e do desenvolvimento doutrinal referente ao ministério.
O fato é que a “conversão pastoral” também requer alguma “conversão estrutural eclesiástica”. Mas Francisco não quer ir até aí – pelo menos não ainda. Ele interpretou o papado como o gesto de abrir espaços e processos em níveis diferentes, mas muito menos no nível da estrutura eclesiástica.
A eclesiologia do Povo de Deus exige mudanças nas estruturas. Se essas mudanças não vierem também do topo, a eclesiologia do Povo de Deus não chegará a lugar algum. Ou só chegará até onde o catolicismo latino-americano de Bergoglio chegou. A seção da “Querida Amazônia” sobre sacerdócio e ministério não é apenas praeter-Vaticano II. Em algumas passagens, ela soa realmente pré-Vaticano II, o que claramente não é a forma como Francisco pensa e sente o Concílio.
Quando se trata da sinodalidade, ele deu passos enormes em comparação com qualquer um de seus antecessores. Desde 2014, as assembleias do Sínodo dos Bispos são eventos eclesiais claramente mais genuínos. É verdade que o papa tem um problema com um episcopado incapaz de “carregar” a sinodalidade, especialmente na relação deles com suas Igrejas locais. É preciso reconhecer que a sinodalidade em outras tradições cristãs nem sempre funcionou bem. A Igreja Católica não deveria imitar cegamente outros modelos. Mas não está claro como, exatamente, Francisco vê a sinodalidade. É simplesmente o fato de o primado papal estar mais disposto a ouvir ou é algo mais do que isso? Convocar comissões pontifícias que representam apenas um lado do sensus fidei da Igreja Católica e que não têm representantes do debate teológico sobre uma questão específica não é realmente um modo sinodal de abordar as questões.
Aqui, Francisco paga o preço de ser muito mais inovador do que a maioria dos bispos no que diz respeito à sinodalidade. Mas ainda há uma visível lacuna entre ele e os teólogos. A teologia católica precisa da Igreja e precisa servir à Igreja mais do que costuma admitir. Por outro lado, a Igreja e a reforma da Igreja precisam da teologia, incluindo a teologia acadêmica. Graças a Deus, a Igreja não é governada por acadêmicos.
Eu critiquei a falta de recepção do magistério de Francisco entre os círculos teológicos acadêmicos, incluindo os teólogos acadêmicos liberais. Também alertei contra os perigos da autorreferencialidade na teologia acadêmica. Mas o papado precisa alimentar algum tipo de relação com a teologia acadêmica. Os teólogos também fazem parte do Povo de Deus. A teologia deve fazer parte do processo sinodal, até mesmo no nível universal. Se não fosse pelo trabalho de teólogos acadêmicos nas últimas três décadas, ninguém estaria falando de sinodalidade hoje.
Os próximos anos serão decisivos para o futuro da Igreja. A pandemia do coronavírus faz parte da crise da globalização. E isso acelerará a crise do sistema eclesiástico herdado da cristandade medieval. A superação desse sistema não tornará necessariamente a Igreja Católica menos católica.
Atualmente, muitos católicos estão olhando com grande esperança para o Concílio Plenário da Austrália, para o “Caminho Sinodal” na Alemanha, para a implementação do chamado “Sínodo Amazônico” e para a próxima reunião do Sínodo dos Bispos, que ocorrerá em 2022 com foco na sinodalidade.
A Igreja celebrará outro grande jubileu em 2025. Ele coincidirá com o 17º centenário do Primeiro Concílio de Niceia (325) e será uma grande oportunidade ecumênica.
Enquanto isso, ainda há uma necessidade urgente de reformar a Igreja Católica, a fim de responder à atual crise dos abusos sexuais, que agora é reconhecida como um fenômeno global. Em alguns países, essa será a última esperança para a Igreja chamar as novas gerações para receberem o Evangelho em uma comunidade eclesial.
As questões da sinodalidade e do ministério das mulheres não fazem parte de uma agenda liberal amplamente passé, mas sim da missão de evangelizar. O fato é que a questão das mulheres na Igreja é central, mas também é aquela sobre a qual a experiência pessoal de líderes religiosos do sexo masculino pesa mais.
Existe o temor de que os processos que foram abertos nessas duas questões ao longo do ano passado não foram realmente abertos. Não há nenhuma sinodalidade confiável sem um novo papel para as mulheres na Igreja. Esta questão não pode ser resolvida por uma linguagem paternalista sobre as mulheres.
Para ser claro, não estou promovendo o sacerdócio feminino aqui. Mas nem todos os pedidos de reforma referentes ao ministério das mulheres na Igreja podem ser respondidos com “elas podem ir para outro lugar”. Antigamente, a emancipação das mulheres já foi identificada com a tradição católica. Mas agora a tradição católica é amplamente identificada com a exclusão das mulheres. Essa não é apenas a visão dos secularistas ou parte de uma agenda liberal para modernizar a Igreja. Muitos católicos praticantes e leais têm a sensação de que a sua Igreja se recusa a reconhecer um óbvio “sinal dos tempos” – que Deus está pedindo que a Igreja mude.
O Papa Francisco disse isso no seu discurso ao Pontifício Conselho para a Nova Evangelização, em outubro de 2017:
“Não é suficiente encontrar uma linguagem nova para dizer a fé de sempre; é necessário e urgente que, diante dos novos desafios e perspectivas que se abrem para a humanidade, a Igreja possa expressar as novidades do Evangelho de Cristo que, embora contidas na Palavra de Deus, ainda não vieram à tona”.
Um eterno adiamento das mudanças sobre essa questão levará as massas de católicas (e de católicos) a se distanciarem da Igreja ou mesmo a abandonarem a fé. Essa não será a minha escolha, mas será a de muitos – muitos mais dos que já fizeram essa escolha. Para alguns católicos, esta realmente é a última chance. E, como pai, esse é pessoalmente o meu maior medo.
Francisco está certo: é hora de uma nova perspectiva de longo prazo. Ao longo dos últimos sete anos, ele descobriu formas de ir ao encontro dos fiéis que não são mediados pelos canais curiais. Mudanças significativas como as que ele está nos chamando a fazer obviamente levam tempo. Não há dúvida de que, sem profundas mudanças espirituais e culturais, todas as mudanças externas terão vida curta ou, pior ainda, serão ilusórias.
Novamente, trata-se de uma perspectiva de longo prazo. O problema é que, sem decisões sobre questões institucionais e estruturais (e particularmente sobre as mulheres e sobre os ministérios), em algumas Igrejas simplesmente poderia não haver longo prazo.
O Papa Francisco mudou profundamente a vida de muitos e está moldando a Igreja Católica em algo mais evangélico e semelhante ao Evangelho. Muito disso se deve à sua capacidade incomparável de oferecer uma leitura espiritual das situações existenciais.
Mas essa mudança também requer algumas mudanças estruturais. Ele e os bispos não devem menosprezar ou rejeitar os pedidos de reforma institucional como tecnocratas ou elitistas.
“A Igreja é instituição. A tentação é sonhar com uma Igreja desinstitucionalizada, uma Igreja gnóstica sem instituições, ou que está sujeita a instituições fixas, que seria uma Igreja pelagiana”, disse o papa em sua recente entrevista com Austen Ivereigh, especificamente para os católicos de língua inglesa. “Quem faz a Igreja é o Espírito Santo, que não é nem gnóstico nem pelagiano. É o Espírito Santo que institucionaliza a Igreja de uma forma alternativa e complementar”, disse o papa.
Alguns se perguntam se e quando o Espírito Santo abandonou seu trabalho de institucionalizar da Igreja ou se ele está totalmente feliz com o atual sistema institucional. Não se trata da queixa de um acadêmico que pensa que Deus criou as faculdades de teologia para anunciar o Evangelho. Não se trata de uma expressão de decepção, manifestada por outro liberal que esperava que Francisco criasse uma “admirável Igreja nova”. Essa Igreja “tábula rasa” não existe.
Essas preocupações e reflexões são de um leigo católico cuja vida – como membro da Igreja, como pai e como acadêmico – foi transformada profundamente pelo Papa Francisco de várias maneiras. Juntamente com muitos outros, sou e sempre serei profundamente grato por isso. Mas eu sinto o dever, em filial devoção ao papa, de ajudar a minha Igreja a entender a necessidade urgente de reforma.
O grande teólogo francês Yves Congar, cuja obra influenciou muito Francisco, ressaltou em um dos livros mais importantes que existem quatro atitudes necessárias para empreender uma reforma: obediência, paciência, comunhão e moderação (“Verdadeira e falsa reforma na Igreja”). Mas, na mesma seção do livro, publicado originalmente em 1968, Congar também lembrou as lideranças da Igreja sobre outra responsabilidade: não ser paciente demais.