14 Abril 2020
Há três semanas, o ministro da Saúde brasileiro, Luiz Henrique Mandetta, perguntava-se onde o sistema de saúde brasileiro desmoronaria, assumindo que aconteceria. A resposta veio de Manaus, capital do estado do Amazonas. “A rede de hospitais do estado entrou em colapso”, declarava no domingo o prefeito Arthur Virgílio Netto: “Não é mais capaz de fazer fluir a demanda por tratamento contra o coronavírus”. No momento, chegou a 600 casos positivos e 23 vítimas mortais, demonstrando a fragilidade da estrutura.
A reportagem é de Víctor David López, publicada por Público, 12-04-2020. A tradução é do Cepat.
Pelo mesmo rincão do Brasil onde começou a estagnação do sistema de saúde, surgiu a grande ameaça para os povos originários da Amazônia na América do Sul, com um sistema imunológico não acostumado a doenças desse calibre. No estado do Amazonas chegou, precisamente, o primeiro caso positivo de uma indígena no Brasil, uma jovem agente de saúde da etnia kokama, residente da Aldeia de São José, no município de Santo Antônio do Içá, segundo notificou a Secretaria. Especial de Saúde Indígena.
Mas isso já aconteceu há uma semana, e agora o vírus se espalhou pelas comunidades indígenas de todos os países amazônicos, começando pelo Equador, com o desastre centralizado em Guayaquil, que está golpeando dezenas de indígenas migrantes, deslocados desde então da selva para a cidade. Agora, quem sai para a cidade não pode mais voltar para a comunidade. São diretrizes rígidas da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE).
Fazer com que todos os países sul-americanos amazônicos remem na mesma direção, quando se trata de proteger os povos originários, não é uma tarefa fácil, mesmo em tempos de emergência. Isso é assumido pela secretária geral da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), Alexandra Moreira, em conversa com o Público: “A organização leva tempo”. Moreira, ex-ministra boliviana de meio ambiente e água, já se reuniu bilateralmente com todos os países envolvidos. Pressupõe que, para começar, precisam de algo básico, mas trabalhoso: “capacitar e difundir as informações em idioma próprio” de cada povo. Além disso, “agora se fazem mais necessários ainda”, aponta, “os cordões de proteção sanitária”, o respeito às demarcações das reservas. O “eu fico em casa” se transforma, no universo indígena, em “fique no território”.
Qualquer omissão a esta pandemia pode apagar do mapa de uma só vez a algum dos povos originários. “Os guardas indígenas estão nos pontos de controle territorial”, alerta Luis Kankui, conselheiro sênior da Organização Nacional dos Povos Indígenas da Colômbia (ONIC), “contendo essa pandemia para que não atinja nossos territórios”. A ONIC preparou um Plano de Contingência, sempre fiel à sua visão de mundo, “partindo da premissa de que a maioria dos povos indígenas da Colômbia pratica a medicina tradicional própria”. Para tal efeito, o plano “convocará rituais para a proteção do território e da população, apelará a instituições de saúde indígenas, a convênios com instituições de saúde não indígenas e à implementação de mecanismos que andam de mãos dadas com o Sistema Indígena de Saúde Própria Intercultural (SISPI) e o Sistema Educativo Indígena Próprio (SEIP)”.
Igualmente contundente e autossuficiente se posiciona a mencionada CONAIE no Equador. “Decidiu-se implementar nossos protocolos comunitários, de acordo com nossas realidades”, explicava Jaime Vargas, seu presidente, em entrevista coletiva transmitida nas redes sociais nesta terça-feira. “Como não tem havido presença das autoridades, nossas comunidades têm tomado suas próprias decisões”. As medidas incluem “ajuda humanitária do campo para a cidade, um plano de solidariedade”.
Em paralelo, a CONAIE critica fortemente o presidente equatoriano, Lenín Moreno, por ter decidido pagar uma nova rodada de juros da dívida externa - tradicional calvário sul-americano -, em vez de destinar essa quantia - 320 milhões de dólares - para a crise sanitária. Moreno se defendeu afirmando que, por pagar suas dívidas em dia, o Equador é considerado um país confiável, e o Fundo Monetário Internacional (FMI) lhes emprestará mais dinheiro “através de um instrumento de financiamento rápido”. A roda, portanto, continua girando.
A Organização do Tratado de Cooperação Amazônica, tal como explica Alexandra Moreira, sua secretária geral, trabalha atualmente em dois projetos que apresentará nas próximas semanas ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para tentar arrecadar recursos a tempo. O primeiro dos projetos está orientado a “facilitar respostas de emergência e pós-crise nas áreas de fronteira da Amazônia, promovendo ações de cooperação transfronteiriça”, o segundo projeto é mais sensível: concentra-se nos “povos indígenas altamente vulneráveis e em contato inicial”. Sugerem a formação de grupos de especialistas que atuem se adaptando à visão de mundo desses povos.
O desafio civilizatório é grande, e os antecedentes em relação aos povos de contato inicial, temíveis. Todos se lembram do que aconteceu com os Nukak, trinta anos atrás - final dos anos 1980, inícios dos anos 1990 -, quando tentavam administrar sua abertura gradual à sociedade não-indígena. Eram e continuam sendo o último povo em fase inicial de contato na Colômbia. Uma gripe arrasou 40% de sua comunidade. Atualmente, restam pouco mais de duzentos, deslocados de suas terras, como se fosse pouco, devido ao abrupto conflito armado. Avisados da pandemia da covid-19, os Nukak decidiram se isolar novamente e começaram a recuar para sua origem, as profundezas da selva de Guaviare.
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América do Sul e seu desafio civilizatório do século: proteger os povos originários amazônicos da covid-19 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU