26 Março 2020
Como podemos viver em isolamento? Precisamos de proximidade e toque, abraços e beijos, para estarmos realmente vivos. Na Capela Sistina, Michelangelo mostra o dedo de Deus que toca em Adão dando-lhe vida. Somos todos as mãos do Deus que dá vida quando tocamos os outros com bondade e respeito.
A opinião é do frade inglês Timothy Radcliffe, ex-mestre geral dos dominicanos de 1992 a 2001. O artigo foi publicado em La Croix International, 25-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na fila para passar pela segurança no aeroporto de Tel Aviv na semana passada, eu fiquei fascinado com os movimentos de balé do homem que estava na minha frente.
Ele quase dançava enquanto manobrava suas malas para que ninguém pudesse ficar mais do que dois metros perto dele.
Ele provavelmente foi esperto, mas, para mim, ele evocou vividamente dois aspectos do novo mundo em que vivemos da melhor maneira possível.
Acima de tudo, a insegurança. A ameaça da morte paira no ar, literalmente. Somos vulneráveis.
Quando eu tive câncer há três anos, fui confrontado com a minha própria mortalidade. Isso é diferente, pois afeta todos a quem amamos.
As duas pessoas de quem eu sou mais próximo na minha comunidade em Blackfriars, em Londres, são de alto risco. Um deles tem apenas 50 anos. Mas já tem uma doença crônica, o que significa que ele não tem nenhuma imunidade.
Ambos são os irmãos com quem eu tenho passado as férias, todos os anos, há muitos anos. Talvez eu nunca mais vou fazer isso de novo. A única maneira com que eu posso responder a isso é aproveitando a companhia deles agora. A vida deles é um dom pelo qual eu posso agradecer todos os dias. Eu saí e comprei uma garrafa de vinho para poder tomar uma taça com quem ainda pode dividir o mesmo espaço comigo.
A gratidão inundava o meu ser. Íamos ter uma noite maravilhosa. Mas ele acabou de me telefonar para dizer que devemos postergar, pois ele não está bem.
O jovem das malas também era uma imagem de isolamento.
Todo estranho e também até amigo são vistos como uma possível ameaça à própria vida, e eu à deles. A segurança é encontrada apenas em ficar longe.
Mas como podemos viver em isolamento? Precisamos de proximidade e toque, abraços e beijos, para estarmos realmente vivos.
Na Capela Sistina, Michelangelo mostra o dedo de Deus que toca em Adão dando-lhe vida. Somos todos as mãos do Deus que dá vida quando tocamos os outros com bondade e respeito. O toque é o alimento da nossa humanidade. Avós e netos que não podem se abraçar estão vivendo uma profunda privação!
Sou profundamente grato, como nunca antes, por viver em uma comunidade, de modo que, mesmo neste momento terrível, eu posso sair do meu quarto e encontrar meus irmãos.
E eu moro em uma cidade bonita, repleta de parques nos quais posso caminhar e ver os sinais da primavera. Eu não tenho nenhuma razão para reclamar.
Mas milhões de pessoas estão privadas da proximidade física que precisamos florescer.
Por outro lado, o ciberespaço está cheio de mensagens expressando amor e carinho. “Você está bem? Você já voltou de Israel?”
Recebi três mensagens desde que comecei a escrever este pequeno texto.
De repente, quando não devo tocar, estou em contato com pessoas que eu não vejo há anos. Sim, existe o isolamento, mas também uma nova e ampla comunhão daqueles que se importam. É claro que não é o mesmo. Eu sinto falta dos rostos daqueles a quem amo.
Ontem, pela primeira vez na minha vida – que confissão! – eu usei o Skype. Entrei em contato com um amigo que mora no exterior para saber como ele estava.
À noite, contatei pelo Skype outro irmão que está isolado de todos nós. Foi melhor do que nada, mas não é o mesmo que ver um rosto tridimensionalmente.
Normalmente, não sentamos na frente das telas nos encarando. Vemos melhor os rostos em olhares de relance, vislumbres inesperados, pegos de surpresa quando alguém entra em uma sala.
Não encaramos os rostos daqueles a quem amamos, enquanto nos concentramos incansavelmente na tela quando ligamos pelo Skype ou pelo Zoom. Quando estamos fisicamente juntos, olhamos uns aos outros de modo gentil, discreto, de todos os ângulos.
O irmão a quem eu liguei pela primeira vez no Skype me disse que, em hebraico, os rostos iluminam. É como se a luz brotasse dos nossos olhos, iluminando aqueles a quem amamos.
Nós nos aquecemos com o seu esplendor, como banhistas na praia; descansamos no seu olhar. Eu sinto falta de muitos rostos neste momento.
E do toque!
Ontem, celebramos a última eucaristia pública dos próximos dias. Enquanto saímos em procissão, um amigo acenou. Estaremos em jejum da intimidade compartilhada do Corpo de Cristo.
Os primeiros cristãos chocavam os pagãos com a intimidade do nosso toque no beijo da paz. Era realmente um beijo na boca! Tudo isso vai parar por enquanto.
Como podemos privar as pessoas da eucaristia?
Interiormente, eu me rebelei contra a decisão da Igreja de encerrar todas as liturgias públicas, embora, racionalmente, eu saiba que isso é inevitável.
Obviamente, o trabalho pastoral e a escuta das confissões ainda continuam, muitas vezes discretamente em bancos nos jardins, deixando o ar fresco nos impedir do contágio mútuo.
Como membros da Ordem dos Pregadores, devemos encontrar todos os modos possíveis para proclamar o evangelho. Nossos estudantes dominicanos estão explorando novas maneiras de entrar em contato com a web. Nossas aulas universitárias serão online.
Nunca houve um esforço tão vasto para levar o evangelho no continente digital. Maravilhoso!
No entanto, a maior parte da alegria de pregar vem dos rostos, dos sorrisos e das risadas, das pessoas a quem nos dirigimos.
Santo Agostinho diz que devemos ensinar com “hilaritas”, exuberância e até êxtase.
É algo intensamente mútuo. Quando a ocasião é abençoada, o pregador e o povo se inspiram reciprocamente.
Um imã sufi do século XV, mulá Nasrudin, disse: “Eu falo o dia todo, mas, quando vejo os olhos de alguém arderem, então eu escrevo”.
Então, para mim, este é um tempo de intensa comunhão, mas também de privação, de amigos redescobertos e de ausência, de ir ao encontro, mas de não tocar.
Tudo o que perdemos neste tempo de peste – esperamos e confiamos – será recuperado em pouco tempo. O coronavírus passará.
Mas algo está no ar que pode ser contagioso para o bem. Eu rezo para que nós, na Grã-Bretanha, possamos relembrar tudo isto como o momento em que recuperamos algum senso de que somos uma única comunidade nacional.
O governo conservador fez um anúncio extraordinário: se uma empresa dispensar um funcionário, em vez de demiti-lo, o governo pagará 80% do seu salário.
Trata-se de uma intervenção do Estado sem paralelos na história da Grã-Bretanha e cujo custo é difícil de imaginar.
Mas, lentamente, nossos políticos estão percebendo que, a menos que sejam tomadas medidas drásticas em favor dos mais pobres, as pessoas sem contratos formais, as que ganham menos, o resultado pode ser uma sublevação social que a Europa não vê desde a Revolução Francesa.
Só podemos sobreviver como sociedade por meio de mudanças radicais. As vastas desigualdades de riqueza enfraqueceram tanto os nossos laços comuns que um sofrimento financeiro extremo poderia provocar a dissolução social.
O clamor dos políticos conservadores desde a crise financeira de 2008 sempre tem sido: “Estamos todos juntos nisto”. Mas não era verdade.
Talvez, pelo menos uma parte da elite política precisa ver que, se não estivermos realmente juntos nisso, as consequências serão quase impensáveis.
É claro que, como um europeu inabalável, eu espero que finalmente possamos ver que não podemos florescer sem os nossos amigos europeus também!
O Brexit não poderia ter acontecido em um momento mais infeliz.
Esperamos que possamos descobrir que, assim como o vírus cruza as fronteiras nacionais e não precisa de vistos, nós devemos renovar o nosso senso de que pertencemos a uma única comunidade humana da qual nenhuma saída é possível.
Eu estava no aeroporto de Tel Aviv, voltando para casa depois de um mês com meus irmãos na École Biblique de Jerusalém.
O vírus interrompeu a vida da École. A maioria dos professores estava presa no exterior, incapaz de retornar, mas eu ainda pude passar um tempo maravilhoso lendo as pesquisas mais recentes sobre o Novo Testamento.
Depois de quase 50 anos de sacerdócio e de incessante pregação, ensino e escrita, eu estava dando uma pausa. Já era a hora de um período sabático.
Mas, depois de um mês, eu estava ficando com fome de trabalhar de novo. Eu tinha palestras para preparar nos Estados Unidos, na França e na Inglaterra.
Agora, elas estão todas canceladas. Existem apenas alguns poucos artigos para escrever sobre a crise. Obrigado, La Croix, por me convidar!
Eu descobri que sou mais impulsionado por tarefas e objetivos do que imaginava. Agora, tenho que aprender a viver de forma diferente, o que a maioria das pessoas tem que fazer na minha idade de quase 75 anos!
Um amigo australiano me enviou CDs de seus compositores favoritos. Será que eu posso aprender apenas a me sentar, relaxar e ouvir, até mesmo no meio da manhã?
Será que eu posso ler uma peça de Shakespeare só porque ela é maravilhosa e pelo puro prazer da leitura?
Será que eu posso viver este momento atendendo as pessoas que precisam de mim agora e me contentar mesmo que ninguém me ligue?
Será que eu posso aprender que não preciso justificar a minha existência e provar aos outros que a minha vida vale a pena?
Eu posso apenas viver, dia após dia.
Este período sabático me convida a me preparar para o vindouro Sábado do Senhor, quando descansaremos na Sua paz.
O teólogo Pedro Abelardo, do século XII, evocou esse vislumbre do fim da jornada:
Lá, sábado a sábado
Sucedem-se eternamente,
Alegria que não tem fim
Das almas em dia de festa.
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Coronavírus está nos privando da proximidade e do toque, alimentos da nossa humanidade. Artigo de Timothy Radcliffe - Instituto Humanitas Unisinos - IHU