26 Março 2020
Talvez seja a hora de colocar a igualdade das pessoas de volta no centro da Europa e abrir os nossos olhos para o fato de que aquilo que nos é comum é mais fundamental do que aquilo que nos distingue.
A opinião é de Sigrid Müller, professor de Ética Teológica da Universidade de Viena, Áustria, e de David DeCosse, diretor de Ética Católica e Religiosa da Universidade Santa Clara, na Califórnia, EUA.
O artigo foi publicado em La Croix International, 23-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O cínico caos da Guerra na Síria mais uma vez mandou milhares de refugiados sírios para a fronteira turco-grega. Como a ética teológica católica deveria responder?
Obviamente, as necessidades práticas são fundamentais. Refugiados desesperados precisam ser alimentados, vestidos e abrigados. Não pode haver desacordo sobre isso.
Mas queremos falar aqui sobre controversas questões teológicas e éticas relacionadas à resistência dentro da União Europeia ao acolhimento de mais refugiados.
Em particular, queremos argumentar que a Europa precisa reimaginar seu discurso sobre a igualdade, reexaminando suas suposições sobre o fundamentalismo religioso e o secularismo. Ao fazer isso, ela também precisa considerar novamente o papel sufocante da memória em grande parte do continente.
Nossos pensamentos sobre esses assuntos foram influenciados por um congresso nos dias 28 e 29 de fevereiro na Universidade de Viena intitulado “Entre o fundamentalismo e o secularismo na Europa: a contribuição de uma Europa multicultural e multirreligiosa para a Igreja e o mundo de hoje”.
Um livro do congresso está prestes a ser publicado.
O novo discurso sobre a igualdade é necessário não apenas para lembrar a Europa dos direitos humanos dos refugiados que fogem das zonas de guerra, mas também para ajudar a superar a falsa polarização dentro dos países europeus, sem o que é difícil encontrar uma atitude comum em relação à política de fronteiras.
Para fazer isso, é necessário expor a oposição entre a insistência fundamentalista na religião e na tradição e a hostilidade secularista à religião e à tradição.
Essa oposição tem sido forjada no crisol da controvérsia populista. É hora de considerar os dois termos – “fundamentalismo” e “secularismo” – de modo diferente.
As capacidades da Grécia estão no seu limite há anos e, às vezes, existem condições insuportáveis nos centros de recepção na rota para a Áustria e a Alemanha.
Mas precisamos ser honestos sobre o medo de uma provação para os próprios países europeus, porque os refugiados fazem mais do que ressaltar as fronteiras políticas e geográficas da Europa e a responsabilidade compartilhada pelos que fogem da catástrofe.
Os refugiados também deixam claras as tensões subliminares e óbvias nos próprios países membros que dificultam a ação política e social conjunta.
Trinta anos após a queda do Muro de Berlim, as experiências do comunismo e a longa memória da história ainda afetam partes ou países inteiros da Europa.
Dos países bálticos aos países da ex-Iugoslávia, as experiências traumáticas de hegemonia, a soberania violada e a experiência de ser um brinquedo das potências do Ocidente e do Oriente levou a uma oposição a novos cruzamentos de fronteira por parte de estrangeiros e intensificou a necessidade de marcadores identitários na política desses países.
Além disso, o apoio material do berço ao túmulo por parte do Estado comunista deixou sua marca nas almas de muitas pessoas em países como a Eslováquia e a Hungria.
Em tais países – e, de fato, em toda a Europa – há uma disposição a seguir figuras de destaque que prometem a segurança de um passado exemplificado pelas estruturas familiares tradicionais e pelos valores nacionalistas. Tais envolvimentos emocionais com experiências passadas tornam difícil para muitos lidar racionalmente com sua própria situação e, mais amplamente, com a situação da Europa.
Diante do intenso anseio de voltar aos “anos dourados” e simplificados (muitas vezes chamamos isso de “fundamentalismo”), os refugiados sírios certamente não são bem-vindos – e, mais ainda, o secularismo e a mudança tornam-se palavras-chave que sinalizam a ameaça ocidental à própria identidade.
Diante da crise dos refugiados, a memória assombra a Europa de outra maneira: os “fantasmas assustadores” do nosso passado colonial. Um número considerável dos migrantes que agora estão rumando para a Europa têm origem nas antigas colônias de países da Europa ocidental.
Embora hoje fatores como a guerra sejam as principais causas dos fluxos migratórios, também é importante reconhecer os efeitos passados e presentes da história colonial ao causarem esses fluxos.
A Europa aprofundou o seu entendimento e o seu compromisso com os direitos humanos ao passar pelas agonias da Segunda Guerra Mundial. A Europa deve agora renovar seu compromisso com os direitos humanos para todos, defrontando-se com os “fantasmas assustadores” do seu passado colonial nos rostos angustiados e desesperados daqueles que se amontoam na fronteira grega.
De qualquer forma, a profana trindade do populismo é formada por refugiados muçulmanos, secularismo e mudança.
Contra essa ameaça, a lealdade ao passado aparece ser o último baluarte da defesa da Europa. Nesse estado emocional, o cristianismo é interpretado nessa mesma linha – como uma chave para a segurança e o apoio emocionais, conectada à tradição e ao passado.
Mas o cristianismo na chave do Concílio Vaticano II – como um compromisso com a liberdade de consciência, a liberdade religiosa e a justiça em uma sociedade plural – é rejeitado. Com isso em mente, as tentativas de reforma do Papa Francisco parecem uma ameaça.
É claro que inúmeros conteúdos com os quais a identidade é construída, como os valores familiares, a tradição ou os movimentos pró-vida, não são temas genuinamente religiosos, mas dizem respeito a questões sociais e culturais que também são de relevância religiosa.
Por essa razão, essas questões podem ser inteligentemente assumidas politicamente, a fim de abordar pessoas religiosamente devotas e usá-las para os objetivos dos partidos políticos – sem que os políticos tenham necessariamente um interesse genuinamente religioso.
Essa forma de instrumentalização política da religião não apenas disfarça as intenções políticas, mas sobretudo torna invisível o amplo espectro de crenças – tanto por parte dos “tradicionalistas” quanto da contrapartida “secularista”. Tanto a filiação religiosa quanto o mundo secular aparentemente oposto são mostrados em cores polarizadas e uniformes.
Só pode haver um tipo de expressão religiosa válida: a expressão que se alia aos populistas. Assim, uma diversidade muito maior de visões religiosas é banida da praça pública.
E só pode haver um tipo de secularismo: aquele que é hostil ao cristianismo tradicional favorecido pelos populistas.
Mas, mesmo na França, o país europeu com a separação formal mais clara entre Igreja e Estado, existem diferentes entendimentos de secularidade. Mesmo lá, a secularidade não significa a supressão da religião, mas é entendida com mais precisão para garantir que todas as religiões reconhecidas possam gozar igualmente de liberdade religiosa.
Se alguém analisar essas correntes polarizadoras em alguns dos países da Europa central e oriental, também se verifica que elas não são corretamente rotuladas com o termo “fundamentalismo”.
O principal problema aqui não tem a ver com uma interpretação literal dos textos religiosos ou com posições intelectuais impostas a todas as pessoas na sociedade – ambas características-chave daquilo que chamamos de “fundamentalismo”. Mas a realidade fundamental a ser reconhecida e envolvida tem a ver com uma busca emocional por um lar, identidade e segurança.
Olhando para essa análise, portanto, não é suficiente criticar a inadequação argumentativa das posições populistas sem tentar entender o estado emocional do eleitorado. Se essa realidade subjacente não for percebida, a crítica racional só poderá provocar uma retração emocional.
Uma Europa democrática prospera sobre o reconhecimento fundamental da dignidade e dos direitos de todas as pessoas e sobre o desenvolvimento democrático de estruturas justas.
De alguma forma, o cristianismo na Europa deve apresentar a ideia básica de um “nós maior”, que uma as pessoas com posições diferentes para formar uma comunidade. Somente então as preocupações com a própria identidade podem ser levantadas.
A Europa conseguiu superar velhas fronteiras em muitas áreas, e ex-inimigos se tornaram amigos e aliados.
Talvez seja a hora de colocar a igualdade das pessoas de volta no centro da Europa e abrir os nossos olhos para o fato de que aquilo que nos é comum é mais fundamental do que aquilo que nos distingue.
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Europa: refugiados, religião e secularismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU