11 Janeiro 2020
Comunidade paraense resiste a uma série de intervenções: subestação de energia elétrica, ferrovia e poluição fluvial.
A reportagem é de Catarina Barbosa, publicada por Brasil de Fato, 08-01-2020.
Na Comunidade quilombola do Abacatal, em Ananindeua, no Pará, as mulheres tomam a frente na resistência para impedir o avanço de projetos sobre o território. Elas são maioria na associação que move processos judiciais contra as empresas em obras como de subestação de energia, ferrovia, uma rodovia, um gasoduto e até um lixão.
Maria Conceição é da 5ª geração do quilombo, filha de pai negro e mãe índia, ela diz que o igarapé da comunidade a ajudou a criar os filhos. (Foto: Catarina Barbosa/Brasil de Fato)
A luta protagonizada por mulheres no Abacatal não começou hoje. Ela vem desde o surgimento do quilombo, no século 18, quando o conde português Coma de Melo, que não gerou filhos com a sua esposa legítima, teve três filhas com Olímpia, uma escrava.
Relatos orais contam que o conde tinha uma casa onde hoje é a comunidade. A informação integra o livro No caminho de pedras de Abacatal, das professoras Rosa Acevedo e Edna Castro, da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Apesar de herdeiras, as três filhas do conde com Olímpia não tiveram direito ao território de imediato e, por quase três décadas, o espaço foi alvo de disputas. Apenas em 1999 a comunidade teve suas terras regularizadas pelo Instituto de Terras do Pará (Iterpa). O território possui 318 hectares, onde vivem 121 famílias. No século XVIII, o acesso ao local era feito, somente, pelo igarapé Urobiquinha, que desemboca no rio Guamá. Hoje, o acesso é feito também pela Estrada Santana do Aurá, distante oito quilômetros do centro de Ananindeua.
Nascidos da luta para provar a legitimidade de suas terras e da resistência à escravidão, o Abacatal hoje é guardado por um portão. Para passar por ele, é preciso autorização. Do contrário, o visitante fica do lado de fora.
A entrada da comunidade é vigiada 24 horas por moradores de forma a proteger o território quilombola. (Foto: Catarina Barbosa/Brasil de Fato)
A medida de contar com membros da comunidade em um sistema de rodízio para fazer a vigilância foi tomada há seis anos, quando uma série de ameaças tornava o cotidiano na comunidade ainda mais difícil: tráfico de drogas; pistoleiros; poluição; desmatamento.
A medida foi tomada em conjunto pela Associação de Moradores e Produtores de Abacatal e Aurá (AMPQUA), formada por dez membros. Dos dez cargos, nove são ocupados por mulheres. Além da luta travada em outras frentes, no Abacatal, elas também encabeçam lutas contra um sistema violento que quer apagá-las da história.
A reportagem do Brasil de Fato visitou o local em um sábado, dia em que seria feita uma assembleia para discutir o que fazer com o avanço de determinados empreendimentos na comunidade e também a prestação de contas aos associados.
Vanuza Cardoso, uma das coordenadoras da Associação, estava visivelmente exausta. Há menos de uma semana ela tinha integrado um grupo que foi ao Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) pedir providências contra uma declaração racista do procurador da república, Ricardo Albuquerque, afastado do cargo de ouvidor do MPPA depois de dizer que o Brasil não tinha dívida histórica com negros, porque ninguém tinha navio negreiro. Apesar de afastado, ele continua recebendo salário de quase R$ 30 mil por mês. “É luta a todo momento”, disse de imediato.
Apesar das batalhas, Vanuza diz que não pode esmorecer. Ela explica que a luta pela existência do seu território não é uma questão de escolha, mas de sobrevivência, principalmente em um momento em que o desmonte de políticas públicas para o povo quilombola, indígena, ribeirinho está tão escancarado.
“Todo o tempo a gente está lutando e, com a conjuntura que está posta, é bem mais complicado, porque é uma política de morte para essas comunidades. Eu estive em um evento em que um companheiro nosso falou que o governo atual descobriu a fórmula de acabar com a pobreza, que é matando os pobres”, diz.
A morte para um povo que vive da agricultura familiar e do trabalho artesanal vem de várias formas e uma deles é o avanço de empreendimentos sobre o território. Atualmente, uma linha de transmissão de 129 quilômetros de extensão de 500/230 kV, que atravessa dez municípios paraenses: Acará, Ananindeua, Barcarena, Belém, Benevides, Castanhal, Inhangapi, Marituba, São Francisco do Pará, Santa Isabel do Pará causa vários problemas aos moradores.
Subestação da empresa Equatorial. Estrutura fica a apenas um quilômetro da comunidade quilombola do Abacatal. (Foto Catarina Barbosa/Brasil de Fato)
A Equatorial, concessionária de energia do Pará, conseguiu em agosto de 2018 a licença prévia e a de instalação junto a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas), além de autorizações de Fauna e de Supressão de Vegetação, de acordo com o seu site.
Apesar dos documentos não apresentarem nenhuma irregularidade aparente, a coordenadora da comunidade afirma que uma pessoa já morreu em decorrência da construção da subestação e que há risco principalmente para as crianças. Ela afirma que a obra deveria estar mais distante de onde residem as pessoas, mas o projeto inicial ignorou a existência da comunidade.
“No projeto, esse empreendimento não deveria estar a 8 km de um território habitado e ele está a 1 km da comunidade. Em questionamento no Ministério Público, perguntamos para a Aneel porque um empreendimento tão próximo da comunidade e eles falaram que não tinham conhecimento de comunidades no entorno, que eles tiram a foto pelo GPS, mas a verdade é que não é de interesse deles fazer essa sua busca”, disse.
Para tentar as reparações necessárias, a associação entrou com um processo junto a defensoria pública do estado do Pará para serem consultados. “Apesar do empreendimento já estar implantado não impede que seja feita a consulta”, diz ela.
Além dos 10 municípios paraenses impactados, há também 18 comunidades quilombolas atingidas, mas nenhuma delas é citada no site do empresa ou no guia informativo da Linha de Transmissão. Vanuza diz que não há dúvidas de que a empresa agiu e age de má-fé com a população quilombola, já que muitas comunidades não tinham conhecimento da Convenção 169, que versa sobre a consulta prévia.
A convenção, da qual o Brasil é signatário, prevê que povos indígenas e outras comunidades tradicionais devem ser consultadas antes da implantação de qualquer empreendimento que possa lhes impactar direta ou indiretamente. Contudo, no Brasil, a convenção é constantemente desrespeitada.
O Brasil de Fato entrou em contato com a Equatorial, empresa responsável pela subestação construída próxima a comunidade, mas foi informado que a Fundação Cultural Palmares é quem responde pelo assunto. A empresa passou o contato do responsável da Fundação, que não atendeu nossas ligações.
Vanuza diz que, apesar de lutar pela sua comunidade e seus descendentes, a ideia é fortalecer a luta entre outras comunidades quilombolas. No Abacatal foi construído um Protocolo de Consulta Próprio no qual eles informam como, quando e de que forma devem ser consultados quando um empreendimento for atingi-los. O documento foi construído em parceria com a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase).
A subestação da Equatorial; a Rodovia Liberdade, uma parceria público-privada que vai afetar a comunidade; o Aterro Sanitário de Marituba; e o gasoduto. Para Vanuza, todos esses empreendimentos deixam claro um alinhamento do poder público com projetos que visam o lucro, já que, apesar do impacto, a comunidade não foi chamada para dialogar.
“O governo não tem a sensibilidade de ouvir as comunidades, de olhar para o lado ancestral, o lado cultural, o lado de todo um laço afetivo que essas comunidades têm com esses territórios, porque pra nós o território não é, somente, a terra. Tem todo um envolvimento, tem toda uma vida, uma troca: pessoa, território, pessoa, natureza. Para gente é um processo muito violento que a gente não está tendo como respirar. Nem a nível nacional, nem a nível estadual”, resume.
A Ferrovia Paraense é um exemplo de que a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) é comumente desrespeitada. Oficialmente, o governador Helder Barbalho (MDB), anunciou que o projeto foi atualizado de modo a não impactar as comunidades. “Atualizamos o traçado da ferrovia, com a preocupação de que não haja qualquer tipo de conflito com áreas quilombolas e de assentamento”, disse.
Apesar do anúncio e da data da obra, que está prevista para 2021, nenhuma comunidade foi consultada. O Coordenador Adjunto do Programa Amazônia, da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), João Gomes diz que esse é um direito das comunidades, por mais que esteja sendo ignorado.
“Um dos requisitos é que todas as populações, os povos originários e povos tradicionais quilombolas, agroextrativistas, o governo deve consultá-los de uma forma prévia antes de qualquer licenciamento. As pessoas que vão ser afetadas têm que ser bem informadas e isso não está acontecendo”, esclarece.
Além da ferrovia, uma rodovia chamada Liberdade ameaça um direito da população do quilombo determinado na Constituição Brasileira: o de ir e vir. A Rodovia Liberdade é estadual é outra parceria público-privada que, segundo o governo do Pará, interligará Belém à Santa Maria do Pará.
“A rodovia é mais grave, porque ela quer fechar o ramal da comunidade e quer abrir uma via para Marituba, para um outro município para gente voltar para Ananindeua, sendo que as políticas públicas da comunidade são todas em Ananindeua e a gente está resistindo a isso”, afirmou.
O Governo do Estado do Pará foi procurado pela reportagem, mas não se pronunciou sobre os impactos causados pela Rodovia Liberdade aos moradores da comunidade até o fechamento dessa matéria.
Mulheres fazendo a travessia no igarapé Uriboquinha, um dos acesso à comunidade. Local sobre impactos de um aterro sanitário. (Foto: Catarina Barbosa/Brasil de Fato)
Dona Maria Alves da Conceição é da quinta geração do quilombo. Com 70 anos, ela tem pai negro e mãe índia. Enquanto conversava com a reportagem, Dona Maria debulhava um cacho de açaí branco para o almoço. Ela é mãe de 15 filhos, dos quais apenas dois ainda moram em sua casa.
Ao lembrar do passado, ela diz que quem a ajudou a criar os filhos foi o igarapé Uriboquinha, hoje tão impactado. Na época, ele não era poluído e ela mesmo pescava no local.
A lembrança da infância dos filhos se mistura com a dela. A mãe teve 25 filhos e, assim como ela, trabalhou desde cedo e viveu de plantar colher e pescar no igarapé. Hoje, resta não somente saudade, mas também um pouco de tristeza.
“Por causa desse lixão a gente tem dificuldade e tendência é cada vez mais acabar. Eu criei meus filhos com a ajuda desse rio”, lembra.
Criança quilombola em uma das vias de acesso da comunidade (Foto: Catarina Barbosa/Brasil de Fato)
O Uriboquinha é, de acordo com a comunidade, afetado pelo aterro sanitário que recebe o lixo de Belém, Ananindeua e Marituba desde 2015, e trata aproximadamente 40 mil toneladas de resíduos por mês.
Em maio deste ano, a empresa Guamá Tratamento de resíduos que administra o espaço, ameaçou fechá-lo porque queria receber mais para tratar a tonelada de lixo. A Prefeitura de Belém pagava R$ 60 por tonelada e a empresa queria receber R$ 114.
Desde junho de 2019, a empresa cumpre decisão acordada durante audiência de conciliação na Justiça do Estado. A Guamá prosseguirá com a operação por mais 24 meses, a partir da data do acordo. Segundo a empresa, durante esse tempo, as prefeituras e autoridades competentes podem avaliar, definir e implantar uma solução para a gestão dos seus resíduos sólidos.
Para a quilombola e coordenadora da comunidade Vanuza Cardoso, com ou sem operação, os impactos estão postos e ameaçam comunidade. “Deveria ser um aterro sanitário, mas é um lixão, que também está a um quilômetro da comunidade, onde o chorume transborda das bacias. Já mudou a coloração do igarapé, mudou a coloração da água e já encontramos peixes mortos”, resume.
A Guamá Tratamento de Resíduos afirma que utiliza critérios construtivos de engenharia de modo a garantir a segurança ambiental e a qualidade das águas subterrâneas, superficiais e solo, seguindo padrões da legislação e normas específicas. A empresa disse ainda que periodicamente é realizado monitoramento e análise ambiental da água superficial e subterrânea em laboratórios acreditados pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro).
Segundo a companhia, a existência por décadas de múltiplos espaços insalubres e pontos de descarte irregular, podem originar impactos ambientais ao município, que ainda carece de estruturas básicas de saneamento e infraestrutura urbana.
A água é fundamental para a comunidade, que sobrevive da agricultura familiar, da venda de farinha d’água, do tucupi, da maniva, de plantas medicinais, e de frutos como o açaí, a pupunha, o cupuaçu, a laranja, a banana, a acerola. Sábado, além de ser dia de se reunir com a associação era também dia de escoar a produção na feira do Produtor de Ananindeua, localizada no centro do município.
Cercado por projetos que os ameaçam, a comunidade luta para que a poluição não chegue aos seus alimentos e segue alimentando o seu povo e a população de Ananindeua, que, mesmo sem saber, coloca diariamente em suas mesas um pouco da luta dessas guerreiras quilombolas.
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Mulheres são linha de frente no combate a ações predatórias em quilombo no Pará - Instituto Humanitas Unisinos - IHU