03 Dezembro 2019
O problema real é o Estado só se fazer presente com seu braço armado, treinado para conflito, entregando repressão e estigmatização, genocídio e criminalização quando deveria criar equipamentos públicos (ou aproveitar os já existentes) para suprir esta necessidade tão básica do ser humano que é a recreação, escreve Bruno Ramos, articulador Nacional do Movimento Funk, empreendedor e produtor cultural, estudante de Sociologia e Ciências Políticas na FESPSP, publicado originalmente no Mídia Ninja e reproduzido por Fundação Perseu Abramo - FPA, 02-12-2019.
Eis o artigo.
Nove jovens morreram pisoteados neste fim de semana, durante um dos maiores bailes funk da cidade de São Paulo, o conhecido Fluxo DZ7, em Paraisópolis, na zona sul da capital. Na versão da polícia, dois homens em uma moto teriam atirado contra agentes da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas) e fugido para dentro do baile. A comunidade nega e diz que entradas violentas na favela durante o baile têm acontecido toda semana, com direito a rojões, bombas e balas de borracha.
De acordo com o registro policial, as vítimas foram pisoteadas depois de uma “ação de controle de distúrbios civis”. Como bem definiu a deputada Erica Malunguinho em seu Twitter neste domingo “o distúrbio civil no caso é a favela, no caso é gente, no caso pobre, no caso preta”. E é ai que moram os grandes questionamentos: por que uma dispersão policial mataria nove pessoas? Por que um baile precisa de dispersão violenta? De quem é a responsabilidade por essas mortes? Onde está o diálogo do poder público com as comunidades?
A reflexão mais imediata é a de que, despreparada e com cartão verde para oprimir a população periférica, a Polícia do Estado de São Paulo é a grande responsável.
Quem aperta o gatilho porém recebe ordens e essas ordens saem do mesmo local que poderia criar uma política cultural decente e inclusiva para a quebrada.
Apesar de todas as suas complexidades, o fluxo de rua não é só problema para a periferia. É solução também. Ele gera renda para as famílias que vendem comidas e bebidas durante os bailes e proporciona entretenimento para os jovens, que não têm alternativa de lazer dentro do território. O problema real é o Estado só se fazer presente com seu braço armado, treinado para conflito, entregando repressão e estigmatização, genocídio e criminalização quando deveria criar equipamentos públicos (ou aproveitar os já existentes) para suprir esta necessidade tão básica do ser humano que é a recreação.
Não dá para falar em “tragédia” se o Estado decide usar lógica de guerra para dispersar uma festa que reúne mais de cinco mil pessoas todos os finais de semana. Existe um projeto para amedrontar a população mais vulnerável; um projeto para colar na periferia o estigma de que nesses territórios existem apenas bandidos; um projeto que se nega a entender o funk como cultura; um projeto que nega o próprio povo e os produtos do abandono ao que ele foi submetido.
Bom mesmo seria que as demandas por educação, cultura, iluminação pública, rua asfaltada, transporte público, saneamento básico, creches fossem atendidas tão rapidamente quanto as legítimas reclamações de barulho durante os bailes na favela. Ou ainda que ambulâncias quando chamadas chegassem tão rápido quanto as viaturas chegam para desligar o som. No cenário atual, de absoluto descaso, sofrem as famílias que tiveram suas casas desvalorizadas pelo barulho do fluxo; sofre a polícia que, mal preparada, adentra o território também com medo; sofre a juventude que tem seu único meio de lazer criminalizado. Sofrem artistas, os tiozinhos da cerveja, as famílias do churrasquinho. Sofre mais uma vez toda a base da pirâmide.
Talvez esse tipo de ação escape inclusive a uma lógica de política institucional, que é baseada na disputa por popularidade. Mas é perfeitamente coerente com a lógica do estado de controle sob o qual vivemos. A cultura é onde a vida periférica consegue se realizar para além da lógica da mera sobrevivência, já que todo o resto é podado.
A última trincheira de um estado que busca a eliminação de seus sujeitos indesejáveis é a cultura. Criminalizar e aterrorizar o ambiente de produção cultural é, portanto, um expediente-chave para eliminar as possibilidades de existência plena nas margens.
E, se da criminalização os exemplos práticos abundam, falar em “aterrorizar” a cultura pode soar quase metafórico. Mas não é. Quando temos agentes do Estado disseminando o pânico, estamos diante de uma inversão da lógica da segurança pública. A premissa fundamental da segurança de qualquer evento de massas, formal ou não, legal ou não, é a contenção do pânico. Tudo pode dar errado, mas o pior cenário possível é o “estouro de manada”. Se uma ação do Estado provoca o “estouro de manada” – e a prova de que isso ocorreu é o simples fato de as pessoas terem morrido pisoteadas – você tem um Estado promotor do terror.
O que aconteceu em Paraisópolis foi terrorismo de Estado. A pergunta que surge, portanto, é: por que o Estado quer disseminar o terror? Qual o projeto político por trás do terror?
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Paraisópolis: a única política de Estado pra quebrada é o terror - Instituto Humanitas Unisinos - IHU