03 Julho 2019
Nas aldeias de Tabatinga, no Amazonas, parteiras ticunas repetem tradições ancestrais e aprofundam a cada geração seu conhecimento sobre a melhor maneira de vir ao mundo.
A reportagem é de Rodrigo Pedroso, publicada por Agência Pública, 02-07-2019.
“Aqui morreram três filhos meus”, comenta, econômica nas palavras, Lourdes Araújo Firmino. Era de manhã e acabávamos de passar em frente ao hospital militar, na avenida principal da cidade de Tabatinga, no Amazonas. Os dois primeiros, Francisquinho e Francisco, nasceram com complicações e morreram após o parto. Mas foi Maria, a última, quem mais deixou marcas na sua vida. Lourdes, então com 36 anos, obesa e diabética, tivera uma gravidez considerada de risco pelos médicos militares. Ainda assim, Maria chegou saudável ao final da gestação.
No dia em que a bolsa estourou, Lourdes, ticuna, parteira indígena por profissão, decidiu que queria ter um parto natural. Os médicos não lhe deram ouvidos. “Estava cedo para puxar ela. Eu falava, mas eles se faziam de surdos.” Naquela época, no começo dos anos 2000, era proibido às parturientes levar acompanhantes para a sua hora em hospitais públicos. O marido brigou: ficou do lado de fora do centro cirúrgico e foi impedido pelos funcionários de entrar na sala para acompanhar a mulher. Conseguiu vê-la só após a constatação do óbito de Maria.
Pouco depois, na cozinha de sua casa de alvenaria com parte do teto por terminar, Lourdes, agora com 52 anos, mostra ao repórter as fotos que tirou da bebê após o parto, com lacerações nos braços e no pescoço. “Olha ela toda machucadinha. Foram impacientes, puxaram muito ela”, lamenta. E coloca as fotos em uma sacola rosa, estampada com um desenho de princesa. O marido ainda hoje não consegue olhar para as fotografias.
Nada mais distante do que ela tem como princípio para a profissão que escolheu. “Um bom parto tem que ser feito pela mulher, no tempo dela, com ela se descobrindo. Não pode forçar nada. A gente tem só que acompanhar e cuidar dela nessa travessia”, diz.
No dia em que morreu a parteira mais antiga da aldeia Umariaçu, Lourdes fazia o parto de um bebê, mais um entre os “mais de 200” que ela lembra de memória.
Só pôde ir chorar a morte de Raimunda Coelho quando o velório estava no final.
A amiga de décadas falecera aos 78 anos enquanto dormia. Foi enterrada no cemitério improvisado da aldeia onde vivem 8.400 ticunas, colada à cidade de Tabatinga, a mais de mil quilômetros a leste de Manaus. Ao longo de todo o dia, crianças, jovens, adultos e idosos entravam na casa de Raimunda, agachavam-se de costas para a parede e de frente para o caixão aberto no chão da sala, acendiam uma vela e prestavam condolências ao viúvo. Conversavam em voz baixa: eram todos ticunas, a maior população indígena da Amazônia brasileira (45 mil, segundo o censo de 2010), que vive espalhada pela fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru.
Lourdes chegou às 13 horas, de mãos dadas com o filho adotado – além dele, ela tem mais seis filhos naturais – relutante em ver o corpo. Passou pela porta da casa modesta, onde um mico-preto de estimação andava pela viga do teto, e acendeu também uma vela no pé do caixão. Do lado esquerdo encontravam-se amontoados um colchão, um balde, shampoo, saia, porta-retrato, uma sacola da Natura com frase sobre empoderamento feminino e a rede na qual Raimunda costumava dormir depois do almoço. Apesar de a maioria dos ticunas terem se tornado católicos ou evangélicos, acreditam que velar e enterrar os mortos com suas posses lhes pode ser útil no além.
Lourdes detém o olhar sobre a amiga, coberta dos pés ao pescoço por um lençol branco, e se senta ao lado de outras três parteiras. Especulam sobre as causas do falecimento: se havia sido por causa do jambo, uma fruta leitosa, que comera na selva; se pela precariedade do hospital; se por causa do médico que ignorou a gravidade do caso e a mandou de volta à aldeia ainda doente.
Mas isso não era motivo de preocupação. Vivenciar o começo e o fim da vida é uma experiência recorrente para esse grupo de mulheres. A preocupação maior das parteiras naquela sala era que Raimunda morrera sem ser reconhecida e gratificada pelo Estado brasileiro.
Afinal, foram mais de cinco décadas trazendo ao mundo os bebês de Umariaçu.
Desconfiadas do sistema público de saúde, as indígenas da aldeia se fiam nas parteiras para passar pelas incertezas e dores da gestação e do parto. São essas mulheres, em sua maioria idosas, analfabetas e que aprenderam o ofício com suas antepassadas, que conduzem o momento no qual, para elas, a menina morre para que a mulher, transformada em mãe, possa nascer.
No ano passado, metade dos 82 partos em Umariaçu foram feitos pelas parteiras na aldeia, de forma natural, segundo os cálculos do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) responsável pela região.
Desde 2015, as profissionais de saúde do DSEI começaram a pedir às 14 parteiras cadastradas que anotem os partos, apesar de saberem que poucas conseguem escrever o próprio nome. Também deram kits para melhorar as condições de higiene e pediram a elas que acompanhassem a equipe de saúde no exame pré-natal realizado de porta em porta. Acenaram também com a possibilidade de uma remuneração. Criou-se a expectativa, mas não há previsão de formalização da atividade.
O esboço de inclusão dessas mulheres na equipe de saúde contrasta com a lógica do sistema de saúde brasileiro. Cinquenta e seis por cento dos partos no país em 2017 – últimos dados disponíveis no Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc) – foram realizados com cirurgia cesariana. Na rede privada de São Paulo, cidade mais rica do país, oito de cada dez paulistanos chegam ao mundo através da cesariana.
O Brasil é o país do mundo que mais usa o procedimento e por isso figura na vanguarda de um péssimo fenômeno global.
O uso da cesárea vem se disseminando rapidamente no mundo – duplicaram no século 21 –, e a Organização Mundial da Saúde (OMS) pede aos países que se esforcem para que seus sistemas de saúde façam mais partos normais, uma vez que, segundo a literatura médica, não mais de 15% dos nascimentos efetivamente requerem essa intervenção cirúrgica.
Velório da parteira Raimunda Coelho (Foto: Rodrigo Pedroso/Agência Pública)
Porém, um em cada três nascimentos no mundo ainda é feito pelas parteiras, de acordo com o Fundo de População das Nações Unidas.
Os países que conjugaram melhor tradição e modernidade apresentam melhores resultados. Na Inglaterra, um quarto dos partos de baixo risco é feito em casa e supervisionado pelo sistema público de saúde. A Holanda tem uma política que dispensa anestesia e se apoia nas parteiras em vez de médicos. Contabiliza 65% dos partos como domiciliares e um índice de cesáreas abaixo dos 15%.
No Brasil, as parteiras, mesmo quando o sistema se esforça para incluí-las, são desconsideradas pelas equipes de saúde. Em sua tese de mestrado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz-AM), “O cuidado oferecido por parteiras tradicionais”, Ticiane Melo de Souza analisou estudos que tratavam dessa relação e encontrou profissionais que tendem a discriminar essas mulheres e os seus conhecimentos sobre o antes, durante e depois do parto porque rejeitam sua visão de mundo.
As parteiras da Umariaçu aprenderam o ofício sem manual. Arminda Gomes diz que a prática vem de gerações na família e que começou ajudando as grávidas em Cuchillo Cocha, na margem peruana do rio Amazonas.
Estreou no ofício quando deu à luz seu primeiro filho. O marido e os irmãos tinham ido pescar. Única familiar presente na aldeia naquele dia, a sogra a abandonou. Tinha 16 anos e estava sozinha. “Me apoiei, em pé, na rede, não sabia o que fazer e nem como fazer. Me senti muito sozinha. É um rito de passagem para a mulher, por isso a gente [as parteiras] tem que estar com ela para guiar”, afirma.
Já Nazaré Gralindo credita a uma tia os ensinamentos recebidos. Teve 11 filhos, todos em casa. “Sempre com as comadres [parteiras] me ajudando. No hospital tratam mal, puxam a criança. Usam só a força do médico e deixam a mulher em segundo plano.”
A ticuna Páscoa Farias participou do primeiro parto aos 13 anos, levada pela mãe. “Demora até se acostumar, há muito sangue, choro. Homem em geral não aguenta acompanhar tudo. Tem que ter paciência e carinho. Um parto demora 7, 9, 11 horas”, diz.
As parteiras ticunas em geral articulam pouco o português, vivem em casas modestas e passam o tempo acompanhando grávidas, que às vezes lhes dão comida como forma de agradecimento. Para o governo, estão oficialmente “desempregadas”.
Os laços de parentesco as aproximaram desse mundo, mas o diploma foi dado pela comunidade, que as procura quando há algum problema. Algumas falam em “dom” para ser parteira. Todas falam em tradição. O certo é que elas atuam em uma das profissões mais antigas da humanidade.
Lourdes Firmino, que foi despedir-se da companheira Raimunda, é a líder das parteiras do Umariaçu e as representa em encontros regionais sobre o tema.
Mãe de sete ticunas, ela nasceu em uma oca no povoado de Santa Rosa, no lado peruano da fronteira.
Quando tinha seis meses, sua mãe, Margarita Carneiro, suicidou-se tomando estricnina. O pai, Humberto Firmino, era alcoólatra e batia na mãe, que se destacava pela beleza. Em dias de fúria, a proibia de sair de casa temendo ser traído. Depois do suicídio da mulher, o pai de Lourdes conheceu outra indígena, do rio Javari – um braço do rio Amazonas –, e se mudou para lá.
A criação de Lourdes ficou a cargo da avó materna. “Ela também cuidou dos filhos das minhas tias e duas crianças órfãs. Era aceitou e criou todo mundo. Acabei puxando a ela”, diz a indígena, que se perde ao datar os acontecimentos da sua vida, mas declama com facilidade o nome das árvores e folhas que encontra pelo caminho na aldeia.
A família vivia naquela época como os antepassados: sem roupas de algodão para vestir ou panelas de metal para cozinhar ou casa de madeira para morar. Subsistiam do roçado e do que conseguiam pescar nos igarapés.
Lourdes, de cabelos negros ondulados, mais alta que o marido e de mandíbula sobressalente, destaca-se das outras parteiras ticunas, miúdas e de cabelos lisos. Seus traços traem a afirmação de que ela seria dessa etnia, apesar de desconversar sobre o tema. Nem a tia revela qual a sua etnia original.
Quando Lourdes tinha 13 anos, sua avó procurou um marido ticuna para ela. Conversou com uma conhecida, que indicou o neto como par compatível. Chamava-se João Coelho Araújo, tinha 17 anos e viria a ser o homem com quem até hoje ela divide a vida.
Nem Lourdes nem João sabiam do arranjo até serem apresentados um para o outro, em 1980. “Precisava de alguém para me proteger, ensinar a criar um lar, me sustentar. Minha avó já tinha feito o trabalho dela, agora era com ele”, diz.
João narra que havia ido pescar no dia em que a conheceu e que, quando regressou, as duas famílias estavam na sala de sua casa: explicaram-lhe que eles, os mais velhos, tinham feito um acordo e que a decisão estava tomada. “Eu rejeitava a ideia, porque era uma estranha. Mas antes a tradição era assim: a mãe falou, tem que obedecer. No começo ela só chorava e me xingava. Parece história de novela”, conta rindo.
De um dia para outro Lourdes passou a morar em outro país, com outro idioma e a ter marido e sogros. “Ela só sabia espanhol, demorou um ano até começar a falar com a gente”, lembra João.
Recém saída da infância, Lourdes foi introduzida ao mundo dos nascimentos como observadora, por uma tia avó parteira, para ir aprendendo. Quando tinha 19 anos, já mulher de João e vivendo em Umariaçu, uma cunhada entrou em trabalho de parto e, como que não havia outras parteiras mais experientes disponíveis, precisou intervir.
Ainda que as mulheres mais velhas da sua vida lhe houvessem ensinado técnicas, Lourdes lembra que naquele dia atuou comandada sobretudo pelo instinto. “A cabeça do bebê tinha saído, foi mais rodar para puxar o ombro. Na hora não sabia, mas depois fui percebendo que você poder estar ali ajudando em um momento de vida ou morte. Poder não deixar as outras sozinhas é o que me faz gostar desse trabalho”, diz.
As parteiras ticunas, da esquerda para a direita: Francisca, Arminda e Lourdes (Foto: Rodrigo Pedroso/Agência Pública)
Umariaçu hoje é uma extensão da área urbana da cidade de Tabatinga, que, fundada como posto militar para resguardar o lado brasileiro da fronteira ante o Peru e a Colômbia, se emancipou como município nos anos 1980.
A aldeia experimenta na atualidade o choque entre tradição e modernidade como em talvez nenhum outro lugar da Amazônia. Homologada como terra indígena em 1998, a área passa por intensa urbanização a reboque das transformações de Tabatinga, que duplicou de população neste século e agora é lar de 62 mil pessoas, segundo o IBGE.
O aeroporto marca o fim da cidade e o começo da aldeia, que, por ter se transformado em força eleitoral no município, ganhou ruas esburacadas com algo de cimento, eletricidade, casas de madeira e alvenaria. Com os benefícios sociais introduzidos pelos governos do PT nos anos 2000, chegaram a televisão de tela plana por satélite, os mercadinhos e os motores para as canoas.
No final do ano passado, a prefeitura asfaltou a estrada que liga a comunidade à avenida da Amizade, a principal de Tabatinga. Isso possibilitou a entrada do transporte público – esqueletos do que um dia foram Kombis e que andam na base da “gambiarra” – e assim a área pode ser considerada um bairro periférico de uma cidade periférica em um estado periférico do Brasil.
Naquele mesmo dia em que passamos pelo Hospital Militar, Lourdes foi à maternidade da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Tabatinga visitar uma gestante ticuna que deu à luz. Aproveitou para conhecer o novo coordenador do lugar.
O enfermeiro Sanderson Lima foi enviado de Manaus a Tabatinga para assumir a UPA no final do ano passado. Sua missão é mudar a imagem negativa do lugar após duas investigações do Ministério Público Federal por desvios de verbas públicas nos anos anteriores. Quatro de cada dez partos no pronto-socorro são de indígenas, segundo estimativa dele. Mas as mulheres do Umariaçu têm receio de como serão tratadas pela equipe médica – sobretudo porque acreditam que serão submetidas a uma cesariana.
“A mulher vem aqui, muitas vezes nunca foi para uma cidade, fala pouco o português, fica dois dias em uma sala toda branca, fechada. É como no filme do Capitão América, quando ele acorda pensando estar na época da Segunda Guerra Mundial, abre a porta e vê a Nova York atual. Deve ser assim que elas se sentem quando abrem a porta da maternidade”, descreve.
Para o coordenador Sanderson, a dificuldade de comunicação e a visão dos indígenas sobre a saúde e o parto são inconciliáveis com o serviço do posto. Ele advoga que deveriam ser construídos centros cirúrgicos dentro das aldeias: “Seria melhor para todos”, diz. “Os órgãos indígenas [do governo federal] jogam para a gente uma responsabilidade que é deles.”
A maternidade da UPA recebe pacientes de aldeias a cinco, seis horas de barco, gestantes de Peru e Colômbia, além das tabatinguenses. O obstetra Adolfo Araújo diz que a maioria das gestantes são adolescentes pobres e que as não indígenas preferem a cesárea, pensando que vão sofrer menos. Enquanto um parto normal pode durar 12 horas, Adolfo realiza uma cesárea em 30 minutos. Naquele plantão – que durou duas semanas – fez 32 procedimentos cirúrgicos. Três bebês morreram.
Mesmo quando sabem que o parto será complicado, as ticunas preferem confiar nas indígenas mais velhas. Cada vez que a bolsa de uma grávida estoura, um parente vai até a casa de uma parteira para que ela guie o nascimento.
Dependendo do estado da mãe e do bebê, outras vão sendo acionadas, muitas vezes em ordem de idade.
Dona Francisca Tomé, que se tornou a parteira mais antiga da comunidade com a morte de Raimunda, aprendeu o ofício muito antes de saber o que era um hospital. Nascida em um braço do lado brasileiro do rio Amazonas, foi uma das primeiras indígenas a ocupar, no começo dos anos 1960, o território que viria a se chamar Umariaçu. Casou-se aos 15 anos e teve 12 filhos.
Francisca Tomé visita Luciete do Carmo, 18 anos, e o bebê Alderson Luan, que ajudara a parir dois meses antes (Foto: Rodrigo Pedroso/Agência Pública)
No primeiro parto que assistiu, a gestante e o bebê quase morreram. Ela ainda estava entrando na adolescência, mas conservou essa imagem para sempre.
Se lhe perguntam o que deve ser feito para que o nenê fique em posição para nascer ou como agir quando o cordão umbilical enrola no pescoço, Francisca, arranhando o português, diz: “Vai sentindo na mão como está o bebê dentro da barriga, ajeitando ele com massagens, vendo onde está o cordão. É assim que faz”, afirma. Cada situação é avaliada no momento, e a resposta vem de vivências acumuladas em mais de cinco décadas no ofício. “Meu pensamento é só salvar gente. Sempre assim”, diz.
Na visão prática dessas senhoras, o que é indispensável para que as coisas corram bem são mais qualidades humanas como atenção e paciência.
Pode ser por isso que Raimunda é segura, mesmo quando a morte aparece. “Eu fico triste só, porque tento fazer tudo o que posso. Às vezes você não sabe o porquê. Ninguém sabe o que acontece quando a gente morre. Não é bom nem ruim”, reflete, aos seus 70 anos, tocando o crucifixo de madeira que leva no peito.
Um estudo da Fundação Perseu Abramo constatou que em um em cada quatro partos no Brasil ocorre algum tipo de violência obstétrica, seja física ou verbal. O uso da ocitocina, o hormônio do amor, a escolha de colocar a mulher deitada na cama, sem poder caminhar, o corte chamado episiotomia e o uso do ultrassom são técnicas modernas que aumentaram o poder do obstetra sobre quando e como o trabalho será feito, da resposta da mãe e do bebê, os protagonistas da situação. É daí que vem o termo “violência obstétrica” – um termo que chegou a ser banido pelo Ministério da Saúde em maio deste ano.
O crescimento paulatino de cesarianas no país a partir dos anos 1970 levou o Ministério da Saúde a estimular o parto humanizado no SUS e, na esteira dessa tentativa, redescobriu-se a função da parteira.
Mas o governo federal ignora quantas delas existem no país e também quantos cidadãos vieram ao mundo por suas mãos. Se a gestante pare fora do hospital, o Sistema de Informações de Nascidos Vivos registra o parto como domiciliar, sem discriminação dos responsáveis. O mérito fica para a equipe de saúde responsável pela área, mesmo que um parto normal, que a parteira hoje faz de graça, custe R$ 443 para o SUS quando feito dentro do sistema.
A figura da parteira existe em todo o país, mas é nas regiões empobrecidas que elas se organizam mais em associações, como em Pernambuco, no Maranhão e, mais recentemente, no Amazonas, lar de um em cada cinco indígenas brasileiros.
A secretaria estadual de Saúde amazonense contratou há dois anos a Fiocruz para fazer o cadastro dessas mulheres e fomentar oficinas de capacitação, chamadas de encontros de troca de saberes.
O pesquisador gaúcho Julio Schweickardt trabalha para decifrar como tirar o ofício do limbo burocrático, uma vez que as parteiras estão sozinhas ante a legislação. Como são analfabetas, não fabricam dados; como não há dados, o Estado não dimensiona sua importância; como não há forma de quantificar sua importância, não há argumentos para colocá-las como agentes de saúde.
Schweickardt afirma que o cadastro está trazendo uma “valorização moral”.
“A situação hoje está indefinida. Há ações locais de valorização, mas a nível nacional o tema está engessado. Reconhecê-las como agentes de saúde comunitário requer mudar a legislação nacional básica e remunerá-las. E há muita resistência a isso”, diz ele.
O que existe atualmente são estimativas da realidade. O Ministério da Saúde acredita que devam existir cerca de 60 mil parteiras no Brasil, sendo que 40 mil delas estão na região Norte. “O saber tem que receber o selo de uma profissão para ser incorporado pelo Estado. Até para agente de saúde o requisito mínimo é o ensino médio. Transformar-se em parteira ocorre fora da sala de aula. É uma função reconhecida pela comunidade que em geral tem a ideia de dom por trás. O nó está aí”, diz Schweickardt.
“Dona Lourdes, chegaram botas e tesouras para vocês. Vamos entregá-las no próximo mês, em uma cerimônia, tá bom?”, diz uma enfermeira do DSEI de Umariaçu. Fazia duas semanas do velório, e Lourdes e Francisca estavam no posto da aldeia para apresentar a filha de Raimunda como substituta da falecida no cadastro na semana seguinte ao velório. A grande notícia, no entanto, foi o calçado novo, já que as parteiras têm que andar quilômetros no escuro e na chuva para chegar às casas das parturientes.
O problema, diz Lourdes, não é andar tanto, e sim os resfriados e as dores nos pés resultantes dos atendimentos e partos. Mas, quando o marido, João, a pressiona para largar o ofício de parteira, com o argumento de que não gera renda para a casa, ela responde que ninguém deve perder pais ou filhos nessa vida, e que a mulher precisa de apoio na situação-limite que é dar à luz.
Para Lourdes, a cesariana rompe com a ideia de que o nascimento, um momento radical, tem a ver com paciência e com o contato com nossa animalidade. É isso o que ela recobra com seu trabalho. “A mulher fica deitada esperando alguém dizer o que e como tem que ser feito. O homem, que acompanha, muitas vezes não consegue nem assistir ao parto. O médico quer ir embora porque tem mais trabalho para fazer.”
Parteira, no latim, era a cum matre, a mãe que acompanha o transe da maternidade. No francês, é a sage-femme, e no alemão, a Wisefrau, as mulheres sábias.
Em ticuna, é a iraaküteeruu, pessoa para dar à luz.
Naquela madrugada, a iraaküteeruu era Vilmara. A mãe dela correu para a casa de Lourdes, que acordou no meio da madrugada para atendê-la.
Lourdes levou casca de huacapuruna para a dor, que funciona como anestésico, erva-de-santa-maria para colocar na cabeça do bebê quando nascesse e folha de bananeira para forrar o chão.
No seu quarto de tijolos nus, sem janela ou móveis, Vilmara, sentada no chão, era segurada pela mãe enquanto tinha contrações e recebia orientações da parteira. O parto correu bem e a criança, ainda sem nome, nasceu saudável.
Lourdes observa Vilmara com seu primeiro bebê (Foto: Rodrigo Pedroso/Agência Pública)
Parteira Lourdes mostrando bebê, ainda sem nome, que acabara de ajudar a parir (Foto: Rodrigo Pedroso/Agência Pública)
Lourdes voltou para casa para descansar. Pouco depois, avisaram da morte da amiga. Antes de dirigir-se ao velório, retornou para ver Vilmara e dar mais instruções. A mãe estreante estava deitada no chão forrado com uma manta rosa e, cercada por um mosquiteiro, tentava dar de mamar, mas o leite não queria sair. O filho chorava e ela o embalava sem muito jeito, o que aumentava o berreiro. A parteira receitou mais um chá e saiu, para velar Raimunda.
No caminho, Lourdes confessou ao repórter que estava cansada do ofício, assim como outras parteiras. Que dona Francisca, a mais velha, havia-lhe confidenciado que deixaria o ofício até o final do ano. Que ajuda essas mulheres porque elas estão sozinhas e que logo a morte a levará, assim como fez com Raimunda. “Eu estou preparada. Um dia vão me procurar e cadê eu? Já não estarei.”
Parir, não morrer, é a prova de dor dessa vida, segundo ela. “Só quem pariu é que sabe o que é: médico não sabe, marido não sabe. A gente nasce é da força da mãe.”
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Para as indígenas da Amazônia, parir é um ato comunitário - Instituto Humanitas Unisinos - IHU