26 Setembro 2012
"Realmente é triste saber que muitas de nós vivem este momento sob uma atmosfera de medo e apreensão, aterrorizadas por suas próprias crenças ou por uma equipe médica insensível às sutilizas psicológicas e culturais que envolvem as famílias. Os relatos que estamos tendo acesso são de equipes que no mínimo tentam enquadrar um evento fisiológico, único por excelência e por isso também psicológico e cultural, em uma lógica mecânica “do quanto mais rápido melhor”. Acelerando o processo do parto com o uso de hormônios e cortes na vagina, ou de cesarianas feitas antes da mãe entrar em trabalho de parto sem informar estas famílias dos possíveis riscos desse tipo de procedimentos. Muitas equipes abusam do seu lugar de saber profissional e da fragilidade das famílias, para comandar os processos de acordo com seus desejos e interesses nem sempre muito nobres", relata Carolina Duarte, psicóloga e educadora peri-natal em artigo que nos foi enviado e publicamos a seguir.
Eis o artigo.
Durante os últimos meses muitas mulheres brasileiras foram às ruas protestar pelo direito de escolher a maneira como queriam parir seus filhos. Mais especificamente estas mulheres que foram às ruas protestavam pelo direito de parir seus filhos de forma respeitosa e cuidadosa, denunciando aos desavisados do Brasil a violência a que são expostas a grande maioria das mulheres que dão à luz em hospitais, tanto particulares como públicos. Violência de tal forma instituída e legitimada pela área médica e pelo senso comum que muitos não se dão conta e aceitam seu destino nutrindo algum tipo de agradecimento por não ter acontecido algo pior.
O evento do parto/nascimento (parto vivido pela mãe, nascimento vivido pelo bebê) vem sendo visto ao longo dos séculos de muitas maneiras em diferentes culturas, mas em nenhuma passa despercebido. Em nossa cultura, a gestação e o parto/nascimento são vistos como eventos exclusivamente médicos. Parte-se do princípio de que tudo deve ser controlado, medido, estimulado e corrigido, para que nada saia errado. É como se o certo fosse algo dar errado e colocamos então nosso corpo, nossa vida, nossa história, nossa família, sob a responsabilidade de especialistas de todas as ordens. Porém uma mulher grávida e um bebê em formação, na esmagadora maioria das vezes, não estão doentes, pelo contrário, estão no auge da saúde física. Gestação não é, em si, uma doença. Gestação é saúde. Da mesma forma, parto não é sofrimento, parto é milagre, é início. Uma pessoa que não existia, passa a existir. Dá-se o encontro. Trata-se do belo momento da chegada de um novo ser, mesmo quando a gestação é de risco e as intervenções médicas se fazem necessárias.
Realmente é triste saber que muitas de nós vivem este momento sob uma atmosfera de medo e apreensão, aterrorizadas por suas próprias crenças ou por uma equipe médica insensível às sutilizas psicológicas e culturais que envolvem as famílias. Os relatos que estamos tendo acesso são de equipes que no mínimo tentam enquadrar um evento fisiológico, único por excelência e por isso também psicológico e cultural, em uma lógica mecânica “do quanto mais rápido melhor”. Acelerando o processo do parto com o uso de hormônios e cortes na vagina, ou de cesarianas feitas antes da mãe entrar em trabalho de parto sem informar estas famílias dos possíveis riscos desse tipo de procedimentos. Muitas equipes abusam do seu lugar de saber profissional e da fragilidade das famílias, para comandar os processos de acordo com seus desejos e interesses nem sempre muito nobres. No máximo, os relatos nos contam de praticas explícitas de violência psicológica, física ou de negligência (também considerada uma violência): mulheres amarradas, gritando de dor e terror, sem informação, sozinhas, nuas em salas geladas, nenhuma privacidade, homens desconhecidos subindo em cima de suas barrigas para empurrar o bebê para fora. São cenas de tortura que para algumas perpetuam a sensação íntima de menos valia e incompetência, dificultando assim o início da relação mãe-bebê e causando muitas vezes danos irreversíveis. Porém, em outras mulheres vivências violentas durante a gestação e o parto/nascimento provocam revolta. É dessas mulheres que quero falar.
Apesar de eu ter denominado o sentimento destas mulheres de revolta, na prática o que vem acontecendo é um enorme movimento sutil e integrado em direção à vivência de uma cultura de paz. Este movimento de mulheres em rede deflagra uma profunda revolução interna acontecendo em diferentes contextos sociais e econômicos que acaba por questionar valores sociais ligados ao Feminismo e ao feminino. Leva a um aprofundamento vivencial do atual paradigma ecológico que começa a imperar no senso comum transformado crenças e hábitos em todo o mundo.
O Feminismo, movimento de mulheres que desde o século XIX vem questionando nossa posição social, nos colocou em situação de igualdade perante os homens. Não vou entrar aqui no mérito das mulheres ainda ganharem menos que homens mesmo ocupando cargos equivalentes ou do preconceito que, sem dúvida, ainda existe. De qualquer forma, de lá para cá conquistamos muitos direitos. Hoje podemos votar, dirigir, trabalhar, usar calça jeans. Podemos transar antes do casamento, e podemos evitar gestações. Podemos até presidir empresas e governar países. Quem diria! Porém, parece que aos poucos estamos nos dando conta dos direitos que, como mulheres, perdemos. Perdemos o direito de sermos frágeis, perdemos o direito de sermos lentas, perdemos o direito de ficarmos em casa por conta de uma menstruação mais forte respeitando nossos ciclos e oscilações emocionais. Muitas de nós se dão ao direito de perder o direito de menstruar! Perdemos o direito de cuidar com calma e dedicação de nossos filhos. E apesar de podermos escolher não engravidar, continuamos não sendo donas de nossos processos corporais, pois não podemos escolher como e onde parir. Com o feminismo não só ganhamos, mas também perdemos. Perdemos porque ao querermos e lutarmos pelos mesmos direitos dos homens, acabamos desvalorizando o que é da ordem do feminino. No fundo, ao desqualificarmos nossos valores mais essenciais, praticamos o mais cruel dos preconceitos. Lutamos contra nós mesmas exigindo que fôssemos o que não somos. Veja bem, não estou dizendo que somos intelectualmente inferiores aos homens ou que não podemos ocupar o lugar social que ocupamos hoje. Também não estou dizendo que sou contra o Feminismo. Sou muito grata às feministas, mas sinto que precisamos continuar avançando. Afirmo que devemos ter os mesmos direitos que os homens, porém jamais afirmaria que somos iguais aos homens. Somos diferentes.
Eu sou uma mulher e sou uma terapeuta. Durante minha experiência profissional venho atendendo muitas mulheres, pois trabalho com gestantes e grupo de mães e famílias com crianças. Perdi a conta das vezes que recebi em meu consultório mulheres muito bem sucedidas, lindas, bem informadas, com filhos ou sem filhos... Mulheres profundamente infelizes por não verem sentido na vida que levam. Claro, já recebi muitos homens assim também, na maioria das vezes são os mais sensíveis que se sentem perdidos neste mundo movido por valores masculino materialistas. Vivemos em uma sociedade movida pela ética da competição e da dominação, valores em essência masculinos, Patriarcais. O Feminismo que prega a igualdade entre homens e mulheres levando-nos a idealizar a sociedade Matriarcal, porém neste caso a mulher assumiria o papel dominador que hoje é ocupado pelos homens, mas os valores essenciais das interações humanas não seriam transformados. Continuaríamos a mesma lógica. Em contra partida, Humberto Maturana (2004) cunhou o termo Sociedade Matrística para designar sociedades de agricultores e coletores que viviam na Europa antes de nossa era patriarcal, onde homens e mulheres interagiam sob uma ética de cooperação não hierárquica, cultivando valores vinculados a emoções como participação, inclusão, colaboração, compreensão, acordo, respeito e cuidado mútuos.
O movimento da humanização do parto/nascimento que fez sua primeira ação em 1985, ainda é fundamentalmente luta de classes profissionais. Médicos e Enfermeiras brigando pelo mercado do parto. Mas o movimento das mulheres, usuárias dos serviços de saúde, unidas em rede pela internet, me parece o terreno fértil para que o emocionar matrístico frutifique.
Farei um pequeno resumo informal dos últimos acontecimentos. Os Conselhos de Medicina, em especial o do Rio de Janeiro, CREMERJ, vem tentando enfraquecer o movimento chamado Humanização do Parto e Nascimento. No início eles investiram contra as Casas de Parto (tidas como símbolo do parto não medicalizado) e tentaram fecha-las. De fato acabamos perdendo a Casa de Parto de Juiz de Fora, mas conseguimos manter em funcionamento as do Rio de Janeiro e Sapopemba, São Paulo. Enquanto isso, ou talvez por conta disso, as informações sobre os processos fisiológicos do parto e as denúncias de abusos médicos foram correndo. Nos articulamos, criamos ONGs, cursos de formação profissional. Nos reunimos em congressos... O movimento pelo Parto Domiciliar foi crescendo, bem como os partos fisiológicos em hospitais de todo o Brasil. O número de partos domiciliares no Rio de Janeiro cresceu 400% nos últimos dez anos. Continuam sendo em número irrisório se comparados ao número de cesarianas eletivas, mas a estatística assusta e passou a incomodar. Em 2011, Marcos Dias, obstetra carioca, consultor do Ministério da Saúde durante anos, foi processado pelo CREMERJ por se declarar a favor das Casas de Parto. No início deste ano, Jorge Kuhn, obstetra paulista, foi processado pela mesma entidade por se declarar a favor de partos domiciliares. Entendam, eles somente se declararam a favor e apontaram para evidencias científicas que endossam suas opiniões, porém fizeram isto publicamente. Após a investida contra Jorge Kuhn o movimento de mulheres ganhou uma força nova de dimensão nacional. Mulheres desconhecidas se pronunciaram, contaram suas histórias, colheram assinaturas, foram às ruas na Marcha pelo Parto em Casa e quando estavam acalmando o CREMERJ fez outra jogada. Baixou uma resolução que proibia aos médicos a realização de partos domiciliares e proibia a atuação de parteiras e doulas em ambientes hospitalares. Aparentemente isto deveria cortar o “mal da humanização do parto” pela raiz, mas ao contrário, por afetar a todas as categorias envolvidas com este ideal, provocou a união com um novo lema amplo e inclusivo: o Direito de Escolha. Esta discussão alcança outra amplitude quando sai da esfera profissional entra no senso comum com a categoria de Direitos Humanos, podendo assim, instaurar um novo momento de cooperação entre as classes profissionais e não profissionais pelo bem das gestantes e das crianças, pelo bem das famílias e da sociedade como um todo.
Crianças que são recebidas com cuidado e famílias que são respeitadas em seus momentos especiais amam mais. Criam uma disponibilidade maior para a cooperação, para a inclusão e o acolhimento. Características que nos remetem aquela sociedade descrita por Maturana, formada por pessoas que não encaravam o mundo sentindo que precisavam se defender e por que isso não atacavam. Estas ideias podem parecer utópicas, mas basta observar crianças gestadas, nascidas e criadas sob a ética do cuidado para notar que algo de diferente acontece. Por não serem existencialmente feridas antes mesmo de terem seus corpos formados apresentam uma disponibilidade amorosa para o outro e para o mundo. Então, esta rede de mulheres e profissionais que semeia hoje a busca pelo Direito de Escolha no fundo representa o início de uma revolução silenciosa e pacífica que, ao transformar a relação mais básica da estrutura social, a relação mãe-bebê, pode chegar ao todo no espaço de poucas gerações. Assim esperamos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Cesariana, parto normal, parto natural: Polêmica e oportunidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU