04 Junho 2019
"Como foi gestado, por quem e quais os argumentos que comandaram o que se propõe como novo marco regulatório dos agrotóxicos no Brasil", escreve Natanael Alencar, mestre em Sociologia/UFPB.
Recentemente, a questão do agrotóxico tem tomado centralidade nas preocupações da arena pública: apenas este ano, 197 novas permissões de circulação foram autorizadas por decreto pelo governo federal. Ao todo, são 2263 agrotóxicos disponíveis no país. A liberação radical de licenças e de novas substâncias é uma questão profundamente sociológica se pensarmos na textura social da alimentação. Não é uma questão individual apenas (nossa dieta ou o que escolhemos pôr no prato), pois toda comida adquire atmosfera particular seja em situações de lazer, celebrações e mesmo rituais (do casamento ao velório). Devemos ter em mente também as instituições envolvidas tanto no processo de produção de alimentos quanto nas instâncias políticas que regulam as substâncias tóxicas que irão interagir com aquilo que comemos.
É a partir de um marco regulatório que os agrotóxicos são doutrinados quanto ao seu registro, pesquisa, uso, descarte, embalagens, classificação toxicológica, fiscalização, dentre outros aspectos que devem ser atendidos para que eles possam existir no território nacional, algo mandatório na medida em que se trata de substâncias intrínseca ou potencialmente danosas não apenas aos alvos biológicos para os quais são desenvolvidas.
O marco vigente gira em torno da Lei 7.802/89, A Lei dos Agrotóxicos. Ela possui, por exemplo, dispositivos segundo o qual o registro deve passar por avaliações de órgãos da agricultura, saúde e meio ambiente que comprovem eficiência agronômica e a obediência a parâmetros estabelecidos de toxicidade para humanos e de ecotoxicidade. Prevê ainda série de dispositivos que proíbem o registro de certas substâncias, tomadas como intrinsecamente perigosas, haja visto que possam causar câncer, nascimento de bebês com má formação e mutações genéticas patológicas, além de procedimentos que podem causar cancelamento e impugnação de registros.
Ano passado me aproximei sociologicamente da questão com o objetivo de investigar a posição dos parlamentares da Comissão Especial (CE) que discutia o PL 6299/2002, apelidado pelos seus opositores de "Pacote do Veneno", no biênio 2016-2018. Após meses de pesquisa, divulgo alguns resultados, obtidos a partir de análise de uma série extensa de documentos como registros taquigráficos de audiências públicas, pareceres, notas técnicas, relatórios e votos.
Proposto em 2002, o Projeto de Lei 6299, de autoria do senador Blairo Maggi (PP/MG), intentava alterações na lei 7.802/89, especificamente sobre quesitos relacionados a registro de princípios ativos de composição similares e aumento das competências da União sobre a destruição de embalagens de agrotóxicos. Ao longo do tempo, projetos de leis afins, que tematizavam de alguma forma o campo dos agrotóxicos, foram sendo anexados, passando a tramitar em conjunto, procedimento definido como apensação. Em 2018, quando posto em votação em uma CE, tramitavam juntos 30 projetos de lei. Pela robusta variedade de alterações trata-se, praticamente, de um novo marco regulatório.
A CE era composta por 52 parlamentares, entre titulares e suplentes e havia uma nítida, mas não surpreendente, hegemonia da Frente Parlamentar Mista Agropecuária (FPA), coloquialmente conhecida por bancada ruralista: 21, dos 28 titulares e 11 dos 24 suplentes eram membro da FPA. A atual ministra da Agricultura, Tereza Cristina (DEM/MS), foi presidente daquele corpo que iria desenhar os contornos do novo ordenamento legal - e naquele momento era também coordenadora da FPA. Os argumentos rotacionaram ao redor de eixos principais como modernização da lei 7.802/89; desburocratização do registro de novos agrotóxicos;aumentar a eficiência no combate às pragas e maior investimento na defesa agrícola; mudanças nas competências registrantes e fiscalizadoras e em modelos de avaliação; aumento da disponibilidade de agrotóxicos no mercado interno; até a mudança semântica de “agrotóxico” para “pesticida”. De fato, o documento que representa o resultado do trabalho dessa comissão, um substitutivo à lei 7802/89, conseguiu manter muitos desses objetivos através de uma centralidade do órgão federal da agricultura nos trâmites de registro e liberação, diminuição do prazo para o registro e criação dos Registros Temporários, alteração de exigências para liberação (substituição de análise de perigo, por análise de risco, por exemplo), guiadas por harmonização com órgãos internacionais como a OCDE e a FAO.
Foi um longo e complexo processo de tomada de decisão que envolveu cientistas, técnicos, parlamentares e entidades de diferentes alçadas. Houve uma expressiva resistência ao Projeto de Lei que, embora embasada a partir de diferentes campos (jurídico, saúde, meio ambiente, trabalho) por diferentes instituições, foi relativamente abafada, não encontravam solo fértil no interior das discussões da CE. Por exemplo, enquanto a presidenta da CE, Tereza Cristina (DEM/MS), afirmava que se tratava de um projeto de lei de pura tecnicalidade, sem lugar para “discursos ideológicos”, Marcelo Firpo de Souza Porto, representando a Articulação Nacional de Agroecologia — ANA - interpretava que a “crise socioambiental [...] é também uma crise civilizatória na qual todo o planeta está imerso” ao passo que caracterizava a agricultura monocultura como "quimiodependente".
Nesse sentido, elementos relevantes são notados não pela presença, mas pela ausência: o relatório final da Comissão Especial, de autoria do Deputado Luiz Nishimori (PR/PR), não fala em nenhum parágrafo, seja técnica ou retoricamente, em alimentar melhor a população ou dirimir a fome crônica. A “saúde do mercado” e a preocupação com ótimas condições comerciais e alto rendimento do produtor, pelo contrário, são professados pelo relator, em audiências, como fatores que o inspiraram a elaborar um novo marco legal para os agrotóxicos.
O PL 6299/02 flexibiliza riscos, prioriza alta eficiência e produtividade ao invés de parâmetros rígidos que salvaguardem a saúde da população e do meio ambiente, incorporando um determinismo tecnológico (mais agrotóxico significando mais desenvolvimento). Para maior parcela da CE, a agricultura nos trópicos é intrinsecamente problemática, pois sem agrotóxicos ela é basicamente inviável. A filósofa Isabelle Stengers fala de uma modalidade de proposição política que chama de “alternativas infernais”, com um poder de convencimento perverso. Um exemplo é capaz de deixar o sentido da expressão claro: quando a Senadora Katia Abreu (PDT/TO) defendia, em 2014, o uso intensivo de agrotóxicos ela colocava de um lado a possibilidade de alimentar a população e do outro, a fome. Ou seja: ou a comida com veneno ou a morte. Algo semelhante aconteceu para que a reforma trabalhista fosse aprovada: ou ocupações amparadas por menos direitos ou o desemprego total. Stengers questiona “quem se beneficia dessa inovação cujos riscos nos pedem que aceitemos?”.
Embora o PL 6299/02 ainda não tenha sido aprovado e efetivado, apenas no ano de 2019 alcançou-se um recorde nefasto, com o que retomamos a abertura do texto: a liberação sem precedente de novos pesticidas ou de velhos conhecidos com licença para novas lavouras, muitos deles proibidos nos Estados Unidos e na União Europeia - envenenar é definitivamente lucrativo. Em alarmante relatório elaborado pela Public Eye, uma organização não governamental suíça, apenas o lucro da companhia Syngenta, líder na venda de agrotóxicos no Brasil, chegou a 1,6 bilhões de dólares - o que representa 17% de todo agrotóxico vendido pela empresa naquele ano. Cabe questionar qual o poder transcendente da fronteira territorial de uma nação em diluir a toxidade dessas substâncias - por acaso tornam-se menos nocivas aqui do que nestes outros lugares?
As formas de regulação como um todo são fruto de um ato político – e o paradoxo aqui é de uma regulamentação que desregula, afrouxa. Menos regulação associa-se a um enfraquecimento institucional e à vulnerabilidade perante o mercado. O risco de epidemias e doenças crônicas escala, sobretudo nos países de economia precária, onde é estratégico para o mercado de agrotóxicos tirar vantagens de regulações fracas para aumentar vendas, embora exponha diariamente os cidadãos desses países a coquetéis de veneno, por diferentes vias, tenham eles satisfatoriamente o que comer ou não.
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Política envenena? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU