Por: Ricardo Machado | 08 Novembro 2018
Há dez anos a humanidade experimentava, em escala global, aquela que seria uma de suas crises financeiras mais duradouras. Atualmente, uma década após, nos vemos mergulhados dos pés à cabeça em suas entranhas, como que a viver a crise e não na crise. Nesta mesma data, em 2008, Isabelle Stangers escrevia as últimas linhas de No tempo das Catástrofes (2015). É no rastro de sua memória provocativa que retomamos a leitura de sua obra como quem dá vida às palavras, como quem faz da catástrofe da crença absolutista na racionalidade humana um réquiem sobre si próprio.
Reprodução capa do livro
O tempo em que este texto é escrito (em sua dobra semântica: como período histórico e qualidade climática) tem sua melhor definição nas palavras finais do poema Autonomia de Wisława Szymborska: “O abismo não nos divide / O abismo nos circunda”. A crise como forma de vida assume no Brasil a institucionalidade do primeiro governo de extrema direita a vencer eleições presidenciais e a tomar posse a partir de 1º janeiro de 2019. A obra, no entanto, não trata exatamente de política nos termos de uma Filosofia Política, mas de política nos termos de uma Filosofia da Ciência, cátedra onde Stengers dá aulas desde 1989.
O capitalismo convertido em sua versão “cognitiva” tem menos a ver, como explica a pesquisadora, com a exploração da força de trabalho e mais com o processo de naturalização da apropriação do que é Comum. Os saberes, as sementes, as práticas comuns passam a operar sob o signo da patente e da propriedade. Os impactos gerados por essas transformações levam à extinção de modos de vida. “(...) o que foi destruído com os Commons não foram apenas meios de vida de camponeses pobres, mas também uma inteligência coletiva concreta ligada a esse comum do qual todos dependiam” (STENGERS, 2015, p. 79).
Disso decorre que um dos processos mais importantes não é o de eliminar os tensionamentos, as posições teóricas e práticas divergentes, mas de torna-las claras, explicitá-las. Não se pode jogar o bebê com a água do parto fora. Se a Ciência tende a ser moldada aos interesses do Empresário, aqueles com E maiúsculo para quem o Estado lhe concede o direito de fazer exigências, a prática científica é sua forma crítica. Devemos as compreender, como propõe Stengers como aquelas “que nos ensinam algo novo sobre o mundo e sobre as coisas” (2015, p. 85).
Quando os especialistas nos interpelam com palavras de ordem no mais das vezes moralizantes, sobretudo aquelas de que devemos ouvi-los, afinal são especialistas, é quando devemos colocar os dois pés atrás. É isso que produz a fantasia da racionalidade. É o que destrói o jardim da imaginação política.
Isso se dá pela destruição das causas comuns, que causam impactos absolutamente decisivos na dificuldade que temos, hoje, de dar respostas não bárbaras à intrusão de Gaia. É preciso correr com todas as forças das respostas que sugerem uma postura moralizante frente o Antropoceno. É da multiplicidade de perspectivas, das tensões e da construção de engajamentos que as práticas científicas engendram que surge a possibilidade de se produzir algo novo.
A obsessão pela igualdade se converte em algo negativo quando imobiliza a possibilidade de se construir diferenças no interior dos processos sociais. Em outros termos, pode-se dizer que a igualdade é uma espécie pharmakon, “que pode se tornar veneno quando associada não a uma produção, mas um imperativo, e a um imperativo que sempre incumbe porta-vozes privilegiados” (STENGERS, 2015, P. 133).
Implacável, a intrusão de Gaia coloca em xeque as respostas históricas que inventamos, do socialismo ao capitalismo, tais respostas às conformações da vida no planeta são não somente precárias, mas indícios de que nossas categorias estão todas em suspeição. Seja porque acreditamos demasiadamente nas respostas da Ciência, seja porque confiamos demasiadamente no Estado, seja porque nos deixamos levar pelo canto da sereia do Mercado, cuja promessa de apaziguamento social depende que fiquemos todos em silêncio.
Fonte: Wikimedia Commons
Isabelle Stengers, nascida em 1949, é formada em química e professora de Filosofia da Ciência na Universidade Livre de Bruxelas. Em 1993 foi laureada com o Prêmio de Filosofia da Academia Francesa. É autora de livros sobre Teoria do Caos, em parceria com Ilya Prigogine, o físico-químico russo-belga e Prêmio Nobel, conhecido por seu trabalho com estruturas dissipativas, sistemas complexos e irreversibilidade. O primeiro deles foi pulicado em 1979, chama-se La nouvelle aliance. Desde 1989 é professora na universidade onde se formou, em Bruxelas, na Bélgica. Depois publicou mais de uma dezena de outros livros, entre eles A invenção das ciências modernas e, na segunda metade da década de 1990, a coleção Cosmopolitiques, que na versão francesa está dividida em sete volumes: La guerre des sciences; Linvention de la mecanique: Pouvoir et raison; Thermodynamique: La realite physique em crise; Mecanique quantique: La fin du revê; Au nom de la fleche du temps; La vie et lartifice: Visages de lemergence e Pour em finir avec la tolerance. A versão em inglês foi dividida em dois volumes. Esse trabalho nunca foi traduzido para o português.
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Considerações de uma filósofa da ciência sobre o fim do mundo. No tempo das catástrofes de Isabelle Stengers - Instituto Humanitas Unisinos - IHU