22 Fevereiro 2019
Conversas da poetisa mexicana Lina Zerón com Ernesto Cardenal sobre Deus, o castigo do Papa João Paulo II, o ditador Daniel Ortega, o Subcomandante Marcos e a poesia realista e mística.
A reportagem é de Arnulfo Aguero, publicada por La Prensa, 17-02-2019. A tradução é de André Langer.
Um mês antes de o poeta Ernesto Cardenal ser internado no Hospital Vivian Pellas havia celebrado com os amigos seu 94º aniversário, apresentado seu livro Filhos das Estrelas (2019) e anunciado outra possível coletânea de poemas. Muitos amigos do poeta estiveram presentes, entre eles a poetisa mexicana Lina Zerón.
Embora a infecção tenha diminuído e se esteja melhor, avalia-se uma delicada cirurgia na vesícula, confirmou Luz Marina Acosta, assistente do poeta, Prêmio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana (2012) e candidato ao Prêmio Nobel de Literatura em quatro ocasiões.
Ela também revelou que numa próxima coletiva de imprensa será feito o anúncio sobre a “carta” que o Papa Francisco enviou a ele e que reconcilia Cardenal com a Igreja Católica.
Na sexta-feira passada (15 de fevereiro), o poeta recebeu a visita, no hospital, do bispo auxiliar da Arquidiocese de Manágua, Silvio Baez, que pediu a sua bênção na qualidade de sacerdote trapista. Cardenal está 14 dias hospitalizado.
O núncio apostólico na Nicarágua, Stanislaw Waldemar Sommertag, por sua vez, ofereceu-se para concelebrar com ele sua primeira missa em 35 anos.
O poeta foi suspenso “a divinis” pelo Papa João Paulo II, em 1984, por propagar a Teologia da Libertação e apoiar o governo sandinista.
(Foto: arquivo La Prensa)
Neste momento da dramática vida de Cardenal, a poetisa mexicana Lina Zerón nos revela parte de suas conversas sobre a vida e a obra do poeta que considerou seu “amigo” nos últimos quase 20 anos. Conversas que pensa publicar junto com notas de outros escritores.
De um desses encontros, Zerón revela a visão de Cardenal e suas crenças sobre Deus.
– Ernesto, você realmente acredita em Deus?
– Deus dorme comigo na rede. Essa foi a surpreendente resposta que o poeta deu à mexicana.
Em seguida, explicou-lhe que todos os dias acordava às cinco da manhã para rezar pelo povo e dirigir suas preces a Deus.
“Ele tem a ideia de que um mundo melhor é possível, e que Deus é um conceito e que é semelhante ao que Jesus Cristo pregou, porque ele acredita Nele. E que o Reino dos Céus é semelhante a uma revolução”, enfatiza a poetisa. Essas são algumas ideias que permaneceram na memória em suas conversas com o poeta.
Zerón também recordou a bronca que o poeta recebeu de João Paulo II em 1983 durante a sua visita à Nicarágua.
“Isso me doeu... Ernesto lutava por coisas justas e reais. Ele sempre acreditou que o marxismo existe, mas que não se realizou, e que é como o cristianismo, que nunca foi realizado como deveria ser”, reflete a poetisa que espera que o Papa Francisco lhe entregue a carta que reabilitará o poeta, como fez com Miguel D'Escoto, em anos passados.
“Eles não lutaram para que (Daniel) Ortega subisse no pedestal do reino da presidência e lhes desse as costas e se tornasse um ditador”, observa Zerón que, em 20 de janeiro passado, esteve em Manágua no dia em que o poeta completou 94 anos.
Depois recordou que Cardenal deixou suas memórias no livro A Revolução Perdida (2004).
Ela também observou que durante sua breve estada na capital, observou que aparentemente tudo parece “normal”, mas que visitou a igreja da Divina Misericórdia e constatou in situ as paredes com as marcas de balas.
No final do ano passado, o poeta recebeu o Prêmio Internacional Mario Benedetti, que dedicou ao adolescente mártir Álvaro Conrado. A revolta que começou em abril do ano passado deixou mortos, prisioneiros e exilados.
(Foto: arquivo La Prensa)
Foi mais ou menos em 2000, em Oaxaca, recorda Zerón, que conheceu Cardenal.
“Foi emocionante”, disse Zerón. Recorda que leu seus epigramas quando era estudante do ensino médio. Anos mais tarde, quando escreveu sobre Teologia da Libertação e O Evangelho em Solentiname, que descobriu que se tratava de algo atípico: “ele era um revolucionário, um sacerdote, poeta, teólogo, tradutor, escultor e ministro da Cultura”.
Além disso, ela mostrou-se estar confusa, porque estava “escrevendo coisas contra a Igreja”, o papa e o Vaticano. E apoiava os pobres, os camponeses. Por isso, ler Salmos (1964) comoveu-a profundamente.
Anos mais tarde teve a oportunidade de convidá-lo para Oaxaca, para o Colóquio Internacional de Imaginação Literária (2003). E “foi um privilégio tocá-lo. Para mim é uma lenda viva que não podia repetir em outro personagem da história”, avalia Zerón.
Para Zerón, a poesia de Cardenal aproxima-se das pessoas de maneira simples, fala de sua realidade, não é rebuscada, não é preciso ter um dicionário ao lado para compreendê-la. E “foi isso que aprendi com ele”, confessa. E é isso que procura imprimir em suas últimas coletâneas de poemas.
Nos últimos quase vinte anos, Zerón encontrou-se com o poeta em outros eventos literários no Chile, Cuba, Nicarágua e em outros países. “Nos apresentamos como amigos”, diz a poetisa.
Deus, a revolução e o cosmos têm sido durante décadas temas de leituras preferidas e bases para a criação de títulos como: Oração por Marilyn Monroe e Outros Poemas (1965), O Evangelho em Solentiname (1975), Somos Pó das Estrelas (2013) ou A Revolução Perdida (2004), e Assim na Terra como no Céu (2018).
Mas também “as pessoas vão entender que ele é um grande cientista. Veja Canto Cósmico (1989). Eu o levei a livrarias no México... e nós saímos com uma pilha de vinte livros, todos sobre as estrelas, o cosmos”.
“Ele não pertence a este século XXI. Como vão classificá-lo, o que vão dizer agora? Porque o que ele escreve não é poesia; ou porque fez o poema de denúncia Oração por Marilyn Monroe (1965), e que ninguém sabe que é um poema para defender o papel das mulheres, e porque disse que era bonita”.
Ela recordou que Cardenal, embora seja sacerdote, é homem e teve seu tempo em que esteve totalmente apaixonado por mulheres e com amores platônicos.
(Foto: arquivo La Prensa)
Em 2007, ele se hospedou na casa de Lina. Naqueles dias iria receber um prêmio Honoris Causa em Hermosillo Sonora. “E estando na cozinha da minha casa disse-me que queria conhecer o Subcomandante Marcos, e disse-lhe para me trazer terra. Claro, Ernesto”, recorda Lina que era o interesse do poeta.
“O encontro com o Subcomandante foi para ele tão..., ele acreditava tanto no Subcomandante, ele acreditava tanto que estava fazendo o que ele tinha feito e estava fazendo. Eu tenho outra versão que não nada tem a ver com o Ernesto”, conta Zerón.
Cardenal cumprimentou o Subcomandante e entregou uma rosa branca “para o amigo sincero” como José Marti. Ao término do encontro, o Subcomandante quis fechar a mesa quando o homenageado era o Cardenal, acrescenta Zerón, participou do que aconteceu e que couve a ela servir de moderadora.
Neste aniversário, o poeta estava debilitado e fez todo o possível para estar com as pessoas. “Ninguém entende que ele não escuta bem, que às vezes responde coisas que não lhe perguntam. Mas o que isso importa, ele está fazendo o melhor que pode”, comenta Zerón.
Como não vai ficar mal humorado?, pergunta-se. “Ele precisa do carinho, dos afagos; é por isso que eu o abraço. Ele fica tão feliz e se pode ver a cara que diz ‘obrigado’, porque alguém me toca como um ser humano”, disse.
De seus novos livros, disse que o poeta tem Assim na Terra como no Céu (2018) e Filhos das Estrelas (2019), editado pela Anama. “Filhos das Estrelas é onde ele finalmente reconhece a certeza de que outro mundo é possível, de um Deus não dos mortos, mas dos vivos”.
Zerón revelou que tem muitas notas sobre conversas com Cardenal.
Em uma delas, o poeta lhe confidenciou que, se morresse, “gostaria de ressuscitar em um jovem de 32 anos”.
É muito simpático que o reconheça, disse Zerón, que também se lembra dos epigramas do poeta dedicados a Claudia e Myriam; assim como dos poemas políticos contra o ditador Somoza.
A este respeito, Lina diz que pela Linajes Editores, publicou, em 2007, uma edição especial de 100 exemplares de seus epigramas, os quais foram distribuídos a estudantes, 25 deles autobiográficos.
(Foto: arquivo La Prensa)
Nos últimos quase vinte anos Zerón encontrou-se com o poeta em outros eventos literários no Chile, Cuba, Nicarágua e visitou livrarias. “Nos apresentamos como amigos”, disse a poetisa.
Poetisa, romancista e jornalista mexicana. Seus 18 livros de poesia foram traduzidos para 14 idiomas e aparecem em mais de 100 antologias. Ela publicou quatro romances, uma biografia e um livro de contos.
Em 2016, seu romance Uma Sombra no Vale ganhou o Prêmio Latino-Americano de Literatura Jorge Calvimontes. Em 2015, o seu livro Pétalas de Fogo ganhou o Prêmio Nacional de poesia Nezahualcoyotl.
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Ernesto Cardenal: “Deus dorme comigo na rede” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU