05 Setembro 2017
Em um mundo em plena mudança o próprio conceito de solidariedade exige reformulações. É o que diz nesta entrevista o filósofo suíço Patrice Meyer-Bisch, presidente do Observatório da Diversidade e de Direitos Culturais da Cátedra UNESCO. Até setembro de 2016, ele coordenava o Instituto Interdisciplinar de Ética e de Direitos Humanos da mesma Universidade de Friburgo.
A entrevista é de Sergio Ferrari, publicada por Alai, 01-09-2017. A tradução é de André Langer.
Vivemos em um planeta que se move entre um mercado globalizado e o aumento de muros e medos em relação “ao outro”, ao diferente. Um espaço escorregadio para falar de solidariedade e de cooperação...
Um marco universal que admite duas leituras. A pessimista, que inclui as guerras, as exclusões e um acentuado individualismo de massa. Com um mercado ilusoriamente “globalizado”, uma vez que beneficia apenas uma pequena parcela da população mundial, em que predomina a lógica dos oligopólios e do capitalismo selvagem. Com a nova política norte-americana, que busca criar muros para controlar as pessoas e a economia. Não é um liberalismo no sentido clássico, já que as liberdades de cada um são desconsideradas.
A outra visão, mais otimista, admite uma situação de crise com espaços de inovação. Vemos isso também no plano cultural: até poucos anos atrás, não se falava praticamente nada de direitos culturais. Hoje, são muitos os que insistem em que não se trata de um pilar a mais, mas da própria base para definir o tipo de desenvolvimento que queremos. E insistem na necessidade de fundamentar a importância dos direitos humanos na economia.
Diante deste complexo contexto mundial, qual é o principal desafio da solidariedade internacional?
Esclarecer e definir o que são as liberdades econômicas. Por que não falar, por exemplo, de liberdade econômica dos pobres? Quando um ser humano não tem um tostão no seu bolso para comprar ou vender, nem para garantir o essencial à sua família, trata-se de um ser profundamente humilhado. A liberdade econômica dos pobres é absolutamente central, tão importante como a liberdade de expressão, de circulação, etc.
Penso que o conceito central de liberdade econômica dos pobres – e, portanto, das obrigações econômicas de todos – é uma forma real de pensar e exercer a solidariedade, como meio para assegurar o direito de cada um a alimentar a sua família e a si mesmo. Tão importante, insisto, como os outros direitos humanos.
Nessa leitura, como se integra o conceito de solidariedade entre o “Norte” e o “Sul”?
Procuramos nos afastar das amálgamas retóricas. Ou seja, não falamos de nações ricas e pobres – embora existam diferenças significativas entre países –, mas sobretudo de gente mais rica que outra. A exploração que os ricos fazem dos pobres se dá em cada país. Há muitíssimos ricos nos países classificados como “pobres” e pessoas profundamente pobres em Zurique ou em Genebra.
As simplificações conceituais beneficiam os diferentes tipos de conservadorismo. Por exemplo, os governos dos países denominados “em desenvolvimento”, que empunham sua pobreza para obter ajuda internacional. E os países do “Norte”, que fazem um pouco de cooperação, mas que não atacam os problemas verdadeiros e estruturais. Por exemplo: a indiferença ao escândalo da venda ao Sul de produtos petroleiros com 350% a mais de enxofre e três vezes mais tóxicos que o permitido aqui, o que significa receitar a morte coletiva de determinadas populações, na indiferença total e na irresponsabilidade total dos culpados. Ou a aceitação dos salários exorbitantes. No ano passado, o diretor da Novartis ganhou um milhão de francos por mês (ndr: cerca de um milhão e 100 mil dólares estadunidenses). É um crime econômico! No entanto, estas realidades não produzem grandes reações, a não ser por parte de algumas ONGs e de uma pequena parcela da população.
O que significa, então, promover uma verdadeira cooperação solidária?
Um exemplo concreto. Nós trabalhamos desde 2000 em Burkina Faso para elaborar indicadores de direito à educação de base. Comprovamos que as leis ali estão em conformidade com os textos internacionais. No entanto, apesar da grande ajuda internacional, existe uma taxa de analfabetismo de cerca de 75%. Isso se explica porque a escola é neocolonial, e as aulas são dadas em francês, quando apenas 6% da população fala essa língua no país.
Os analfabetos não querem enviar os seus filhos à escola, não por ignorância, mas porque têm um conceito forte, inteligente e correto do tipo de escola que gostariam de ter. Eles recusam esse tipo de instituição neocolonial que atenta contra as suas raízes e ameaça sua própria cultura.
A verdadeira cooperação é a que se dá entre diversos atores, com ativa participação da população e em torno de valores profundos como o tipo de educação que desejam transmitir aos seus filhos. Há participação em todos os níveis: escolas, comunidades, associações de pais e mestres. Neste exercício, o fator humano é fundamental.
Esse exercício que você descreve leva a um questionamento da cooperação ocidental ou “Norte” tradicional?
Sem dúvida. A cooperação é centralizada. Ela procura reproduzir modelos conhecidos pensando que podem ser copiados e aplicados em países pobres. Com a ideia de que está faltando tudo, inclusive inteligência. E sem aceitar outra perspectiva: uma pessoa ou população pobre é potencialmente rica e a pobreza existe porque seus direitos essenciais são violados. Nós vamos para observar, acompanhar com respeito, para reforçar. Não vamos para “medir a pobreza” e transferir as nossas lógicas de avaliação, de impacto, de efeitos, como se nós tivéssemos a verdade e soubéssemos tudo melhor...
Este novo paradigma implica a busca de propostas alternativas?
Não gosto do termo alternativa, que pressupõe que existe um modelo único, principal, dominante. Devemos reformar tudo, mudar de paradigma, encontrar uma linguagem autêntica de direitos e liberdades econômicas, e dar um sentido muito mais forte à democracia. Ou seja, aplicar o que nós definimos como a visão baseada nos direitos humanos em desenvolvimento.
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“A liberdade econômica dos pobres é absolutamente central”. Entrevista com Patrice Meyer-Bisch - Instituto Humanitas Unisinos - IHU