05 Agosto 2017
“Ainda que Marx e Edison sejam a consequência do capitalismo, nenhuma grande revolução científica do Renascimento e da Era Moderna (Averróis, Copérnico, Kepler, Galileu, Pascal, Newton, Einstein, Turing, Hawking) se deveu a esse sistema. O capitalismo selvagem produziu muito capital e muitos Donald Trump, mas muito poucos gênios”, escreve Jorge Majfud, escritor uruguaio, professor em Jacksonville University, em artigo publicado por Página/12, 04-08-2017. A tradução é do Cepat.
Uma das afirmações que os apologistas do capitalismo mais repetem e menos se questiona é aquela que afirma que este foi o sistema que mais riqueza e mais progresso criou na história. Devemos a ele a Internet, os aviões, o YouTube, os computadores a partir dos quais escrevemos e o todo o avanço médico e as liberdades sociais e individuais que podemos encontrar hoje.
O capitalismo não é o pior, nem o menos criminoso dos sistemas que já existiram, mas esta interpretação arrogante é, também, um sequestro da história pela ignorância.
Em termos absolutos, o capitalismo é o período (não o sistema) que produziu mais riqueza na história. Esta verdade seria suficiente, se não a considerássemos tão enganosa como quando, nos anos 1990, um ministro uruguaio se ufanava de que em seu governo haviam sido vendidos mais celulares que no restante da história do país.
A chegada do homem à Lua não foi simples consequência do capitalismo. Para começar, nem as universidades públicas e nem as privadas são, em seus fundamentos, empresas capitalistas (exceto alguns poucos exemplos, como o fiasco da Trump University). A NASA também nunca foi uma empresa privada, mas estatal e, além do mais, se desenvolveu graças à prévia contratação de mais de 1.000 engenheiros alemães, entre eles Wernher von Braun, que haviam experimentado e aperfeiçoado a tecnologia de foguetes nos laboratórios de Hitler, que investiu fortunas (é verdade, com alguma ajuda econômica e moral das grandes empresas norte-americanas). Tudo, dinheiro e planejamento, foi estatal.
A União Soviética, sobretudo sob o comando de um ditador como Stalin, ganhou a corrida espacial ao colocar, pela primeira vez na história, o primeiro satélite, a primeira cachorra e até o primeiro homem na órbita, doze anos antes do Apollo 11 e apenas quarenta anos após a revolução que converteu um país atrasado e rural, como a Rússia, em uma potência militar e industrial, em algumas poucas décadas. Nada disso se entende como capitalismo.
Claro, o sistema soviético foi responsável por muitos pecados morais. Crimes. Mas, não são as deficiências morais as que distinguiam o comunismo burocrático do capitalismo. O capitalismo só se associa com as democracias e os Direitos Humanos por uma narrativa, repetitiva e cruciante (teorizada pelos Friedman e praticada pelos Pinochet), mas a história demonstra que pode conviver perfeitamente com uma democracia liberal; com as genocidas ditaduras latino-americanas que precederam o pretexto da guerra contra o comunismo; com governos comunistas como China e Vietnã; com sistemas racistas como África do Sul; com impérios destruidores de democracias e de milhões de habitantes na Ásia, África e América Latina, como foram, nos séculos XIX e XX, Inglaterra, Bélgica, Estados Unidos, França, etc.
A chegada à Lua, assim como a criação da Internet e os computadores, que são atribuídas ao capitalismo, foram basicamente (e, em certos casos, unicamente) projetos de governos, não de empresas como Apple ou Microsoft. Nenhum dos cientistas que trabalharam nesses revolucionários programas tecnológicos, agiu como empresário ou buscando se tornar ricos. De fato, muitos deles eram ideologicamente anticapitalistas, como Einstein, etc. A maioria era formada de professores assalariados, não os agora venerados entrepreneurs.
A esta realidade há que acrescentar outros fatos e um conceito básico: nada disto surgiu do zero, no século XIX ou no século XX. A energia atômica e as bombas são filhas diretas das especulações e dos experimentos imaginários de Albert Einstein, seguido de outros gênios assalariados. A chegada do homem à Lua teria sido impossível sem conceitos básicos como a Terceira lei de Newton. Nem Einstein e nem Newton teriam desenvolvido suas maravilhosas matemáticas superiores (nenhuma delas por causa do capitalismo) sem um conjunto de descobertas matemáticas introduzidas por outras culturas, séculos antes. Alguém consegue imaginar o cálculo infinitesimal sem o conceito de zero, sem os números arábicos e sem a álgebra (al-jabr), para nomear alguns poucos?
Os algoritmos que os computadores e os sistemas de internet utilizam não foram criados nem por um capitalista, nem em qualquer período capitalista, mas séculos atrás. Conceitualmente, foi desenvolvido em Bagdá, a capital das ciências, por um matemático muçulmano de origem persa, no século IX, chamado, precisamente, Al-Juarismi. Segundo Oriana Fallaci, essa cultura não deu nada às ciências (ironicamente, o capitalismo nasce no mundo muçulmano e o mundo cristão o desenvolve).
Nem o alfabeto fenício, nem o comércio, nem as repúblicas, nem as democracias surgiram no período capitalista, mas em dezenas de séculos antes. Nem sequer a imprensa em suas diferentes versões alemãs e chinesas, uma invenção mais revolucionária do que o Google, foi graças ao capitalismo. Nem a pólvora, nem o dinheiro, nem os cheques, nem a liberdade de expressão.
Ainda que Marx e Edison sejam a consequência do capitalismo, nenhuma grande revolução científica do Renascimento e da Era Moderna (Averróis, Copérnico, Kepler, Galileu, Pascal, Newton, Einstein, Turing, Hawking) se deveu a esse sistema. O capitalismo selvagem produziu muito capital e muitos Donald Trump, mas muito poucos gênios.
Isto sem falar de descobertas mais práticas, como a alavanca, o parafuso ou a hidrostática de Arquimedes, há 2.300 anos. Ou a bússola do século IX, uma das descobertas mais importantes na história da humanidade, de longe muito mais importante do que qualquer telefone inteligente. Ou a roda, que vem sendo utilizada no Oriente há 6.000 anos e que ainda não saiu de moda.
É claro que entre a invenção da roda e a invenção da bússola passaram vários séculos. Mas, o tão vangloriado “vertiginoso progresso” do período capitalista não é nenhuma novidade. Exceto períodos de catástrofe como o foi o da peste negra, durante o século XIV, a humanidade veio acelerando o surgimento de novas tecnologias e de recursos disponíveis para uma crescente parte da população, como, por exemplo, as diferentes revoluções agrícolas. Não é necessário ser um gênio para advertir que essa aceleração se deve à acumulação de conhecimento e à liberdade intelectual.
Na Europa, o dinheiro e o capitalismo significaram um progresso social diante da estática ordem feudal na Idade Média. Mas, logo se tornaram o motor de genocídios coloniais e, depois, em uma nova forma de feudalismo, como o do século XXI, como uma aristocracia financeira (um punhado de famílias acumulam a maior parte da riqueza em países ricos e pobres), com duques e condes políticos e com vilões e vassalos desmobilizados.
O capitalismo capitalizou (e os capitalistas sequestraram) séculos de progresso social, científico e tecnológico. Por essa razão, e por ser o sistema global dominante, foi capaz de produzir mais riqueza que os sistemas anteriores.
O capitalismo não é o sistema de alguns países. É o sistema hegemônico do mundo. É possível abrandar seus problemas, é possível desmantelar seus mitos, mas não é possível eliminá-lo, enquanto não entrar em sua crise ou declive, como o feudalismo. Até que seja substituído por outro sistema. Isso no caso de que reste planeta ou humanidade. Porque o capitalismo também é o único sistema que colocou a espécie humana à beira da catástrofe global.
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Realmente devemos a modernidade ao capitalismo? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU