22 Julho 2017
Qualquer projeto político precisa propor, também, outros modos de sentir e desejar. Como superar a competição perpétua, acumulação obsessiva e banalização dos afetos que caracterizam o neoliberalismo?
O artigo é de Amador Fernández-Savater, publicado por Outras Palavras, 20-07-2017. A tradução é de Inês Castilho.
Amador Fernández-Savater (Madri, 1974) vai e vem entre o pensamento crítico e a ação política, buscando sempre seu encontro. É editor da Aquarela Livros, dirigiu durante anos a revista Archipiélago e participou ativamente em diferentes movimentos coletivos e de base em Madri. É autor de Filosofia e Ação (Editorial Limite, 1999), coautor de Red Ciudadana tras el 11-M; cuando el sufrimiento no impide pensar ni actuar (Acuarela Livros, 2008). Atualmente transmite na Rádio Círculo o programa Uma linha sobre o mar, dedicado à filosofia de garagem.
Nos anos 70, o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini propôs pensar o conflito político como uma disputa fundamentalmente antropológica: entre diferentes modos de ser, sensibilidades, ideias de felicidade. Uma força política não é nada (não tem nenhuma força) se não se enraíza em um “mundo” que rivalize com o dominante em termos de formas de vida desejáveis.
Enquanto os “homens políticos” de seu tempo (dirigentes de partido, militantes de vanguarda, teóricos críticos) miravam o poder estatal como o lugar privilegiado para a transformação social (toma-se o poder e muda-se a sociedade a partir de cima), Pasolini advertia – com sensibilidade poética, isto é, sismográfica – que o capitalismo estava avançando mediante um processo de “homologação cultural” que arruinava os “outros mundos” (campesinos, proletários, subproletários), contagiando os valores e modelos de consumo “horizontalmente”: através da moda, da publicidade, da informação, da televisão, da cultura de massas etc. O novo poder não emana, irradia ou desce de um lugar central, antes se propaga “indiretamente, na vivência, no existencial, no concreto”, dizia Pasolini.
No vestir e no andar, na seriedade e nos sorrisos, na gesticulação e nos comportamentos, o poeta decifrava os signos de uma “mutação antropológica” em marcha: a revolução do consumo. Freá-la a partir do poder político seria como tratar de conter uma inundação com uma mangueira. Não é possível impor outros conteúdos ou finalidades a um mesmo marco de acumulação e crescimento. É antes o contrário: o modo de produção-consumo será o que determina as margens do poder político. Só se interrompe uma civilização com outra. São necessários outros vestires e outros andares, outra seriedade e outros sorrisos, outra gesticulação e outros comportamentos.
A disputa política (a que não é simples jogo de tronos) expressa um “desacordo ético” entre diferentes ideias sobre a vida, ou melhor, a boa vida. Não ideias que flutuam por aí ou se enunciam retoricamente, mas ideias práticas encarnadas, materializadas, inscritas nos gestos e dispositivos mais cotidianos (Facebook, Uber ou Airbnb são expressões do desejo, daí sua força). O que poderia nos contar um olhar antropológico sobre a política? Que mundos chocam-se hoje? Em que desacordos éticos sobre a vida boa poderiam aflorar ações políticas transformadoras?
Vamos primeiro dar um passo atrás. Onde nasceu a ideia de organizar a vida inteira em torno do trabalho, a eficiência e a produtividade? Segundo Max Weber, a cultura burguesa teve sua origem, motor e combustível na ética protestante (sobretudo do protestantismo ascético). Através da reconceituação do trabalho como “profissão” e da teoria da predestinação (só no êxito terreno podemos encontrar sinais de nossa salvação), gera-se uma subjetividade que coloca no centro da vida o dinheiro e o enriquecimento, que aspira à “racionalização” de toda a existência (a relação com o tempo, o corpo, a honra, a educação dos filhos), que condena a pobreza como o pior dos males (“escolher a pobreza é como escolher a doença”), etc.
Essa subjetividade não é um “reflexo automático” da objetividade econômica, mas um elemento decisivo da “cultura capitalista”, sem a qual simplesmente não há capitalismo. Somente um novo tipo de imaginário e subjetividade (uma nova organização do desejo) poderia ter a força suficiente para quebrar a “mentalidade tradicionalista” (então dominante). Segundo esta, não se vive para trabalhar (isso seria absurdo), antes trabalha-se para viver; e quem dispõe de riqueza (por trabalho próprio, alheio ou boa sorte), dedica-se à contemplação ou à guerra, a brincar ou a caçar, a dormir tranquilo ou ao gozo sensual da vida, mas não lhe passa pela cabeça reinvesti-la para continuar acumulando.
A cultura burguesa nasce portanto da potência de um imaginário religioso que logo abandona, laicizando seus valores: o sentido da responsabilidade individual, o self made man, a meritocracia, o crédito, o progresso, a sensibilidade puritana e severa etc. A modernidade foi predominantemente uma “cultura do Norte”: anglo-saxã, masculina, branca e protestante. Mas o domínio deste imaginário (viver para trabalhar, investir os lucros para obter mais lucros, submeter todos os aspectos da vida a um controle regulamentado e sistemático etc.) nunca foi completo.
Segundo o sociólogo (da vida cotidiana) Michel Maffesoli, sempre existiu, insistiu e resistiu uma “sociabilidade do Sul”. Uma sociabilidade difusa, submersa e oculta, difícil de ver porém presente, capaz de revelar-se e ativar-se quando está ameaçada. Uma dinâmica informal (formas de vínculo, de pertencimento subjetivo, de fazer prático) determinante na vida diária, como substrato ou “manto freático” da existência coletiva.
Em que consiste essa sociabilidade do Sul? Em primeiro lugar, é um impulso vital, não-racional. Uma vontade de viver, um querer viver. Mas não viver de qualquer modo, e sim afirmando um tipo de vínculo, um tipo de existência, uma certa ideia de felicidade: um estar-juntos antropológico. É também um conjunto de saberes e estratégias para reproduzir esses vínculos, essas formas de vida.
Esse “Sul” refere-se original e historicamente aos países mediterrâneos e latino-americanos, mas converte-se em seguida na obra do autor numa noção mais movediça que aponta para “valores” e “climas afetivos”, mais que a uma localização geográfica. Nesse sentido, há “Sul no Norte”, como também há “Norte no Sul”. Colônia (viva, alegre, falante, proletária) seria o “Sul” na Alemanha; Frankfurt, das finanças, o “Norte”.
Podemos agora enunciar cinco “valores” (o que vale) para esta sociabilidade do Sul:
– em primeiro lugar, o presente: a vida não se projeta “para diante” (um futuro de salvação, de perfeição), mas se afirma “agora”. Esta certa despreocupação quanto ao amanhã não exclui (paradoxalmente?) uma obstinação por reproduzir-se e durar. A temporalidade da sociabilidade do Sul é intensa e não extensa, mas ela se empenha em “perseverar em seu ser”.
– em segundo lugar, o vínculo. A vida se dá em continuidade com os outros, entrelaçada com outros, enredada com outros. Não somente por necessidade, mas também pelo prazer de compartilhar. O vínculo mais apreciado é o vínculo estreito, próximo, ao alcance da mão (o tátil como valor). Este “aqui” não nos separa do que está “ali” (o distante), antes pelo contrário: a partir do que vivemos “aqui” nos pode ressoar algo “ali”.
– em terceiro lugar, o trágico, a assunção da anarquia do que há, do que é. Não se trata de “solucionar” ou “superar” o que está dado (incerto, obscuro, múltiplo), antes muito mais de saber “compor-se” com ele. Outra relação, pois, com o mal, o risco ou a morte, que não são algo a ser erradicado (segundo as lógicas reinantes do controle, da segurança e da previsibilidade total), mas um lado da vida (e também podem ser força, alavanca, se sabemos como nos compor).
– em quarto lugar, o dionisíaco, não a vida encerrada em si mesmo (trabalho, sucesso, progresso), mas a vida “enlevada” que busca sair de si através do gozo do corpo, o gosto pela máscara e o disfarce (as aparências), a fusão com o outro nas celebrações coletivas (musicais, esportivas, religiosas) etc. Excesso, desperdício, vertigem, entrega, destruição: o “dionisíaco” é uma exploração da alteridade.
– por último, o jogo duplo, não a paixão pelo direto, frontal e explícito, mas pelo desvio, a astúcia, o rebuscado, a burla, a duplicidade, a dissimulação, o jogo com a lei e a norma, as estratégias informais de conservação e sobrevivência (minha de dos meus). Não a paixão por corrigir e endireitar, mas por sortear, regatear, driblar e enganar.
Os economistas neoliberais fazem sua própria leitura “antropológica” do mundo e concluem que a crise econômica de 2008 tem a ver com a “insuficiente mobilidade geográfica”, o “espírito empreendedor limitado”, a “rede de proteção familiar”, o “trabalho informal” ou a “indiferença (inclusive a repugnância) com relação ao enriquecimento” ainda muito presentes nos países do Sul (os chamados PIGS: Portugal, Itália, Grécia, Espanha, nenhum deles um país protestante, por certo). À luz dessa análise, vemos a sociabilidade do Sul em ação.
Podemos ler a gestão neoliberal da crise como a tentativa de suprimir por fim todas essas “inadequações culturais” e acelerar assim “o devir mundo do capital” (Laval y Dardot)? A crise da dívida seria, desse modo, a ocasião perfeita para desatar a “destruição criativa” de tudo aquilo que, dentro e fora de nós mesmos, nos indispõe para pensarmos e atuarmos como simples átomos sociais, partículas egocêntricas desvinculadas, máquinas de cálculo egoístas. Costumes e vínculos, apegos e solidariedades.
Eliminando as proteções sociais, fragilizando os direitos associados ao trabalho, favorecendo o endividamento geral dos estudantes e das famílias, precarizando, reduzindo os salários e o investimento social, trata-se de fomentar o “salve-se quem puder” e destruir tudo aquilo que permita às pessoas qualquer margem de liberdade com relação ao mercado. Tudo o que há “entre” os seres e faz deles algo mais que “partículas elementais” em competência: laços de mil tipos, direitos conquistados, lugares vivos, recursos públicos e comuns, redes de solidariedade e apoio, circuitos não mercantis de bens e serviços etc. A base material de qualquer autonomia. Governar hoje consiste precisamente em corroer esse “entre”, essa rede densa de laços, afetos, apoio mútuo…
Mas bem quando se queria “extirpá-la”, a sociabilidade do Sul estende-se e ativa-se. Na Espanha da crise proliferaram por exemplo os microgrupos informais de solidariedade e apoio mútuo (familiares, de vizinhança, de amizade) que suavizaram os efeitos devastadores da gestão neoliberal da crise: medo, solidão e desamparo. Uma proliferação que contradiz em si mesma o paradigma liberal-individualista: “cada um tem sua vida”.
Bem quando nos dizem que “havíamos vivido acima de nossas possibilidades” e devíamos expiar e pagar, os valores do Sul vingam-se, afirmando e difundindo outras ideias de riqueza e felicidade: mais baseadas no presente que no futuro, nos vínculos que na solidão, no tempo disponível e não na vida para o trabalho, na empatia e não na competição, no desfrute da graça, mais que na culpa pela dívida.
Mais difícil ainda. Segundo alguns autores, estaríamos hoje atravessando a passagem para a superação (intensificação? radicalização?) do antigo “espírito” do capitalismo, cujas origens Max Weber estudou.
Por exemplo, segundo Franco Berardi, a burguesia ainda “vivia nos vínculos” (com uma comunidade, alguns lugares, alguns bens físicos, uma classe trabalhadora que não podia suprimir, a relação entre valor e tempo de trabalho). Porém, o capitalismo financeiro é muito mais abstrato: não se identifica com nenhum lugar, com nenhuma população concreta, qualquer tipo de trabalho, com nenhuma regra, embora suas decisões tenham consequências (devastadoras) sobre lugares, populações, trabalhadores etc.
Por outro lado, segundo Christian Laval e Pierre Dardot, essa lógica de acumulação infinita do capital tornou-se hoje uma “modalidade subjetiva”. Que quer dizer isso? Pois que o “homo economicus” (definido pela prudência, a ponderação, o equilíbrio nos intercâmbios, a felicidade sem excessos, a paridade dos esforços e dos prazeres) é substituído o “empresário de si mesmo” (definido pela competência e a autossuperação constante: viver no risco, ir além de si mesmo, assumir um desequilíbrio permanente, não descansar ou parar jamais, colocar todo o gozo na autossuperação). Uma expressão resume, segundo os autores franceses, o tipo subjetivo do capitalismo atual: “sempre mais”. O gozo da falta de limite.
Nessa transformação seria necessário por certo reavaliar a resistência que apresenta a “sociabilidade do Sul”, quando por exemplo a cultura capitalista já não exige hoje a repressão do afetivo/passional, mas antes sua completa instrumentalização a serviço da lógica do lucro: a instrumentalização do íntimo. Mas sem dúvida a afirmação de uma “vida que se basta a si mesma” continua sendo absolutamente subversiva (mais que nunca?). Uma vida que não tenta extrair e acumular “sempre mais”, mas que se vive no gozo de cuidar e compartilhar, o mais proximamente possível, aquilo que nos foi dado, aqui e agora.
A insurreição da sociabilidade do Sul consistiria em afirmar politicamente esta outra ideia de felicidade, esta potência subterrânea, estas vagas oceânicas.
Referências
- Cartas luteranas (Trotta) e Escritos corsarios (Ediciones del Oriente y el Meditarráneo), de Pier Paolo Pasolini.
- A nuestros amigos e Ahora (ambos em Pepitas de Calabaza), do Comitê Invisível.
-A ética protestante e o “espíritu” do capitalismo (Alianza), de Max Weber.
- A sublevação (edições castelhanas em Hekht y Artefakt), de Franco Berardi, Bifo.
- O pesadelo que nunca acaba (Gedisa), de Christian Laval e Pierre Dardot.
- O tempo das tribos (Icaria), A fatia do diablo (Siglo XXI) e A transfiguração do político (Herder), de Michel Maffesoli.
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Pós-capitalismo: a dimensão sensível - Instituto Humanitas Unisinos - IHU