08 Mai 2017
“O Brasil é um país que se precipita na decadência sem experimentar a civilização”.
A constatação é de Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, em artigo publicado por CartaCapital, 08-05-2017.
Segundo ele, “em sua Santa Cruzada, o liberalismo à brasileira amaldiçoou a sinergia entre o público e o privado nos anos de crescimento acelerado. Exemplo: a privatização das empresas públicas removeu o arranjo que garantia o desenvolvimento da indústria de bens de capital. Isso foi decisivo para impulsionar o processo de desindustrialização”.
“Sob os auspícios da mídia-empresa, é quase impossível debater os riscos abrigados na desmontagem dos nexos que articulavam o crédito direcionado, as empresas públicas e o setor privado, nacional e estrangeiro – conclui o economista. Os “liberais” acham que isso não tem a menor importância: bastam a estabilidade e a previsibilidade macroeconômicas para lançar o País numa trajetória do progresso e do bem-estar geral. É certo que, por esses caminhos, chegaremos, enfim, ao sonhado paraíso da economia de mercado. Capitalismo, que dizem ser formidável, nem pensar”.
Depois das políticas "inteligentes" que prometiam tirar o país das armadilhas do capitalismo, restam apostas como a reforma da previdência
Eis o artigo.
Relembrar e reescrever velhos temas é obrigatório no Brasil, país que se precipita na decadência sem experimentar a civilização. O tema é velho, mas não tão velho quanto as traquitanas que os atuais donos do poder pretendem nos impingir.
O leitor de há de perdoar minha insistência nas velharias contemporâneas. Vou bater na tecla da industrialização e no seu contrário, a desmontagem do arranjo institucional que levou o Brasil a transitar do modelo primário-exportador para a etapa industrial.
Ao longo do período de 1930 a 1980, o Estado constituiu formas superiores de organização capitalista, consubstanciadas: 1. Num sistema financeiro público. 2. Em grandes empresas estatais, replicando o “capitalismo organizado” das industrializações avançadas. O fato de o Estado coordenar e capitanear a industrialização conferiu ao capitalismo brasileiro retardatário a condição da economia mais desenvolvida entre os países da periferia.
O éthos do desenvolvimento nasceu da aliança entre as camadas empresariais nascentes, o estamento burocrático-militar, lideranças intelectuais e o proletariado em formação. O projeto era aproximar o País das formas de produção e de convivência que não poderiam ser alcançadas através da simples operação das forças naturais do mercado.
Esse arranjo de classes sofreu as dores da convivência conflitiva com as oligarquias agrárias. A repactuação continuada desse compromisso deu sobrevida às mazelas do colonial-escravismo: a persistência da estrutura agrária; a reprodução e ampliação das desigualdades sociais, transportadas do campo para a cidade; o patrimonialismo e o rentismo que assola o sistema financeiro; a eterna revolta contra o pagamento de impostos por parte dos endinheirados.
O esforço de cinco décadas empenhado na construção da arquitetura econômico-política nacional sucumbiu à desorganização dos anos 1980. O colapso do endividamento externo impulsionou a crise monetária e fiscal que perdurou até o Plano Real.
No entusiasmo das merecidas celebrações do Plano Real, uma ilustre figura do “Novo Renascimento” chegou a proclamar que os tempos do nacional-desenvolvimentismo foram “40 anos de burrice”. Quando prolatada, essa sentença de condenação do passado projetava o poder e o prestígio do real forte.
Era, então, de mau gosto, para não dizer quase proibido, lembrar que o prolongado desfile de burrice, afinal, liberou o Brasil e os brasileiros da dependência da exportação de café e de outros produtos agrícolas menos votados – além do bicho-de-pé, da febre amarela e da hemoptise –, forjando a mais importante economia urbano-industrial do então chamado Terceiro Mundo.
Não por acaso, a febre amarela está de volta. A década perdida dos 1980 revigorou a febre liberal-cosmopolita das camadas dominantes, fazendo caducar os compromissos firmados em torno do objetivo comum do desenvolvimento.
Desde então, o liberalismo à brasileira retornou às suas origens: autoritário, oferece aos enriquecidos o roteiro para a disseminação das ilusões que vão eternizar as realidades do crescimento meia-boca. No mesmo realejo tocam a ladainha do “populismo”, para enquadrar os recalcitrantes que insistem na garantia dos direitos das classes subalternas. As reformas modernizantes fazem conluio com os ranços e rancores que ora predominam no âmbito político-jurídico.
Nos anos 1990, as políticas “inteligentes” sugeridas pelo consórcio dos ricos, bonitos e cosmopolitas prometiam tirar o País das armadilhas do capitalismo organizado. Depois de 20 anos de privatizações, câmbio valorizado, importações predatórias e submissão aos poderes da finança desregulada, restam as apostas na flexibilização do mercado de trabalho e na reforma da Previdência.
Em sua Santa Cruzada, o liberalismo à brasileira amaldiçoou a sinergia entre o público e o privado nos anos de crescimento acelerado. Exemplo: a privatização das empresas públicas removeu o arranjo que garantia o desenvolvimento da indústria de bens de capital. Isso foi decisivo para impulsionar o processo de desindustrialização.
Sob os auspícios da mídia-empresa, é quase impossível debater os riscos abrigados na desmontagem dos nexos que articulavam o crédito direcionado, as empresas públicas e o setor privado, nacional e estrangeiro. Os “liberais” acham que isso não tem a menor importância: bastam a estabilidade e a previsibilidade macroeconômicas para lançar o País numa trajetória do progresso e do bem-estar geral. É certo que, por esses caminhos, chegaremos, enfim, ao sonhado paraíso da economia de mercado. Capitalismo, que dizem ser formidável, nem pensar.
Leia mais
- Governança rentista
- A linguagem do dinheiro
- Brasil. Paraíso dos rentistas. PEC 241, a moratória do contrato social
- O capital financeiro depende da dívida pública
- O Brasil está caindo para a série C do campeonato mundial e estamos adstritos a fórmulas ultrapassadas. Entrevista especial com Luiz Gonzaga Belluzzo
- Pesadelos lúdicos na economia
- Um Plano Real para a indústria? Artigo de Luiz Gonzaga Belluzzo
- Há 40 anos, as finanças traem o capitalismo. Artigo de Maria Rosaria Ferrarese
- “O capitalismo sustentável é uma contradição em seus termos” diz Eduardo Viveiros de Castro
- Marx estava certo... sobre o capitalismo
- Occupy estava certo: o capitalismo levou o mundo ao fracasso
- A cultura capitalista é anti-vida e anti-felicidade. Artigo de Leonardo Boff
- O ano em que o capitalismo real mostrou a que veio
- ''A economia fracassou, o capitalismo é guerra, a globalização é violência.'' Entrevista com Serge Latouche
- “O capitalismo brasileiro – ornitorrinco – gera o Brasil invertebrado!” Entrevista especial com Reinaldo Gonçalves
- “O liberalismo se configura como um novo totalitarismo”
- Liberalismo e desenvolvimentismo no Brasil
FECHAR
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Capitalismo? Nem pensar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU