Por: Patricia Fachin | 03 Mai 2017
Para entendermos a complexidade da vida social, política, econômica e, mais especificamente, a situação brasileira na atual conjuntura, poderíamos “fazer um favor a nós mesmos saindo de dicotomias falsas”, adverte Hugo Albuquerque à IHU On-Line. Uma das dicotomias a serem superadas, sugere, é a que diz respeito ao Estado e ao Mercado, que não devem ser vistos como completamente opostos. “Estado e Mercado estão mutuamente implicados. Um não existe sem o outro”, diz. Nesse sentido, frisa, a esquerda tem que “romper essas relações perversas. A esquerda tem de ser o movimento da sociedade, em favor da sociedade, muitas vezes contra o Estado e o Mercado, que são instâncias interdependentes e hierárquicas que buscam gerir as nossas vidas”, defende.
Crítico do modo como a Operação Lava Jato tem conduzido as suas investigações, especialmente por estar gerando um “cenário de criminalização da política, sobretudo de esquerda”, Albuquerque admite que “há uma coisa útil” nesse processo, à medida que a Operação tem demonstrado “que isso que chamamos de ‘mercado’ não passa do oligopólio de grandes proprietários, e o ‘Estado’, o oligopólio dos grandes políticos, ambos em permanente negociação entre si, dentro, fora, abaixo e acima da lei”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Hugo Albuquerque também comenta a recente pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, a qual, na sua avaliação, “é esquemática demais” e sustentada por “dois fantasmas” que também rondam a esquerda: “(1) uma falta de ênfase não apenas metodológica como também epistemológica em relação ao procedimento que levam a conclusões como essas; (2) o enorme tabu que é a questão da classe, seja porque nem sempre alguns pressupostos básicos da sociologia funcionam muito bem cá nos trópicos, seja porque, mesmo quando funcionam, eles nos joguem na cara o enorme apartheid com o qual convivemos quotidianamente - e que não conseguimos reverter”. E critica: “A universidade tem um papel bastante salutar nesse processo de reprodução de um pensamento tradicional e padronizado enquanto, ao mesmo tempo, colabora para o alheamento da vida social no nosso país”.
Para ele, “uma solução para o país passa pelo desfazimento dos velhos oligopólios da construção civil, dentre outros, na criação de empresas menores e, nesse momento, na socialização de setores estratégicos”.
Hugo Albuquerque | Foto: Twitter
Hugo Albuquerque é mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, e sócio do Saccomani, Albuquerque & Biral Advogados Associados. Também é editor da Autonomia Literária.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como você responde a uma das perguntas que norteou a pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo: “Por que os pobres não votam mais no PT?”
Hugo Albuquerque - Não creio que essa seja a pergunta central da pesquisa. Ela até se pretende menos simplista, pois quer determinar qual é a ação política desses "pobres" - o que implica formar um conhecimento capaz de situar o PT na conjuntura atual, afinal, ela se trata de fundação partidária, o que é perfeitamente legítimo. Contudo, do meu ponto de vista, o nó górdio está no fato de que antes mesmo de tentar entender o que é a composição de classe no Brasil atual, ela se perde no processo e nos fundamentos do que poderia ser uma investigação coesa. É, reitero, um problema de fundamento.
Centrar uma pesquisa dessas na mera captação de opiniões é, por seu turno, buscar entender um fenômeno pelos efeitos, talvez os menos claros deles, mas isso é apenas a ponta do iceberg em matéria de problema de entendimento da questão de classe no Brasil de hoje. Quando Alana Moraes, Henrique Parra, Jean Tible, Salvador Schavelzon e eu redigimos nossa avaliação a respeito, em "A Periferia Contra o Estado?", partilhávamos do entendimento de que isso não era um mero "erro metodológico", mas o resultado óbvio de uma forma de fazer uma investigação, expressando previamente não apenas um certo modelo de ciência como também de mundo. A pesquisa, enfim, fala mais sobre ela mesma do que sobre o que pretende analisar. Esse sintoma nos diz muito, inclusive por ser algo bastante recorrente.
Esse modelo de ciência não deixa de ser uma expressão do modo de pensar hegemônico no PT atual (e em muitos lugares da esquerda, infelizmente), aludindo a uma forma fraca de positivismo. Eu acrescentaria alguns pontos para reflexão sobre essa perspectiva que merecem ser pontuados:
(1) o sujeito investigador aparece com juízos prévios antes mesmo de as questões serem feitas (portanto, a pergunta acaba tendo mais relevância que a própria "resposta");
(2) o sujeito investigador aparece como acima e além do objeto investigado - e o objeto investigado é, por sinal, um sujeito histórico, mas isso parece lateral;
(3) a gramática revela uma forte forma de Estado, porque as questões políticas são colocadas em torno do Estado, como se a política fosse monopólio dele.
Pensando em relação ao primeiro ponto, podemos chegar ao postulado provavelmente mais precioso de Espinosa: Não rir, nem chorar, compreender [diante das ações humanas], algo que ele escreve logo no Primeiro Capítulo do Tratado Político e faz parte de uma precisa e rigorosa refutação do voluntarismo e do idealismo. Não devemos, ao refletir sobre determinado assunto, nos basear em premissas dadas e direcionadas para o julgamento, sem o risco de querermos enquadrar a nossa investigação a coordenadas prévias e estanques.
O pensamento moderno tradicional é, sobretudo pela influência pesada de Descartes e Kant, uma busca obsessiva pelo julgamento, o que na pós-modernidade ganha ares de vulgarização: tudo deve coincidir com uma separação do bem e do mal, o julgamento é uma proposição necessária a qualquer raciocínio lógico, a apoteose da política, do direito e da arte é sempre o juízo. Isso é um equívoco que Espinosa demonstra bem. O julgamento é uma possibilidade, não uma necessidade do pensamento. Ele se torna na medida em que o pensamento moderno laiciza postulados teológicos, principalmente aqueles ligados à escatologia, e o que era exceção se torna uma regra.
Na pesquisa em questão, existem algumas certezas de fundo, sobre itens que não são uma questão de escolha binária, mas essa linguagem acaba traduzindo a realidade e (i) se cria a expectativa de que o "pobre" responda entre X e Y; (ii) existe a predisposição a supor que X seja a "resposta normal" e Y "uma resposta anormal"; (iii) existem julgamentos que se derivam, seja em relação ao que é normal ou anormal responder, o que foi respondido e o que explicaria esses juízos. O exercício de escuta não funciona com um julgamento prévio. Os velhos romanos já sabiam disso, quando relativizavam a figura do julgamento mesmo no campo do direito, ao contrário dos modernos.
Sobre o segundo ponto, lembremos da grande revolução epistemológica que Marx promoveu em relação a Hegel. Parte daquilo que se chama de método da inversão. Se a realidade é mesmo um nexo de movimentos que se colidem, com um assumindo uma posição antagonista em relação ao outro, produzindo, assim, novos movimentos, não é possível que alguém esteja fora disso. Ocorre que o teórico não poderia estar alheio, acima ou intangível ao horizonte de eventos. Perceba a perversa e nada coincidente semelhança entre as palavras Teo (étimo que designa "deus" em grego) e teoria: isso parte da noção de que tanto a divindade quanto o processo de construção de conceitos são ligados à observação transcendente do caos, na qual o "teórico" é alguém isento de interferência da realidade material. Isso é impossível.
Quando alguém se presta a observar a realidade material, ele passa a fazer parte dela e precisa ter isso em mente, justamente para só a partir daí poder falar algo com o mínimo de objetividade. Se a realidade é movimento, nós somos movidos por ela também. Se um certo fenômeno é um movimento autônomo, o processo de observação e descrição dele está condicionado ao seu movimento (embora a recíproca seja verdadeira, as causas e a forma de observação o alteram em certa medida). No caso da pesquisa, a separação entre sujeito e objeto é estanque e clara. Existem nós e eles. Nem mesmo se o pesquisador fosse finlandês ele seria alheio à pesquisa no momento em que a realizou, imagine nesse caso.
Quanto ao terceiro ponto, lembraria Gilles Deleuze & Felix Guattari no Mil Platôs, ao diferenciarem que uma ciência de Estado não é apenas uma ciência que fala sobre o Estado, mas de um discurso que é estruturado para não chegar a outra conclusão que não essa. O mesmo vale para Antonio Negri e os autonomistas/operaístas italianos, os quais concluem que a imanência entre sujeito e objeto, no âmbito do trabalho e também da produção de conhecimento tem de ser levado às últimas consequências. E não poderia ser diferente.
Perceba, o resultado é uma pesquisa que parte de pressupostos pelos quais o "Estado" é necessariamente a instância própria da política, na qual "os pobres" necessariamente são quem pode ou não ser os agentes transformadores dessa "política" – que derivaria da necessidade, não do desejo - e que a instância eleitoral é o único caminho para a geração de direitos, sendo que investigar qual a postura desses pobres em relação ao Estado e, sobretudo, ao PT - ou algum outro partido de esquerda, como se isso fosse o único veículo transformador possível - seja a resposta que deve/pode mover as ações. Isso é esquemático demais, uma mecânica tosca como as velhas máquinas medievais.
IHU On-Line - Como analisa e avalia as interpretações feitas à esquerda e à direita dos resultados da pesquisa elaborada pela Fundação? Que pontos e discursos são destacados à esquerda e à direita?
Hugo Albuquerque - Em um primeiro momento é evidente que existe uma tentativa da "nova" direita brasileira de se aproveitar do resultado da pesquisa, forçando uma interpretação que seja favorável às suas teses, o que é em grande medida possível pela maneira claudicante como a investigação foi feita, inclusive por ela assumir na sua gramática e na sua estrutura uma linguagem conservadora - como se vê pela insistência em se basear em opiniões, e não no exame da realidade material e nas suas relações.
Isso me lembra um documento precioso chamado As Nove Teses da Oposição de Esquerda (ao Partido Comunista Francês), escrito também por Guattari nos anos 1960 (publicado no Brasil em uma coletânea de vários escritos dele chamada Psicanálise e Transversalidade), o qual antevia, com acerto digno de uma Cassandra, o fracasso do Socialismo Real e dos socialismos reformistas por pretenderem disputar com o Bloco Capitalista de acordo com os parâmetros desenvolvidos... pelo próprio Bloco Capitalista!
Evidentemente, e isso é uma questão lógica, você não consegue ser melhor do que alguém dentro dos parâmetros subjetivos estabelecidos pelo outro competidor. É um pouco disso que desfavorece uma certa linha hegemônica petista, exposta nessa pesquisa, mesmo face a argumentos ruins de um Instituto Liberal ou um outro colunista "liberal" da Folha, por exemplo.
O tragicômico é que nem mesmo assim os tais "novos liberais" se saem bem, mesmo retoricamente, sobre o que dizem a respeito da periferia. Ao contrário, o surto de popularidade dessa direita chegou ao ápice no ano passado, quando tudo convergiu para a derrubada de Dilma. Mas agora veio Temer e executou em grande medida as propostas que essa gente defendia, mas ele não tem popularidade alguma. Muitas vezes eu tenho a impressão de que vou abrir o jornal e descobrir que Temer está com popularidade negativa.
A própria nova direita brasileira não está conseguindo ser eficiente dentro dos seus parâmetros, das regras do jogo, que ela mesma definiu! A Guerra Fria brasileira, portanto, está em aberto. Essa nova direita brasileira, seja do alto das colunas de jornais de circulação nacional ou na militância de página de Facebook, está bem longe dos gatos-mestres da Ditadura Militar brasileira e prossegue tentando enquadrar a realidade num plano ideológico. Isso obviamente não se confirma porque é impossível: é quase um stalinismo de direita, o que não deixa de ser curioso na medida em que é exatamente essa a formação de muitos dos "gurus" desse campo.
Do ponto de vista dos intelectuais e acadêmicos de esquerda, eu li muita coisa, afinal a pesquisa despertou uma miríade de artigos de gente muito boa, mas eu acredito que há dois fantasmas que giram em torno do tema:
(1) uma falta de ênfase não apenas metodológica como também epistemológica em relação ao procedimento que levam a conclusões como essas - coisa que nos esforçamos para fazer no nosso artigo;
(2) o enorme tabu que é a questão da classe, seja porque nem sempre alguns pressupostos básicos da sociologia funcionam muito bem cá nos trópicos, seja porque, mesmo quando funcionam, eles nos joguem na cara o enorme apartheid com o qual convivemos quotidianamente - e que não conseguimos reverter.
A universidade tem um papel bastante salutar nesse processo de reprodução de um pensamento tradicional e padronizado enquanto, ao mesmo tempo, colabora para o alheamento da vida social no nosso país.
Sobre esses fantasmas, eu escrevi há quatro anos, quando tratei da classe sem nome, e vejo que de lá para cá não mudou muito: a questão da classe é o momento em que mesmo a intelectualidade que ousa pensar além se depare, ela mesma, com seus demônios interiores, seja no seu papel na sociedade ou do aparato conceitual que tem à mão - e nessa ânsia se reproduz um discurso que, muito embora seja bem intencionado, tem uma gramática tradicional, buscando mediante tipos sociológicos definir o que são os pobres - à época os tais pobres que estariam "ascendendo à classe média".
IHU On-Line - O que tem se entendido pelo termo “liberal” ao avaliar os resultados da pesquisa?
Hugo Albuquerque - Na pesquisa você pode verificar acepções confusas do termo "liberal". Uma delas bastante simplória, como oposta a "conservador" (no sentido de costumes), e na outra como postura contraposta à ideia do Estado como lugar central da política, o que é risível. Isso é um pouco da lógica binária que eu coloquei em cima, na qual ou você é partidário do Estado ou do Mercado - é uma lógica da qual comungam, em cenários opostos, muitos "socialistas" e "liberais" brasileiros. Uma incrível mistificação, obviamente, uma vez que não há Estado sem Mercado e vice-versa.
E se há uma coisa útil nessa barafunda chamada Lava Jato é, vejam só, demonstrar que isso que chamamos de "mercado" não passa do oligopólio de grandes proprietários, e o "Estado", o oligopólio dos grandes políticos, ambos em permanente negociação entre si, dentro, fora, abaixo e acima da lei. Quem se opõe ao Estado pode muito bem ser anarquista ou comunista como, ainda por cima, também o liberalismo não advoga o fim do Estado, mas sua relativização. O próprio "neoliberalismo", que a pesquisa vê de maneira até oposta ao "liberalismo popular", não decretou o fim do Estado em parte alguma, mas sim buscou direcionar os recursos comuns para construir grandes aparatos prisionais, policiais e aumentou brutalmente o empreendimento da Guerra.
Nas periferias brasileiras, nas quais as pessoas têm seus direitos suspensos ou relativizados, onde as pessoas são tratadas como objetos descartáveis, é natural que elas demonstrem opiniões nada afeitas ao Estado - que chega bastante lá na forma policial e repressiva. Quando pessoas da periferia defendem seu direito à propriedade não é manifestação de liberalismo, mas a constatação de que direito algum delas é respeitado, inclusive o direito a ter seu lar e suas posses em segurança. O liberalismo tupiniquim, contudo, só defende o direito à propriedade quando ele não é para os trabalhadores e pobres. Eu não compreendo como ceticismo ao Estado possa ser liberal. Não é; isso contradiz uma literatura básica.
IHU On-Line - Pode explicar o que foi a pesquisa de Eder Sader sobre a periferia paulista nas décadas de 70 e 80? Que resultados semelhantes ela teve em comparação com a pesquisa da Fundação Perseu Abramo e como os resultados foram tratados à época pelos setores progressistas?
Hugo Albuquerque - Eder Sader, que infelizmente nos deixou muito cedo, é um dos melhores exemplos de como o PT, em grande medida, era um partido mais atual no passado. E isso não tem nada a ver com uma idílica volta ao passado, ao "PT das origens" como imaginam algumas correntes e partidos que derivaram da sigla da estrela, mas sim o símbolo de um intelectual orgânico que já resolvia grande parte das confusões teóricas vistas nessa pesquisa: Sader tem uma sociologia ancorada na premissa de que ele não está lidando com objetos, mas com atores sociais e políticos ativos. Daí o título de sua principal obra ser Quando novos personagens entraram em cena - experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo 1970-1980 - de que você pode ler trechos no próprio site da própria FPA.
Ele não conduzia uma pesquisa baseado na clarividência de um investigador profético - e transcendente - face a meros objetos emissores de "opinião", mas na verificação de um processo de atuação de sujeitos históricos que pode ser observada por alguém, de forma incontornável, envolvido no processo - pela impossibilidade de estar alheio. Isso certamente é muito mais "moderno" do que fazer opiniometria à la sociologia americana sobre escolhas que não são binárias - o que tem mais a ver com processos nos quais as pessoas podem fazer escolhas objetivas como, talvez, uma eleição ou a escolha de produtos.
IHU On-Line - A pesquisa da Fundação Perseu Abramo demonstra, ainda que de modo geral, que os moradores da periferia paulista têm valores mistos, que incluem desde a valorização individual e do mérito, a ações coletivas e políticas públicas eficientes. Considerando esse resultado, quais são os desafios postos às políticas públicas e à atuação do Estado no sentido de garantir serviços que possam ser compatíveis com a autonomia dos cidadãos e garantir o bem comum?
Hugo Albuquerque - Como eu coloquei acima, é difícil concluir muita coisa a partir da pesquisa, diferentemente do que se pode concluir sobre a pesquisa ela mesma. A pesquisa fala mais sobre si mesma do que sobre quem buscou entender. O que esses ecos na forma de opinião demonstram é uma platitude: a priori, as pessoas desejam a própria liberdade. Quem não deseja isso? O que eu vejo é que não há nenhuma contradição nesses ecos. As pessoas querem uma sociedade mais forte, elas não nutrem muitas ilusões; ou melhor, nutrem tanto quanto todas as pessoas que moram nos bairros ricos nutrem. Mas a situação mais emergencial leva tanto a conclusões que podem ser impressionantes: uma lógica de solidariedade de guerra impressionante para quem mora em bairros ricos, e uma lógica pragmática igualmente assustadora para quem certa segurança material garante determinada "pureza" ideológica - mas isso vale tanto para certa parte da esquerda quanto para a nova direita, para os tais "liberais".
Hoje, um projeto político inovador passa pela defesa das multidões e depende de ser construído desde baixo. Não existe garantia de vida coletiva saudável sem se preocupar com os direitos individuais e vice-versa, é quase um axioma. Nenhum sistema durou muito tempo sem tentar equilibrar um pouco esses dois aspectos, vide os bolsheviks revolucionários que uniram a ação social à liberação dos costumes, o que só foi revertido pelo conservadorismo stalinista. Nada disso é novo, acredite.
IHU On-Line - A esquerda sempre manteve seu discurso político e social ancorado nos pobres. Quais os desafios de superar esse discurso e apostar no comum?
Hugo Albuquerque - A esquerda sempre manteve seu discurso assentado na ideia de um mundo diferente da modernidade burguesa. Evidentemente, não existe coincidência entre a necessidade de pobres e ricos ao funcionamento ou êxito nem de esquerda nem de direita, inclusive porque isso nem seria uma questão: como a maior parte das pessoas é pobre em relação à elite – e pobre é um conceito sempre relativo –, a direita não existiria porque fatalmente essa divisão seria dissolvida. Por que diabos existe desigualdade social então? Porque existe um jogo complexo de sujeição voluntária "dos de baixo" para "os de cima" – e também de violência “dos de cima” contra “os de baixo”. Sem o pobre que não acredita na sua necessidade de ser obediente para um dia ser rico, não haveria capitalismo. Sem ricos que desprezam sua vida confortável, dificilmente teríamos revolução também.
Direita e esquerda se derivam de fatos socioeconômicos, mas não se expressam puramente neles, pois a realidade socioeconômica em si é um dado objetivo, a política é uma coisa que surge num segundo momento, em cima das contradições sociais e econômicas, na qual a esquerda consiste, em apertada síntese, numa proposta de um mundo feito sem a exploração das pessoas, sem divisão e hierarquização social, econômica e política e, portanto, com universalização das condições de vida e de vida com qualidade. Não precisa ser pobre para ser de esquerda. Nem ser rico para ser de direita.
A recusa à pobreza é um devir, ser pobre não coincide com um devir pobre, eu devenho pobre quando experimento essa dor e quero transformar isso. Ser de direita pressupõe adotar esse fato como natural e, assim, buscar uma ordem do mundo na qual o sistema não deve se preocupar em universalizar essas condições de vida, onde, seja pelo deixar morrer ou pelo fazer morrer, você não tenha como diretriz básica a preocupação com a garantia da vida socialmente considerada.
Eu não preciso ser trabalhador para defender os trabalhadores. Eu não preciso ser negro para defender os negros. Eu não preciso ser mulher para defender as mulheres. Eu não preciso ser árvore para defender as árvores. Eu não preciso ser um animal para defender os animais. Ainda mais a pobreza, que é uma questão de existência precária, o que não é defendida em si (ou para si) pelo próprio pobre, nunca jamais diretamente salvo em casos de masoquismo. A esquerda tem por norte a alteridade, a luta por um mundo melhor, mesmo que determinada luta não seja a minha, seja a do outro. Isso não implica negar o indivíduo, mas entender que o próprio bem-estar dele depende do nexo de relações sociais, econômicas e políticas.
O devir-pobre não é necessariamente do pobre, ele pode levar um rico a romper com a sua classe e defender o interesse dos mais necessitados, do mesmo modo que um pobre pode se sujeitar voluntariamente e defender o interesse do patrão, denunciando colegas grevistas - não é porque alguém é pobre que defende o interesse político dos pobres (a regra, por sinal, é não defender, do contrário os pobres não seriam pobres!). Isso não tem a ver com o binômio consciência de classe/histórica e alienação, mas sim com uma questão de desejo. Tampouco você vai entender isso perguntando, "ei, amigo o que você acha de x ou y", mas com uma pesquisa séria de como o desejo, que ao meu ver e dos outros que se associaram nesse texto, se localiza, cria e destrói no interior do insano maquinário capitalista.
Uma nova esquerda precisa redescobrir isso, e entender que para ter o que oferecer, é preciso ter coragem e a capacidade de sair de um cômodo conservadorismo na prática, na linguagem, no pensamento. A atual situação é ruim justamente porque a esquerda busca se diferenciar aceitando a gramática, as coordenadas e até o modo da direita de fazer política, e, retornando às questões anteriores, obviamente ela vai continuar perdendo se repetir isso.
IHU On-Line - Como os setores progressistas, a esquerda em geral ou ao menos a nova esquerda que faz a crítica à esquerda petista, deveriam pensar o binômio Estado x mercado?
Hugo Albuquerque - Eu não sei como as pessoas devem ou não pensar algo, mas podíamos fazer um favor a nós mesmos saindo de dicotomias falsas. Estado e Mercado estão mutuamente implicados. Um não existe sem o outro. Como não existe também pobreza sem riqueza. O papel que eu defendo para a esquerda é o de romper essas relações perversas. A esquerda tem de ser o movimento da sociedade, em favor da sociedade, muitas vezes contra o Estado e o Mercado, que são instâncias interdependentes e hierárquicas que buscam gerir as nossas vidas. E a associação de moradores de bairro não é Estado, nem o comerciante da periferia é Mercado nesse sentido. Nem público nem privado, o comum. A Greve Geral do último dia 28 de abril prova que ainda há muito espaço para se fazer e se pensar.
IHU On-Line - Na última entrevista que nos concedeu, você comparou a Lava Jato à Glasnost e à Operação Mãos Limpas. Diante das últimas investigações e das últimas delações premiadas, em que praticamente todo o sistema político brasileiro é denunciado, como vê e avalia o andamento da Operação?
Hugo Albuquerque - De lá para cá a Lava Jato apenas confirmou o que eu disse, o que, infelizmente, implica dizer que ela só piorou e junto com isso piorou as coisas no país. O Brasil perdeu uma boa oportunidade de consertar algumas coisas, de coibir outras, dando um ar de disputa política e de forma enviesada. A maneira como Lula tem sido tratado é absurda: ano passado, falávamos da condução coercitiva ilegal que foi realizada contra ele, hoje é o fato de estar sendo obrigado a ouvir todas as dezenas de testemunhas que ele chamou em sua defesa, uma ameaça ilegal e intolerável à sua liberdade física.
Ao libertar ou amenizar penas de executivos corruptores, ser leniente com políticos de direita implicados e, ainda, excessiva - ou até abusivamente - dura com políticos à esquerda delatados ficamos num quadro tenebroso para o Direito, no qual uma operação que se pretende ao mesmo tempo investigadora, acusadora e julgadora nos conduz para um cenário de criminalização da política, sobretudo de esquerda.
Temos um problema de corrupção sistêmica e um dos principais procuradores da República a atuar no caso, de forma muito parcial e precipitada, procura dizer que o Lula é líder da quadrilha. Não, não é. Estamos falando de um esquema que tem décadas de existência e envolve políticos de praticamente todos os grandes partidos, conforme o apurado pela própria operação. É impossível Lula ter sido chefe dele quando era apenas um líder sindical ou líder da oposição.
Se Lula cometeu crimes, isso precisa, ainda, ser provado, mas ele precisa ter direito amplo à defesa, o que me parece que não tem sido observado. Isso me incomoda. Porque não se pode desperdiçar a oportunidade de deflagrar uma operação sobre um tema tão delicado e importante com tom inquisitorial e punitivo, ainda mais de forma enviesada.
O resultado ainda pode ser a eleição de um populista em 2018, se houver eleições até lá: do mesmo modo que tivemos Yeltsin na Rússia e Berlusconi na Itália. Ou isso ou uma tragédia pior com a extrema-direita. Uma solução para o país passa pelo desfazimento dos velhos oligopólios da construção civil, dentre outros, na criação de empresas menores e nesse momento na socialização de setores estratégicos - enquanto você democratiza decisões de um modo geral criando comitês da sociedade civil para verificar grandes obras, por exemplo.
Sim, eu continuo acreditando que a corrupção é um problema grave, mas só a resolveremos com democratização das decisões políticas, o que exige uma reforma nas nossas instituições políticas e um misto de fortalecimento/responsabilização da sociedade. Hoje as decisões são tomadas por poucas pessoas no silêncio de suas salas em palácios. É ilusório crer que isso vá mudar só com mais punição. A solução para a corrupção continua sendo mais democracia participativa e mais transparência, não uma lógica de julgamento ou desconstrução total - a "violência do nada" à qual eu me referia, que inclusive é tolerada por muitos políticos e intelectuais alternativos ou de esquerda.
IHU On-Line - Nos setores de esquerda muitos apostam no retorno de Lula à presidência em 2018. Como vê essa possibilidade de modo geral? Quais seriam as consequências disso para o país como um todo, para a política e para a própria esquerda e a nova esquerda que tenta se solidificar com a crise da esquerda petista?
Hugo Albuquerque - Lula certamente é melhor do que seria uma hipótese louca como a de Bolsonaro, ou de um neopopulista como um Doria. Lula foi o grande presidente da nossa breve experiência democrática, no entanto espera governar refazendo pactos e criando novos grandes acordos para transformar o momento em que estamos não no fim ou no colapso da Nova República, mas numa espécie de breve blecaute. Taticamente isso pode ser importante, mas tem de ser visto com certas ressalvas. Muitos avanços foram lentos demais nesses últimos anos justamente por falta de uma organização mais enfática da multidão, com tudo sendo feito pela lógica de conciliação dos grandes sindicatos e suas organizações. Tanto que muito daquilo que foi construído foi facilmente desfeito. E agora, a própria elite brasileira, que sempre preferiu negociar, resolveu, como no resto da América Latina, ir à luta de classes. O próprio cenário geopolítico é tenebroso e bélico.
Uma eleição pode ser suspensa ano que vem ou, simplesmente, não permitam que Lula seja candidato ou o derrubem assim que eleito. Lula pretende refazer os pactos em um país que teria saído dos trilhos, supostamente, por ter adotado a lógica do conflito, mas resta saber se é possível refazer esses pactos ou se é eficaz refazê-los, uma vez que existe a necessidade premente de reverter muitas das reformas que Temer fez.
Existe uma grande parcela de verdade na prudência política de Lula, mas também há equívocos importantes, tanto que estamos como país nessa situação e o próprio Lula sofre um bombardeio - não se pode esperar que alguém como Lula seja imprudente e se lance ao conflito aberto, mas se ele não tiver noção de que a lógica de conciliação tem um limite bem definido, estará ele mesmo perdido. Mas, independentemente da importância que possa ter uma candidatura Lula no atual contexto, não será a escolha do Presidente da República ou a presença de Lula lá que irão salvar a pátria ou eximir a responsabilidade da tarefa militante desde baixo.
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Mercado e Estado, dois oligopólios em permanente negociação entre si. Entrevista especial com Hugo Albuquerque - Instituto Humanitas Unisinos - IHU