25 Abril 2017
"Sabemos nada sobre as elites e muito pouco sobre as camadas médias. Nosso fetiche mesmo são os pobres", esclarece Rosana Pinheiro-Machado, cientista social, antropóloga e professora do departamento de Desenvolvimento Internacional da Universidade de Oxford, em artigo publicado por CartaCapital, 20-04-2017.
Eis o artigo.
Depois de ter lido que os valores da periferia eram “liberais” – e depois uma resposta de que, na verdade, a periferia apresentaria valores mais “anarquistas” – senti até vontade de escrever que, na verdade mesmo, a periferia era “comunista”.
Falaria de circulação de crianças, do compartilhamento de eletricidade, da recusa à subordinação ao patrão e dos processos de ajuda mútua. Eu citaria muitas teses para sustentar o argumento e também vivências e observações empíricas.
Seria um artigo consistente, mas menos honesto com a realidade complexa das periferias, as quais – assim como as camadas médias, enfatizo – são marcadas pela sobreposição relacional de valores e práticas liberais, conservadoras, comunistas, coletivistas, individualistas, violentas e generosas.
Mas este não é meu ponto aqui. Não é meu objetivo criticar os resultados da pesquisa “Percepções e valores políticos na periferia de São Paulo” divulgada pela Fundação Perseu Abramo (FPA)*.
Já existem críticas bem elaboradas e, é importante ressaltar, a FPA demonstrou-se muito receptiva para escutá-las.
O que quero, aqui, é fugir desse fogo cruzado que se abriu após a divulgação do relatório.
Eu escrevo mesmo para chamar atenção que, por trás do que se chama de “debate intelectual necessário” encontra-se uma cruzada narrativa perigosa, que precisa ser repensada urgentemente, pois seus resultados podem ser (se já não estão sendo) nefastos.
A disputa narrativa sobre “os pobres” é intelectualmente desestimulante, academicamente perigosa, politicamente ardilosa e socialmente ineficaz.
Explico: O debate é intelectualmente desestimulante, pois isola as periferias de um todo social e complexo. Coloca, então, os “pobres” em caixinhas e comprime diversas camadas interpretativas que merecem uma vida para ser compreendidas.
É também academicamente perigosa.Desde o século XIX, o pensamento classificatório evolucionista e desenvolvimentista persiste. É uma caça civilizatória. Isolar significa classificar. Classificar é sempre um ato de risco, especialmente quando envolve grupos humanos.
Nada novo nisso: a Antropologia foi fundada exatamente assim na Europa enquanto homens de gabinetes observavam as colônias e faziam tabelas classificatórias. A fórmula é simples, baseada em pesquisas superficiais e funciona bem: você hierarquiza valores, aos moldes do rumo que a democracia europeia seguiu, e depois aplica ao grupo que se “estuda”. Substituímos o gabinete pela pesquisa-drone (como diz a etnógrafa e ativista Lúcia Scalco, "vai lá conversa com as pessoas e tira uma foto de cima") ou menos pelas intermináveis mesas redondas.
Nessa cruzada narrativa, já cheguei a ler que as periferias teriam apenas o lado materialista do desenvolvimento: “eles” consumiriam produtos manufaturados, marcas, mas não teriam valores democráticos “liberais” e/ou a cultura civilizada mais sofisticada. Quase um barbarismo (barbarismo era um meio termo entre a civilização e a selvageria).
Já li isso da esquerda e da extrema direita. Talvez seja interessante lembrar que os escritores que dizem isso estão - enquanto tomam seu vinho, escutam Chico Buarque e mexem no seu iPhone – igualmente imersos em uma classe média consumista, contraditória e nem sempre democrática.
Enquanto isso, as camadas médias ficam surpresas com o comportamento dos homens brancos que, no impeachment, votaram por suas esposas, amantes, filhos e cachorros. Sabemos nada sobre as elites. E muito pouco sobre as camadas médias.
Nosso fetiche mesmo são os pobres.
A consequência desse processo classificatório e generalizante nada mais é do que processo de desumanização e objetificação da pobreza. E é Michel Foucault que nos lembra que conhecimento é poder.
Esse tipo de estudo, debate e discurso, no fim das contas, produz dominação. A disputa é ainda politicamente ardilosa. Nas últimas eleições, não foram poucos as/os analistas que apontaram o quanto a esquerda tinha se afastado da periferia. Insistia-se que era preciso ser menos arrogante no entendimento do papel das igrejas e do consumo.
Em São Paulo, o tucano João Doria ganhou com larga margem e, em muitas capitais, a rejeição dos candidatos de esquerda entre as camadas mais populares foi alarmante. Voltaram, inclusive, as narrativas de que pobre é manipulado e não sabe votar.
É provavelmente dessa derrota que surge o interesse em entender a periferia. Esse interesse é fundamental e precisa ser nutrido, mas a divulgação do relatório que aponta “valores liberais” não me parece um bom começo.
Quais os usos políticos que se fará desses achados baseados em uma pesquisa breve? Será inventado um candidato com uma linguagem renovada? Um candidato de esquerda modernizado e gestor?
Não acredito que chegue a esse ponto, mas traços dessa lógica provavelmente influenciarão no marketing eleitoral.
Estamos, enfim, dando subsídios para continuar a reproduzir uma das máximas de Tim Maia: o pobre é de direita. O que se ganha com isso? Os usos que podem ser feitos a partir desse tipo de conclusão são muitos, e nenhum deles é animador.
O gargalo da esquerda não reside simplesmente na comunicação, mas no seu próprio projeto despedaçado de esquerda, de nação e de futuro. Não precisamos inventar um candidato que saiba falar para os pobres: é preciso reinventar a esquerda e sua aproximação com a periferia – o que, noutro momento, chamei de periferização da esquerda.
É preciso estar lá, ouvir, entender, conversar e, mais do que apontar valores, pensar em soluções para demandas urgentes. Além de tudo, o debate é socialmente ineficaz.
É claro que entender os valores da periferia é um projeto intelectualmente nobre, especialmente no longo prazo e com uma visão menos fracionada da sociedade brasileira. É um projeto de compreensão da nação que sempre precisa ser criticamente refletido.
Mas nesse momento de crise, inferir valores da periferia me parece um tanto contraproducente, tanto socialmente quanto eleitoralmente. Nós precisamos é compreender necessidades e direitos. Muitas vezes quando a esquerda fala de direitos, ela fala de direitos que não necessariamente possuem apelo entre aqueles que estão sistematicamente fora do mercado de trabalho.
É preciso, portanto, deixar de lado a disputa narrativa por valores – esta sempre tão essencialista – e passar para uma agenda de demandas: nas periferias as pessoas precisam de água tratada, eletricidade, atendimento médico, dentistas para tratar as cáries, meio de transporte, escola, creche, lugares bonitos de lazer, dinheiro e, fundamentalmente, de respeito.
A lista é grande e não cabe a mim continuá-la. Batalha ideológica se disputa no campo, com militância motivada e capilar. E demanda tempo. Tempo para reconstruir a nossa maior lacuna, que não é compreender “os pobres”, mas a nós mesmos enquanto projeto de esquerda.
* É importante pontuar que a FPA e seus pesquisadores quiseram ir além do reducionismo das manchetes, mostrando que havia diversidade nos dados. No entanto, uma fundação política do calibre da FPA sabe muito bem o impacto de um release e precisaria ter administrado melhor o fluxo de informação anteriormente à divulgação, e não depois. Manchetes importam. Manchetes são arma
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A periferia liberal e os riscos da disputa narrativa “dos pobres” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU