21 Janeiro 2014
"Por que o fenômeno do rolezinho tornou-se o assunto mais falado no Brasil? Não tenho dúvidas de que é por sua capacidade de aflorar, acirrar e dividir opiniões sobre a questão de classes brasileiras somada à questão racial. Nos últimos dias, temos assistido a uma parcela da população brasileira apoiando esses jovens da periferia em seu exercício do direito de ir e vir. Mas também temos visto o oposto: uma vasta massa de pessoas de todas as camadas sociais destilar todo o seu preconceito de forma passional, nua e crua", escreve Rosana Pinheiro Machado, Cientista social, antropóloga e professora da Universidade de Oxford, em artigo publicado no jornal Zero Hora, 18-01-2014.
Eis o artigo.
Tenho ocupado uma posição privilegiada para assistir a esses comentários. Escrevi um artigo chamado Etnografia do Rolezinho, que se tornou viral nos últimos dias nas redes sociais. No olho do furacão, tenho dedicado minha atenção para ler e entender essas expressões espontâneas que são fruto da facilidade da comunicação via redes sociais.
Um dos aspectos que eu levantaria nesse universo difuso de opiniões é o engajamento de pessoas da própria periferia, rejeitando os rolezinhos e manifestando seu descontentamento de forma bastante preconceituosa, uma vez que é possível que grupos que sofram discriminação possam reproduzir o preconceito sofrido como uma forma de negociar a sua condição no mundo, como um alívio para a dor – ao bater no outro, livra-se do fardo. Assim, há uma parte das camadas populares (especialmente composta por trabalhadores que possuem uma condição um pouco mais emergente) que diz: “vai trabalhar vagabundo” ou “que tal uma enxada?” (se fosse um rolezinho de mulheres, certamente a palavra seria substituída por “vassoura”). Todavia, isso é apenas uma porcentagem difícil de quantificar, mas é certo que os grupos das periferias urbanas tendem a cada vez mais apoiar o rolezinho. O grande descontentamento, na verdade, vem de camadas médias e altas, que veem a sua paz ameaçada. Entre esses setores, a verbalização se torna um pouco mais violenta: pede-se por maior policiamento e que esses jovens “tomem pau da polícia”. No entanto, essas posições não podem ser generalizadas para nenhum dos lados: há muito apoio e solidariedade vindos de todas as camadas sociais.
Não é exagero dizer que o rolezinho é tão bom para pensar o Brasil quanto os protestos de junho de 2013. Muitos jovens que ora estavam reclamando da ação policial, agora estão pedindo para que a polícia “dê porrada”. A sociedade está mais dividida hoje do que naquela ocasião. E essa polícia tende a agir para um lado dessa divisão, para manter uma ordem particular e relativa. Nunca me esqueço de um policial que entrevistei em 2005 na fronteira Brasil-Paraguai. Perguntei se ele não tinha, às vezes, pena de algum pequeno comerciante que tivesse a mercadoria apreendida. Ele me olhou fundo e disse: “A gente aprende a ter ódio, ódio generalizado, ódio a todos os vagabundos”.
O que tenho visto no Brasil nos últimos dias é ódio e medo. Medo de uma massa supostamente desordenada, incontrolável. Ódio dirigido a uma camada “vagabunda” que deveria estar trabalhando. É claro que, nessa percepção, o fato de esses jovens terem dificuldade de entrar no mercado de trabalho – por não terem adequada qualificação, por terem sido rodeados de nãos de todas as ordens – não é levado em consideração. O tema da violência estrutural é pouco debatido. Poucos querem tentar fazer o esforço de se colocar no lugar do outro: de imaginar o que é uma vida de recusa diária marcada pelo tráfico, pela falta de professores e pela falta por saúde. Poucos querem fazer o esforço de imaginar como um pobre negro é tratado em um hospital. Idealmente, a vida dos livros e do trabalho é muito louvável. Mas quantos de nós conseguimos entender o significado do que um jovem do Morro da Cruz disse a minha colega de pesquisa, dra. Lucia Scalco: “Eu não tenho dinheiro para comer. Mas gastei 500 reais em um boné”. Lucia perguntou por que, e ele respondeu: “Eu sinto que o boné é uma capa de super-herói que me protege e me empodera”.
Hoje, após a repercussão, os rolezinhos são um movimento difuso e amplo, de diversão e de política. Porém, todos eles mantêm o shopping como um lugar central. Independente da intenção, o rolezinho só faz sentido no templo do consumo, no coração da sociedade capitalista. Nada disso é novo: os grupos populares brasileiros, desde a abolição da escravatura, sempre ocuparam espaços da cidade como forma de diversão investida de política.
Basta voltar às nossas produções acadêmicas clássicas, como a obra Os Bestializados, de José Murilo de Carvalho, que, por exemplo, retrata a violência do Estado para com os capoeiras no Rio de Janeiro no início do século 20. Em Porto Alegre, na década de 1940 e 1950, a prestigiosa Revista do Globo trazia frequentes matérias sobre os grupos “marginais” que tiravam a paz da população urbana que queria viver o sonho de uma cidade europeia, como comenta a historiadora Sandra Pesavento.
A marginalidade tem assumido múltiplas faces na história do Brasil, mas há algo de estrutural: ela é vista como algo fora do lugar, uma massa de vagabundos. Lembro ainda da antropóloga Eunice Durham e do sociólogo Chico de Oliveira, que nos mostraram que, em nossa história, criou-se a imagem de um Brasil moderno e desenvolvido, e de um outro, arcaico e subdesenvolvido. É possível ainda acrescentar: um, branco e de elite, outro, negro nas periferias. Esses “dois Brasis” não se tocam, mas, quando isso acontece, o primeiro lado usa de suas armas mais poderosas: a força policial que varre a tudo e a todos.
Não é minha intenção dizer que os capoeiras e o rolezinho são a mesma coisa na história. Seria uma comparação simplista, pois o século XXI nos apresenta um mundo mais globalizado e interconectado. Mas há uma estrutura que se repete ciclicamente. A novidade é que hoje temos a chance de discutir de forma mais aberta, rápida, cuspindo todo o processo de discriminação engasgado. Os jovens da periferia, se estavam interessados apenas em dar um rolê, agora estão se dando conta de sua força. E não têm se contentado em ser parte daquele Brasil arcaico, que se esconde longe dos olhos da população em sua cega zona de conforto.
Esses jovens querem ser vistos com sua capa de super-herói. Eles não querem ser reconhecidos por meio da exotização e da romantização da cultura popular, mas por uma apropriação singular dos símbolos mais altos do poder (as marcas) e dos espaços (os shoppings). O rolezinho é um alívio temporário capaz de transmutar exclusão em inclusão – inclusão ainda longe de ser de fato e de direito. Termos a consciência desse debate – ou fazer emergir o discurso social camuflado – é certamente o primeiro passo.
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O rolezinho é bom para pensar o Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU