31 Mai 2017
"A meritocracia fascina porque usa uma bela palavra: 'mérito'; mas como se serve dela e a usa de uma forma ideológica, distorce e perverte seu significado. Meritocracia, para além da boa fé de muitos que a invocam, está se tornando uma legitimação ética da desigualdade. O novo capitalismo através da meritocracia proporciona uma vestimenta moral para a desigualdade, porque interpreta os talentos das pessoas não como um dom; o talento não é um dom de acordo com esta interpretação: é um mérito, determinando um sistema de vantagens e desvantagens acumulativas", disse o Papa Francisco no diálogo com os trabalhadores e as trabalhadoras do grupo industrial Ilva, em Gênova, Itália, no último sábado, dia 27 de maio.
O discurso foi publicado pela Santa Sé, 27-05-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
1) O empresário Ferdinando Garré do distrito de Reparação Naval: Em nosso trabalho precisamos lutar contra tantos obstáculos – a burocracia excessiva, a lentidão das decisões públicas, a falta de serviços e infraestruturas adequados - que muitas vezes não permitem que seja liberado o que há de melhor desta cidade. Em nossa árdua jornada, contamos com o acompanhamento do nosso capelão e somos encorajados pelo nosso Arcebispo, o Cardeal Angelo Bagnasco. Apelamos a Vossa Santidade para pedir uma palavra de proximidade. Uma palavra que nos conforte e encoraje para enfrentar os obstáculos que todos os dias, nós empresários, precisamos enfrentar.
Papa Francisco: É a primeira vez que venho a Gênova, e estar assim tão próximo ao porto me traz a lembrança de onde partiu o meu pai... Isso me causa uma grande emoção. E agradeço pela sua recepção. Sr. Ferdinando Garré: eu sabia as perguntas de antemão, até escrevi algumas ideias para respondê-las; mas também estou com a caneta à mão para anotar qualquer coisa que me venha à mente no momento para acrescentar às respostas. Mas, sobre essas perguntas a respeito do mundo do trabalho, eu quis pensar bastante para responder a contento, porque hoje o trabalho está em risco. É um mundo onde o trabalho não é considerado com a dignidade que tem e que confere. Por isso responderei com o que eu preparei e com outras coisas que me ocorrem agora.
Eu faço uma premissa. A premissa é: o mundo do trabalho é uma prioridade humana. Portanto, é uma prioridade cristã, uma prioridade nossa, e também uma prioridade do Papa. Porque decorre daquela primeira ordem que Deus deu a Adão: "Vá, lavre a terra, trabalhe a terra e domine-a". Sempre existiu uma relação de amizade entre a Igreja e o trabalho, a partir de Jesus trabalhador. Onde há um trabalhador, ali há o interesse e o olhar de amor do Senhor e da Igreja. Penso que isso está bem claro. É muito interessante esta pergunta que vem de um empresário, de um engenheiro; de sua maneira de falar sobre a empresa emergem as virtudes típicas do empresário. E uma vez que esta pergunta e apresentada por um empresário, vamos falar sobre eles. A criatividade, o amor por seu próprio negócio, a paixão e o orgulho pela obra das mãos e da inteligência dele e dos trabalhadores.
O empresário é uma figura-chave de toda boa economia: não há boa economia sem um bom empresário. Não há uma boa economia sem bons empresários, sem a vossa capacidade de criar, criar trabalho, criar produtos. Em suas palavras, também se percebe a estima pela cidade - e se entende isso - pela sua economia, pela qualidade dos trabalhadores, e também pelo meio ambiente, o mar... É importante reconhecer as virtudes dos trabalhadores e das trabalhadoras. Sua necessidade – dos trabalhadores e das trabalhadoras - é a necessidade de fazer o trabalho bem feito porque o trabalho deve ser bem feito. Às vezes pensa-se que um trabalhador só trabalha bem porque ele é pago: este é um grave desrespeito pelos trabalhadores e pelo trabalho, porque nega a dignidade do trabalho, que inicia justamente em trabalhar de forma correta pela dignidade, pela honra.
O verdadeiro empresário - tentarei traçar o perfil do bom empresário - conhece os seus trabalhadores, porque trabalha ao lado deles, trabalha com eles. Não esqueçamos que o empresário deve ser, em primeiro lugar, um trabalhador. Se ele não tem esta experiência da dignidade do trabalho, não será um bom empresário. Ele compartilha os esforços dos trabalhadores e compartilha as alegrias do trabalho, de resolver os problemas em conjunto, de criar algo juntos. Se e quando ele precisa demitir alguém é sempre uma escolha dolorosa e ela não a faria se pudesse. Nenhum bom empresário gosta de despedir alguém de seu grupo - não, quem pensa que pode resolver o problema da sua empresa demitindo pessoas, não é um bom empresário, é um comerciante, hoje vende a sua gente, amanhã vende a sua dignidade – sempre passa por um sofrimento e às vezes desse sofrimento surgem novas ideias para evitar as demissões. Este é um bom empresário.
Lembro-me, quase um ano atrás, talvez um pouco menos, na missa em Santa Marta às 7 da manhã, na saída eu cumprimento as pessoas que estão por lá, e se aproximou um homem de mim. Ele estava chorando. Disse: "Eu vim para pedir uma graça: estou no limite e preciso declarar falência. Isso significa demitir cerca de sessenta trabalhadores, e eu não quero, porque sinto que estou demitindo a mim mesmo”. E o homem chorava. Este é um bom empresário. Lutava e rezava pelos seus funcionários, porque eram "seus": "É a minha família". Estes se preocupam...
Uma doença da economia é a progressiva transformação dos empresários em especuladores. O empresário não deve ser absolutamente confundido com o especulador: são dois tipos diferentes. O empresário não deve ser confundido com o especulador: o especulador é uma figura similar à que Jesus no Evangelho chama de "mercenário", em contraposição ao Bom Pastor. O especulador não ama a sua empresa, não gosta dos trabalhadores, mas enxerga a empresa e os trabalhadores apenas como um meio para conseguir lucro. Utiliza-se, da empresa e dos trabalhadores, para auferir lucro. Despedir, fechar, transferir a empresa não criar para ele qualquer problema porque o especulador usa, explora, "devora" pessoas e meios para suas metas de lucro.
Quando a economia é, ao contrário, ocupada por bons empresários, as empresas são amigos das pessoas e também dos pobres. Quando passa para as mãos dos especuladores, tudo fica arruinado. Com o especulador, a economia perdeu o rosto e deixou de enxergar os rostos. É uma economia sem rostos. Uma economia abstrata. Por trás das decisões do especulador não existem pessoas e, portanto, não se enxergam as pessoas que serão despedidas e cortadas. Quando a economia perde o contato com os rostos de pessoas reais, torna-se uma economia sem rosto e, portanto, uma economia cruel.
Devemos temer os especuladores, não os empresários; não, não temam os empresários, porque há muitos bons! Não. Temam os especuladores. Mas, paradoxalmente, algumas vezes o sistema político parece encorajar aqueles que especulam sobre o trabalho e não quem investe e acredita no trabalho. Por quê? Porque cria burocracia e controles no pressuposto de que os atores da economia são todos especuladores, e assim aqueles que não o são ficam em desvantagem e quem o é consegue encontrar os meios para burlar os controles e alcançar seus objetivos. É bem sabido que os regulamentos e as leis pensadas para os desonestos acabam penalizando os honestos. E, hoje, há tantos verdadeiros empresários, empresários honestos que amam seus trabalhadores, que amam a empresa, que trabalham ao lado deles para melhorar o negócio, e estes são os mais desfavorecidos por essas políticas que favorecem os especuladores. Mas os empresários honestos e virtuosos continuam, no final, apesar de tudo.
Eu gosto de citar a esse respeito uma bela frase de Luigi Einaudi, economista e presidente da República Italiana. Ele escreveu: "Milhares, milhões de pessoas trabalham, produzem e poupam apesar de tudo aquilo que nós inventamos para incomodá-las, atrapalhá-las e desencorajá-las. É a vocação natural que as impulsiona, e não apenas a sede de lucro. O gosto, o orgulho de ver a própria empresa prosperar, adquirir crédito, inspirar confiança a clientelas cada vez maiores e expandir sua infraestrutura constituem uma alavanca para o progresso tão poderosa quanto o lucro. Se assim não fosse, não haveria explicação de porque existem empresários que investem em sua própria empresa todas as suas energias e todo o seu capital para retirar muitas vezes lucros bem mais modestos do que poderiam facilmente obter com outros meios". Possuem aquela mística do amor...
Agradeço-o pelo que você falou, porque você é um representante desses empresários. Tenham cuidados, vocês empresários, e vocês trabalhadores também: tenham cuidado com os especuladores. E também com as regras e as leis que no final favorecem os especuladores e não os verdadeiros empresários. E, no final de tudo, deixam as pessoas sem trabalho. Obrigado.
2) Micaela, representante sindical: Hoje, fala-se novamente da indústria graças à quarta revolução industrial ou indústria 4.0. Bom, o mundo do trabalho está pronto para aceitar novos desafios de produção que tragam bem-estar. Nossa preocupação é que essa nova fronteira tecnológica e a retomada econômica e produtiva que, mais cedo ou mais tarde, irá acontecer acabe não trazendo consigo novos empregos de qualidade, aliás, venha a contribuir para o aumento da precariedade e dos problemas sociais. Hoje a verdadeira revolução seria justamente transformar a palavra "trabalho" em uma forma concreta de redenção social.
Papa Francisco: A primeira resposta que me vem em mente é um trocadilho... Você terminou com a palavra "redenção social", e eu pensei em "rendição social". O que eu vou falar agora é um fato real que aconteceu na Itália cerca de um ano atrás. Havia uma fila de pessoas desempregadas em busca de um emprego, de um trabalho interessante, trabalho de escritório. Uma moça me contou este fato - uma moça instruída, falava vários idiomas, o que era importante para a função - disseram para ela: "Sim, você pode servir...; serão de 10 a 11 horas por dia", "Sim, sim" - ela respondeu imediatamente, porque precisava trabalhar. “O salário inicial – eu acho que falaram, não quero cometer erros - fica perto dos 800 euros por mês". E ela disse: "Mas só 800 euros? 11 horas?". E o contratante - um especulador, não um empresário, um funcionário do especulador – respondeu-lhe: "Moça, olhe que trás de você tem uma longa fila: se não lhe agrada e só sair". Isso não é redenção, mas rendição!
Agora vou falar o que eu havia preparado, mas a tua última palavra me trouxe esta lembrança. O trabalho informal, irregular. Outra pessoa me contou que está trabalhando, mas de setembro a junho: é dispensada em junho, e recontratada em outubro, setembro. É assim que funciona... O trabalho informal.
Eu aceitei a proposta de participar desta reunião de hoje, em um local de trabalho e de trabalhadores, porque estes também são lugares do povo de Deus. Os diálogos nos locais de trabalho não são menos importantes dos diálogos que fazemos nas paróquias ou nos imponentes salões de conferências, porque os lugares da Igreja são os lugares da vida e, portanto, aqui se incluem também praças e fábricas. Alguém pode dizer: "Mas este padre, por que veio aqui? Ele que vá para a paróquia". Não, o mundo do trabalho é o mundo do povo de Deus: somos todos Igreja, todos povo de Deus. Muitos dos encontros entre Deus e os homens, de que tratam a Bíblia e os Evangelhos, ocorreram enquanto as pessoas estavam trabalhando: Moisés ouve a voz de Deus que o chama e revela seu nome enquanto cuidava o rebanho de seu sogro; os primeiros discípulos de Jesus eram pescadores, e são chamados por ele enquanto trabalham na beira do lago.
É muito verdadeiro o que você diz: a falta de trabalho é muito mais do que apenas faltar uma fonte de renda para poder viver. O trabalho é isso também, mas é muito, muito mais. Ao trabalhar nos tornamos mais pessoa, a nossa humanidade floresce, os jovens se tornam adultos apenas trabalhando.
A Doutrina Social da Igreja sempre considerou o trabalho humano como uma participação na criação que continua a cada dia, também graças às mãos, à mente e ao coração dos trabalhadores. Na terra há poucas alegrias maiores do que aquela que experimentamos trabalhando, da mesma forma que há poucas dores maiores do que as dores do trabalho, quando explora, esmaga, humilha e mata. O trabalho pode causar muito mal porque pode fazer muito bem.
O trabalho é amigo do homem e o homem é um amigo do trabalho, e por isso não é fácil reconhecê-lo como inimigo, porque se apresenta com uma pessoa de casa, mesmo quando nos golpeia e nos fere. Homens e mulheres nutrem-se de trabalho: com o trabalho estão "ungidos de dignidade". Por esta razão, ao redor do trabalho edifica-se todo o pacto social. Este é o cerne do problema. Porque quando não se trabalha, ou se trabalha mal, se trabalha pouco ou muito, é a democracia que está em crise, é todo o pacto social. É também neste sentido do artigo 1° da Constituição italiana, que é muito bom: 'A Itália é uma república democrática fundada no trabalho'. Com base nisso, podemos dizer que tirar o trabalho das pessoas ou explorar as pessoas com trabalho indigno ou mal pago, ou seja lá ou que for, é inconstitucional. Se não fosse fundamentada no trabalho, a República Italiana não seria uma democracia, porque o lugar do trabalho seria ocupado e sempre foi ocupado por privilégios, castas, rendas.
Devemos, portanto, olhar sem medo, mas com responsabilidade, para as transformações tecnológicas da economia e da vida sem resignar-nos à ideologia que está ganhando terreno em todos os lugares, que imagina um mundo onde apenas metade ou talvez dois terços dos trabalhadores terão emprego e os demais serão mantidos por um subsídio social. Deve ficar claro que o verdadeiro objetivo a ser alcançado não é uma "renda para todos", mas um "trabalho para todos"! Porque sem emprego, sem trabalho para todos, não haverá dignidade para todos. O trabalho de hoje será diferente do de amanhã, talvez muito diferente – basta pensar à revolução industrial, quando houve uma mudança; aqui também haverá uma revolução - será diferente do trabalho de ontem, mas deverá ser um trabalho, não uma aposentadoria, não aposentados: trabalho.
Quando a pessoa se aposenta na idade certa, é um ato de justiça; mas é contra a dignidade das pessoas fazer com que se aposentem aos 35 ou 40 anos, dando um cheque do Estado, e pronto. "Mas, eu tenho o que comer?". Sim. "Eu tenho condições de manter a minha família com este cheque?" Sim. "Eu tenho dignidade?" Não! Por quê? Porque eu não trabalho. O trabalho de hoje será diferente. Sem trabalho, é possível sobreviver; mas para viver, é preciso trabalhar. A escolha é entre sobreviver e viver. E é preciso trabalho para todos. Para os jovens... Vocês sabem o percentual de jovens com idade até os 25 anos, desempregados, que existem na Itália? Eu não vou dizer: procurem as estatísticas. E esta é uma hipoteca sobre o futuro. Porque esses jovens crescem sem dignidade, porque não são "ungidos" pelo trabalho que é o que confere dignidade. Mas o cerne da questão é este: um subsídio estatal, mensal que te permite manter uma família não resolve o problema. O problema deve ser resolvido com trabalho para todos. Penso ter respondido mais ou menos...
3) Um trabalhador em processo de treinamento promovido pelos capelães: Não raramente no ambiente de trabalho prevalecem a competição, a carreira, os aspectos econômicos enquanto o trabalho deveria ser uma oportunidade privilegiada para testemunhar e anunciar o Evangelho, deveria ser vivido adotando atitudes de fraternidade, colaboração e solidariedade. Perguntamos a Vossa Santidade conselhos para melhor caminhar em direção a esses ideais.
Papa Francisco: Os valores do trabalho estão mudando muito rapidamente, e muitos desses novos valores das grandes empresas e das grandes finanças não são valores alinhados com a dimensão humana e, portanto, com o humanismo cristão. A ênfase sobre a competição dentro da empresa, além de ser um erro antropológico e cristão, é também um erro econômico, porque se esquece de que a empresa é em primeiro lugar cooperação, assistência mútua e reciprocidade. Quando uma empresa cria cientificamente um sistema de incentivos individuais que colocam os trabalhadores em competição uns com os outros, talvez no curto prazo possa obter alguma vantagem, mas logo acaba minando o tecido de confiança que é a alma de toda organização. E assim, quando explode uma crise, a empresa se esfiapa e implode, porque não há mais nenhuma trama que a sustenta. Deve ser dito enfaticamente que esta cultura competitiva entre os trabalhadores dentro da empresa é um erro, e, portanto, uma visão que deve ser mudada, se quisermos o bem da empresa, dos trabalhadores e da economia.
Outro valor que é, na verdade, um desvalor é a tão apregoada "meritocracia". A meritocracia fascina porque usa uma bela palavra: "mérito"; mas como se serve dela e a usa de uma forma ideológica, distorce e perverte seu significado. Meritocracia, para além da boa fé de muitos que a invocam, está se tornando uma legitimação ética da desigualdade. O novo capitalismo através da meritocracia proporciona uma vestimenta moral para a desigualdade, porque interpreta os talentos das pessoas não como um dom; o talento não é um dom de acordo com esta interpretação: é um mérito, determinando um sistema de vantagens e desvantagens acumulativas. Assim, se duas crianças no nascimento nascem diferentes por talentos ou oportunidades sociais e econômicas, o mundo econômico vai ler os diversos talentos como méritos, e vai remunerá-los de forma diferente. E assim, quando essas duas crianças forem se aposentar, a desigualdade entre eles terá se multiplicado. Uma segunda consequência da chamada "meritocracia" é a mudança da cultura da pobreza.
O pobre é considerado um desmerecedor e, logo, um culpado. E se a pobreza é culpa do pobre, os ricos estão exonerados de ter que tomar alguma atitude. Esta é a velha lógica dos amigos de Jó, que queriam convencê-lo de que ele era culpado por sua desgraça. Mas esta não é a lógica do Evangelho, não é a lógica da vida: encontramos a meritocracia no Evangelho na figura do irmão mais velho na parábola do filho pródigo. Ele despreza o seu irmão mais novo e acredita que deve continuar sendo um perdedor, porque o merece; ao contrário, o pai pensa que nenhum filho merece as bolotas dos porcos.
4) Vitoria, desempregada: Nós, desempregados, percebemos as instituições não apenas distantes, mas madrastas, interessadas mais a um assistencialismo passivo do que a trabalhar duro para criar condições que favoreçam o trabalho. Sentimo-nos confortados pelo calor com que a Igreja está perto de nós e o acolhimento que todos encontram na casa dos capelães. Santidade, onde podemos encontrar a força para acreditar sempre em nós e nunca desistir, apesar de tudo isso?
Papa Francisco: É isso mesmo! Aquele que perde seu emprego e não consegue encontrar outro bom trabalho, sente que perde a dignidade, como perde a dignidade aquele que é forçado pela necessidade a aceitar empregos ruins e errados. Nem todos os trabalhos são bons: ainda há muitos empregos ruins e sem dignidade, no tráfico ilegal de armas, na pornografia, no jogo de azar e em todas as empresas que não respeitam os direitos dos trabalhadores ou da natureza. Quão ruim é o trabalho daquele que recebe muito para que não tenha horário, limites, fronteiras entre trabalho e vida porque o trabalho torna-se toda a vida. Um paradoxo da nossa sociedade é a presença de uma porção crescente de pessoas que gostariam de trabalhar e não conseguem, e outra que trabalham muito, que gostariam de trabalhar menos, mas não podem porque foram "compradas" pelas empresas. O trabalho, ao contrário, torna-se "trabalho irmão" quando ao lado dele existe o tempo do não-trabalho, o tempo da festa. Os escravos não têm tempo livre: sem o tempo da festa, o trabalho volta a ser escravista, mesmo que bem pago; e para poder fazer festa é preciso trabalhar. Nas famílias onde há desempregados, nunca é realmente domingo e as festas, por vezes, tornam-se dias de tristeza porque não há trabalho na segunda-feira. Para celebrar a festa, é necessário celebrar o trabalho. Um marca o tempo e o ritmo da outra. Eles andam juntos.
Concordo também que o consumo é um ídolo do nosso tempo. É o consumo o centro da nossa sociedade, e, portanto, o prazer que o consumo promete. Grandes lojas, abertas 24 horas por dia, todos os dias, novos "templos" que prometem a salvação, a vida eterna; cultos de puro consumo e, portanto, de puro prazer. É também esta a raiz da crise do trabalho em nossa sociedade: o trabalho é esforço, suor. A Bíblia sabia muito bem disso e nos relembra. Mas uma sociedade hedonista, que enxerga e quer apenas o consumo, não entende o valor do esforço e do suor e, portanto, não entende o trabalho.
Todas as idolatrias são experiências de puro consumo: os ídolos não trabalham. O trabalho é como o parto: há dores para que depois seja gerada alegria pelo que foi gerado em conjunto. Sem reencontrar uma cultura que valorize o esforço e o suor, nós não encontraremos uma nova relação com o trabalho e vamos continuar a sonhar o consumo de puro prazer. O trabalho é o centro de todo pacto social: não é um meio para poder consumir, não. É o centro de todo pacto social. Entre trabalho e consumo há tantas coisas, todas importantes e belas, que se chamam dignidade, respeito, honra, liberdade, direitos, direitos de todos, das mulheres, dos meninos, das meninas, dos idosos...
Se vendermos o trabalho ao consumo, com o trabalho logo venderemos junto todas estas palavras-irmãs: dignidade, respeito, honra, liberdade. Não podemos permiti-lo, e precisamos continuar a procurar trabalho, a gerar trabalho, a estimá-lo e amá-lo. Devemos até orar por ele: muitas das mais belas orações de nossos pais e avós eram orações de trabalho, aprendidas e recitadas antes, depois e durante o trabalho.
O trabalho é um amigo da oração; o trabalho está presente todos os dias na Eucaristia, cujos dons são o fruto da terra e do trabalho do homem. Um mundo que não conhece mais os valores e o valor do trabalho, não entende mais também a Eucaristia, a verdadeira e humilde oração das trabalhadoras e dos trabalhadores. Os campos, o mar, as fábricas têm sido sempre "altares" a partir das quais se ergueram belas e puras orações, que Deus recebeu e acolheu.
Orações proferidas e recitadas por quem sabia e queria rezar, mas também orações ditas com as mãos, com o suor, com o esforço do trabalho de quem não sabia rezar com a boca. Deus também acolheu estas, e continua a recebê-las hoje também. Por isso, eu gostaria de terminar este diálogo com uma oração: é uma oração antiga, "Vem, Espírito Santo", que também é uma oração de trabalho e para o trabalho.
Vem, Espírito Santo, e envia do alto do céu um raio da Tua luz. Vem, pai dos pobres,
Pai dos trabalhadores e das trabalhadoras, doador da divina graça, e luz dos corações.
És consolo e defensor, amável hóspede dos corações, e alívio incomparável. És descanso no trabalho, brisa no calor ardente e consolo na aflição. Ao sujo, lavai. Ao seco, regai. Curai o doente. Dobrai o que é duro, guiai no escuro, o frio aquecei. Dai, em premio ao forte, uma santa morte, alegria eterna. Amém Obrigado!
E agora, peço ao Senhor que abençoe todos vocês, abençoe todos os trabalhadores, os empresários, os desempregados. Cada um de nós pense nos empresários que estão fazendo de tudo para proporcionar empregos; pense dos desempregados, pense nos trabalhadores e nas trabalhadoras. E esta bênção recaia sobre todos nós e sobre eles. [Bênção] Muito obrigado!
Nota de IHU On-Line: Para ver a íntegra do encontro do Papa Francisco com os trabalhadores e as trabalhadoras em Gênova, em italiano, assista ao vídeo:
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Integra do encontro do Papa Francisco com o mundo do trabalho em Gênova - Instituto Humanitas Unisinos - IHU