Silêncio ensurdecedor confirma um insight central no papado de Francisco

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30 Mai 2017

O cardeal alemão Gerhard Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, teve recentemente coisas polêmicas a dizer sobre “Amoris Laetitia”, documento papal a respeito da família, e sobre diaconisas. O fato de poucos terem reagido confirma um insight central em relação ao Papa Francisco: o de que a sua rede de assessores informais é bem mais importante do que os organogramas vaticanos.

A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 28-05-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Existe uma velha questão filosófica sobre se uma árvore, que cai na floresta não havendo ninguém para ouvi-la cair, faz barulho ou não. De modo semelhante, podemos perguntar se um suposto peso-pesado vaticano polemiza e ninguém reage, será que ele realmente é um peso-pesado?

Essa pergunta faz sentido à luz de uma entrevista fascinante conduzida em 12 de maio com o cardeal alemão Gerhard Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – CDF, entrevista feita por Raymond Arroyo, do canal de tevê católico EWTN. A entrevista foi exibida na última quinta-feira.

No diálogo, temos muitos pontos interessantes, mas provavelmente o de maior valor noticioso são os comentários de Müller sobre “Amoris Laetitia”, documento papal sobre a família que pareceu abrir uma porta, ainda que de modo cauteloso, à Comunhão por parte dos fiéis divorciados e recasados no civil, e sobre a ordenação de mulheres ao diaconato, algo relevante dada a decisão do Papa Francisco de criar uma comissão para estudar a ideia.

Sobre Amoris Laetitia, Müller manifestou a frustração de que alguns bispos e conferências episcopais trouxeram interpretações contraditórias do que se afirma sobre a Comunhão.

“Não é bom que as conferências episcopais façam interpretações oficiais do papa”, declara o cardeal. “Isso não é católico. Temos este documento do papa, e ele deve ser lido no contexto da tradição católica completa”.

“Não temos dois magistérios, um do papa e outro dos bispos”, continua ele. “Acho que é um mal-entendido, um mal-entendido que causa danos, que pode causar danos para a Igreja Católica”.

No geral, o que permeia o comentário do prelado é a sugestão de que, lida à luz da tradição, “Amoris Laetitia” não autoriza, na verdade, uma abertura ao sacramento por parte dos fiéis divorciados e recasados.

Sobre o tema das diaconisas, Müller não sugere nada. Aqui ele foi tão direto quanto se pode ser: “Não. Impossível. Isto não vai acontecer”, respondeu.

“O Papa Francisco negou a possibilidade de diaconisas, mas disse que podemos estudar os documentos antigos para tirar alguma inspiração, de forma a promover o engajamento da mulher na Igreja de hoje".

"As pessoas de fora não entendem a missão da Igreja. Elas pensam que a Igreja é uma organização como as demais, e que nós temos de promover, num sentido geral, a emancipação da mulher, mas não se trata disso”, diz o religioso alemão. “Todos, dentro e fora da Igreja, precisam respeitar que ela não é uma organização política feita pelo homem, e sim o Corpo de Cristo”.

E eis o que faço notar: esta entrevista já está em circulação há quatro dias, e ninguém reagiu a ela. Não se vê nenhum tumulto, comentários fervorosos com interpretações e análises conflitantes. Até parece que a entrevista nunca foi ao ar.

Temos de concordar que a falta de reação aqui pode ser porque Müller deixou claríssimos os seus pontos de vista, e também porque as pessoas simplesmente estão cansadas de disputas aparentemente intermináveis em torno de “Amoris Laetitia”.

Mesmo assim, este silêncio ensurdecedor igualmente ilustra a forma como as coisas mudaram na era do Papa Francisco.

Certa vez, a terra era abalada quando os prefeitos da Congregação para a Doutrina da Fé se pronunciavam. Historicamente, essa congregação passou a ser conhecida como “la suprema”, ou o departamento “supremo” dentro do Vaticano, por ter a palavra final sobre temas envolvendo a doutrina – e visto que pouco há na Igreja Católica que não envolva, de alguma forma, a doutrina, tal dicastério tem uma amplitude de dar inveja.

Por exemplo, quando o Cardeal Joseph Ratzinger esteve à frente dela, de 1981 a 2005, antes de se tornar o Papa Bento XVI, tudo o que falava era percebido como carregando um peso enorme. Carreiras teológicas poderiam emergir ou quedar com base numa menção de feita por Ratzinger, e o sentido universal era o de que, quando ele falava, o peso todo do Vaticano e do papado ancorava-se atrás de do que dizia.

Isso não acontece no atual papado de Francisco, por que talvez não pôs de lado a Congregação para a Doutrina da Fé, porém certamente não se baseia nela como sendo a pedra de toque principal para avaliar as implicações doutrinais de suas decisões.

Quando Francisco quer uma avaliação teológica de algo, claro está que contará mais com assessores informais, como o arcebispo argentino Victor Fernandez, do que com Müller, o que faz parte da estratégia geral do papa em preferir trabalhar ao redor das pessoas que estão em plena sintonia com a sua agenda ao invés de formalmente ter de substitui-las.

Consequentemente, os analistas do Vaticano não mais supõem que, quando o prefeito da CDF se manifesta, está-se diante de uma diretiva papal. Ao invés disso, Müller se tornou mais uma voz no diálogo, alguém a ser respeitado pela posição ocupada e pelas credenciais teológicas, mas que certamente não é um canal direto para aquilo que o papa pode estar pensando ou planejando.

Se isso é bom ou não fica para o leitor decidir. Em todo caso, Müller e a sua mais recente entrevista são um bom exemplo para ilustrar algo característico do papado atual: olhar para os organogramas vaticanos e saber quem teoricamente manda aí pode garantir algumas análises apuradas, mas certamente não nos dirá muito sobre quem, de fato, está tomando as decisões.

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