17 Março 2017
Francisco tem enfrentado com êxito a oposição dos tradicionalistas e burocratas vaticanos, mas, na questão dos abusos sexuais clericais, ele parece enfraquecido.
A reportagem é publicada por The Economist, 16-03-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
A ilha de Guam, no Pacífico, está a mais de 12 mil quilômetros da Cidade do Vaticano. No entanto, foi nesse território remoto americano que, no mês passado, dois dos temas mais contenciosos que o Papa Francisco enfrenta – o escândalo de abusos sexuais clericais e a rebelião dos tradicionalistas – entrelaçaram-se. O Cardeal Raymond Burke passou dois dias em Guam presidindo o julgamento eclesiástico de Dom Anthony Apuron, acusado de molestar coroinhas. Este arcebispo é o clérigo católico do mais alto escalão a ser processado com base em acusações de abuso sexual. O caso pode durar anos. Burke, arquiconservador, é o mais destacado entre os críticos do papa.
O desacato à autoridade papal nos últimos meses por uma minoria de clérigos é o mais franco desde a década de 1970, quando o falecido arcebispo Marcel François Lefebvre recusou-se a dissolver a arquitradicionalista Fraternidade Sacerdotal São Pio X. Em fevereiro deste ano, funcionários vaticanos receberiam por email aquilo que parecia ser uma versão digital do jornal L’Osservatore Romano. Ao abrir, via-se uma reprodução perfeita ridicularizando aquele a quem os católicos têm como o representante de Deus na Terra. A manchete era “Ele Respondeu!” – referência sarcástica à recusa do papa em responder a uma carta escrita por quatro cardeais, incluindo Burke, em setembro passado (e, o mais estranho, a carta fora tornada pública for eles em novembro). A missiva desafia Francisco a afirmar que passagens em sua exortação apostólica, Amoris Laetitia (A Alegria do Amor), estão de acordo com a doutrina estabelecida [da Igreja]. Na edição falsificada do jornal, todas as quatro respostas eram “Sim e Não”. Dias antes, pôsteres apareceram em Roma convidando o papa – desrespeitosamente referido no dialeto romano como “Francé” – a dizer como a sua defesa intransigente da misericórdia seria compatível com o tratamento seco dispensado às instituições católicas incluindo a Cúria Romana.
Como demonstram os protestos, o descontentamento dentro da Igreja decorre de duas fontes e de dois campos sobrepostos. O primeiro é o obviamente mais conservador. Ele inclui os que, dentro e fora do Vaticano, buscam clareza e certeza na religião e pensam que as regras não podem ser alteradas sem se renunciar a essência do catolicismo. Estas pessoas estão aterrorizadas com o que consideram uma falta de interesse em teologia da parte do papa, e o seu abandono dos princípios em nome de uma exigência nebulosa da misericórdia.
No ano passado, Anna Silvas, pesquisadora australiana, acusou o papa de escrever “tratados de conselhos simples, sem sofisticação, avunculares, que poderiam ser dados por qualquer jornalista leigo sem fé – o tipo de coisa que se encontra nas páginas da Reader’s Digest”. A maior queixa destes conservadores é com Amoris Laetitia, que, numa nota de rodapé, abriu caminho para que alguns católicos recasados recebam o sacramento da Eucaristia, que, segundo a crença, é o próprio corpo de Cristo. Pesquisas de opinião sugerem que os fiéis na Europa e nas Américas apoiam irrestritamente a mudança. Porém os críticos veem esta alteração como a legitimação do adultério. Dificilmente eles concordarão com aquilo que Francisco disse mês passado, ao encorajar os padres em um encontro para que demonstrassem compreensão aos paroquianos que coabitam antes do casamento. Em 10 de março, o papa novamente aterrorizou os tradicionalistas ao dar a entender que a Igreja poderá ordenar homens casados para ajudar a diminuir a escassez aguda de padres.
Um segundo grupo – muito menor – de críticos compõe-se de clérigos do Vaticano, que não gostam do tratamento do papa dispensado às autoridades locais e aos funcionários. Não é segredo que o papa não tem muita simpatia pelo Vaticano. Como arcebispo de Buenos Aires, repetidas vezes se frustrava ao lidar com os burocratas em Roma. Logo depois de sua eleição,
Francisco formou uma equipe de cardeais para assessorá-lo na reforma da Cúria Romana, com a maioria deles sendo lideranças pastorais de fora dos muros do Vaticano. Agindo com base nas recomendações recebidas, Francisco criou dois novos “superministérios”, ou secretarias, um para as finanças vaticanas e outro para as comunicações, e fundiu seis ministérios menores em dois.
Por si só estas coisas já teriam rendido inimigos a Francisco, numa organização tão notoriamente resistente à mudança quanto a Cúria Romana. Mas é o estilo tanto quanto o conteúdo o que tem irritado alguns. Francisco, jesuíta, vem de uma ordem religiosa fundada por um ex-soldado, Santo Inácio de Loyola, que supriu a Contrarreforma com suas tropas de choque. Este primeiro papa jesuíta é um homem humilde e humorístico – mas também contundente e implacável. “O Santo Padre não é uma pessoa que lida facilmente com uma instituição”, diz uma fonte que tem testemunhado de perto a determinação intransigente dele.
No primeiro ano de seu papado, Francisco aterrorizou as autoridades vaticanas do alto escalão ao listar 15 doenças que se encontram em suas fileiras. Uma delas chama-se “alzheimer espiritual”. Mais recentemente, o papa interveio numa disputa entre as lideranças dos Cavaleiros de Malta, antiga ordem militar e religiosa. Embora não mais governem territórios (nem peguem em armas para defender os cristãos em países de maioria muçulmana), e em grande parte dediquem-se a obras de caridade, a ordem cavalheiresca ainda exerce a soberania que desfrutava quando governou a ilha de Malta. Ela possui muitas das características de um Estado, mantendo relações diplomáticas com mais de 100 países e contando com o status de observador na ONU. Juridicamente, a Ordem de Malta é separada da Santa Sé. Entretanto, em 24 de janeiro, Francisco exigiu obediência e a renúncia de seu grão-mestre. Mais tarde, nomeou um delegado para resolver uma disputa interna.
Quando Francisco espera resistência de insubordinados no Vaticano, ele se esquiva. O papa ordenou pessoas de fora para elaborarem alterações nas regras de anulação matrimonial (documento declarando que um casamento em momento algum fora válido; não se deve confundir com o divórcio, coisa que a Igreja não sanciona). Diz-se que o papa criou uma comissão para revisar as novas traduções dos textos litúrgicos, pondo de lado um relevante dicastério vaticano, liderado pelo Cardeal Robert Sarah, conservador.
O maior mistério em torno deste homem, que combina dureza e compaixão, é o motivo pelo qual não tem aplicado a sua tática franca à questão que muitos clamam por ação: abusos sexuais clericais. Esse problema é mais do que simplesmente uma questão moral. A prioridade de todos os líderes recentes da Igreja foi deter a secularização que se iniciou no coração da Europa e que se difundiu pelas Américas. No topo da lista dos motivos pelos quais muitos católicos abandonaram a Igreja é o desgosto pelas evidências cada vez maiores de estupros e assédios a menores cometidos por padres, práticas que vêm sendo repetidamente ignoradas, com efeito acobertadas, pelos superiores dos infratores. O Vaticano continua não exigindo que os bispos informem as acusações de abuso à polícia, a menos que estejam obrigados com base no direito civil (o que, em muitos países, incluindo a Itália, não é caso).
Em 2014, Francisco criou uma Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores. Desde então, circulam dúvidas quanto a sua eficácia. Um membro do grupo queixou-se de que a Comissão contava com recursos financeiros escassos. E no mês passado o grupo que o compunha sofreu um golpe que manchou a sua credibilidade, com a renúncia da única vítima de abuso remanescente nele, a irlandesa Marie Collins (a outra vítima, o inglês Peter Saunders, foi suspenso no ano passado). Collins disse que o que a fez decidir pela renúncia foi a resposta negativa de um departamento vaticano – a Congregação para a Doutrina da Fé – em responder a cartas enviadas pelas vítimas. Ela também falou sobre a Comissão estar sendo “dificultada e bloqueada por membros da Cúria”.
Duas das recomendações mais importantes feitas por essa Pontifícia Comissão não foram postas em prática. Deixou-se de lado um tribunal para lidar com casos de bispos acusados de negligência quando há acusações de abuso, e não se distribuíram orientações às dioceses sobre como prevenir, detectar e responder a abusos sexuais clericais. O Cardeal Gerhard Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, disse que a tal obstrução do Vaticano aos esforços em reduzir os casos de abuso sexual infantil eram apenas um “clichê”. Porém ele também falou que, em momento algum, havia se encontrado com Collins.
O Papa Francisco tem se esforçado em fazer com que a sua Igreja a leve em conta um mundo onde muitos católicos rompem com o magistério eclesial ao usar métodos contraceptivos artificiais e ao coabitar antes do casamento. Uma parcela cada vez menor compartilha a visão segundo a qual a homossexualidade é pecaminosa. Mas há o perigo crescente de que este pontífice possa ser lembrado menos como um reformador e modernizador valente, e mais como um papa que deixou de ser tão firme contra pedófilos predatórios e bispos cúmplices quanto o foi contra os conservadores no Vaticano.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O Papa é católico? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU