O sentido da oração do Pai-Nosso e do Pão-Nosso (Lc 11,1-13)

Foto: James Coleman | Unsplash

22 Julho 2022

 

"Para nós, hoje, a oração do Pai-nosso continua atual e necessária. Vivemos num mundo de injustiças sociais, econômicas e políticas. Maldades que brotam do desejo de vingança por desejar o que o outro tem. Rezar o Pai-nosso é se comprometer com um mundo novo, é tornar visível a santidade de Deus. É pensar no pão que alimenta nossas relações, mas, sobretudo, no pão que falta a milhões de filhos (as) de Deus mundo afora. Quantos não têm, pelo menos, uma refeição diária. Nem é preciso ir para o continente africano. África é Brasil! A situação atual do Brasil grita por justiça social", escreve Frei Jacir de Freitas Faria, OFM, ao comentar o Evangelho de Lucas (Lc 11,1-13). 

 

O artigo é de Frei Jacir de Freitas Faria, OFM, doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH), mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma e professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB), sacerdote Franciscano e autor de dez livros e coautor de quinze. YouTube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos.

 

Eis o comentário.

 

O texto sobre o qual vamos refletir é Lc 11,1-13. Trata-se da conhecida e familiar oração do Pai-nosso! Quando ainda éramos crianças, nossos pais nos ensinaram essa oração que Jesus ensinou aos seus discípulos e eles, aos nossos pais da primeira hora do cristianismo. Nesse movimento de fé, o Pai-nosso chegou até nós. Você sabe o significado do Pai-nosso? Que relação existe entre Pai e pão? Gostaria de saber? Então, vamos lá!

 

A oração do Pai-nosso foi conservada pelas comunidades de Mateus e Lucas. O texto de Mt 6,9-13 apresenta sete pedidos. Já o de Lc 11,2-4, cinco. O Pai-nosso é um resumo dos evangelhos. Os primeiros cristãos tinham o costume de rezá-lo três vezes ao dia. Os judeus rezavam suas orações próprias várias vezes ao dia. A grande novidade da oração do Pai-nosso não se refere aos pedidos, mas ao modo como Jesus se dirige a Deus, chamando-O de Pai nosso, demonstrando, com isso, o carinho e a proximidade com Deus que é Pai não só dele, mas de todos o que nele creem[1].

 

No livro do profeta Isaías encontramos a menção de Deus como Pai nosso (Is 63,15-16; 64,7-9), assim como nas orações feitas nas sinagogas, mas não como súplica. Jesus conhecia esse modo de falar de Deus, mas o faz em forma de oração de confiança e de proximidade. Abba, no aramaico, língua na qual Jesus rezou o Pai-nosso, significa “papai, papaizinho amado”.

 

Os três primeiros pedidos referem-se a Deus. O primeiro é que o nome de Deus seja santificado. Pode soar estranha tal petição. Deus, na visão judaica era considerado Santo, puro, inacessível, e que não suportava impurezas, pois elas podiam causar a morte de quem se aproximava de Deus sem se purificar ou estando em estado de impureza. Para Jesus, Deus é santificado entre nós, quando tornamos visível a marca da sua presença no meio de nós através de nossas boas ações de justiça, de solidariedade em prol da igualdade social. Santificamos o nome de Deus e Ele é santificado em nós. Isso fica mais claro no segundo pedido: “Que venha o teu Reino.” Jesus sabia que nele Deus reinou plenamente, mas como era difícil para os seus seguidores fazerem o mesmo, isto é, deixar Deus agir de forma soberana sobre eles. O reino de Deus se traduz em ações em prol da paz e da justiça, de modo que elas se concretizem.

 

“Seja feita a tua vontade sobre a terra como no céu” é o terceiro pedido referente a Deus. Jesus sabia quão tremendo seria aceitar a vontade do Pai. Ele mesmo, no momento de sua agonia espiritual, no monte das Oliveiras, suplica a Deus que afaste dele o cálice de morte, mas que o aceitaria por ser a vontade do Pai (Lc 22, 41-42). Fazer a vontade do Pai é pagar o preço da opção pelo reino, até mesmo com a própria morte.

 

Quatro são os pedidos referentes à vida terrena. O primeiro deles refere-se ao pão de cada dia, alimento que nos mantém vivos. Rezar assim é reconhecer o senhorio de Deus sobre todo o criado e suas criaturas. Ainda que tenhamos de tirar o pão da terra com o suor de nosso trabalho, ele é tão divino como o pão descido do céu (Jesus) que fortalece a nossa caminhada espiritual. Pai e pão duas palavras com o mesmo sentido. Lucas relaciona o pai com o pão. “Que pai/mãe deixa o seu filho passar fome?”

 

O segundo pedido referente ao ser humano, conforme a comunidade de Mateus, é o perdão de nossas dívidas. Lucas fala de perdão dos pecados. Dívida ou pecado são sinônimos, isto é, referem-se à mesma coisa. Quem peca é como quem não paga sua dívida, isto é, um devedor de amor ao próximo e a Deus. Daí que Jesus ensina que se Deus perdoa, eu também devo perdoar. Nisso está a santidade de Deus e a nossa.

 

O terceiro pedido vem em forma negativa: “Não nos deixe cair em tentação”. Seria Deus o autor da tentação? Seria a mulher que não resistiu à tentação do diabo, como pensavam os medievais? Nem um, nem outro. O melhor seria entender esse pedido a Deus de não nos deixar cair na provocação que vem do outro na relação pessoal e social. Cair na provocação e aceitar a proposta de sair do caminho de Deus. Somos tentados a seguir outros deuses, o do dinheiro, da fama, do orgulho, das falsas lideranças políticas e religiosas. Jesus venceu o tentador e nós também podemos fazê-lo. É uma luta sem fim, sem trégua.

 

Em seguida, vem o pedido de “livrar-nos do mal”, do malvado, do maligno. Não diria demônio, capeta, pois esse imaginário é muito perigoso e assustador, herança de uma pregação da Igreja que insistia na ida dos pecadores para o inferno do capeta que fedia a enxofre. Jesus não estava falando disso, mas das maldades que fazem parte da condição humana. O mal estará sempre presente no meio de nós. Há sempre um animal acuado dentro de nós. Caso não o dominemos, ele nos torna violentos como as suas garras animalescas.

 

Por fim, as fórmulas finais do Pai-nosso, o “Amém” e o “Pois vosso é o poder e a glória para sempre” foram acrescentadas posteriormente. Amém quer dizer “tudo isso é verdade”.

 

Para nós, hoje, a oração do Pai-nosso continua atual e necessária. Vivemos num mundo de injustiças sociais, econômicas e políticas. Maldades que brotam do desejo de vingança por desejar o que o outro tem. Rezar o Pai-nosso é se comprometer com um mundo novo, é tornar visível a santidade de Deus. É pensar no pão que alimenta nossas relações, mas, sobretudo, no pão que falta a milhões de filhos (as) de Deus mundo afora. Quantos não têm, pelo menos, uma refeição diária. Nem é preciso ir para o continente africano. África é Brasil! A situação atual do Brasil grita por justiça social. Supermercados estão vendendo pele de frango e osso para os empobrecidos.

 

Cresceu, nos últimos anos, a prisão por furto famélicos, isto é, empobrecidos que roubam para se alimentar. Que o Pai-nosso nos coloque no caminho da solidariedade, santidade! Que o Pão-nosso não nos falte! Termino com uma célebre pastor dos pobres, Dom Hélder Câmera, bispo de Olinda/Recife, fundador da CNBB, grande defensor dos pobres durante a ditadura militar no Brasil, morto em 1999. Uma das pérolas de sua profecia foi: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista!” Pense nisso ao rezar o Pai-nosso!

 

 

Nota:

[1] BIANCHI Enzo, O que diz o Pai-nosso? In: DORÉ Joseph (Org.). Jesus: a enciclopédia. Petrópolis: Vozes, 2020, p. 508.

 

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