18 Janeiro 2021
"Precisamente no deserto espiritual que a tecnocracia está criando, arrasando todo anseio de transcendência, Ellul está convencido de que o rio fecundante da oração deve fluir. Mas para que suas águas sejam puras, é necessário desmistificar "visões íntimas e tranquilizadoras de oração" e substituir "fundamentos frágeis" por sólidos, regenerando a linguagem", escreve Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 10-01-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
O poder da oração. Jean Carmignac e Alberto Sebastiani analisam a oração tão cara a Jesus: Para Jacques Ellul, em nosso mundo tecnocrático, a transcendência é um rio a ser seguido. Wittgenstein em suas notas de 1914-16 observava: “Orar é pensar no sentido da vida”. Kierkegaard foi ainda mais radical: “Os antigos diziam que rezar é respirar. Vemos, então, o quanto é tolo se perguntar um ‘por quê’. Por que eu respiro? Para não morrer. O mesmo acontece com a oração”.
No entanto, é preciso reconhecer que muitos em nossos dias cortaram este respiro da alma, nem se importam em "pensar no sentido da vida", por isso é raro ver mãos juntas ou os braços erguidos em sinal de oração. No entanto, o fluxo de textos dedicados a esse ato religioso universal não se extingue, até mesmo (aliás, talvez precisamente) neste período de pandemia: por exemplo, três teólogos, um austríaco, um italiano e um espanhol, questionaram-se recentemente sobre "repensar a oração em tempos de emergência” com um e-book.
No entanto, nós escolhemos uma trilogia dentro da bibliografia impressa, partindo de um pequeno clássico que apareceu em inglês em 1970 e em francês em 1971, e agora proposto em italiano pela editora protestante dos Gruppi Biblici Universitari. O título parece estranho, L’impossibile preghiera (A Oração Impossível, em tradução livre); o autor é uma importante figura da ensaística francesa, Jacques Ellul, nascido em Bordeaux em 1912, convertido à Igreja Reformada do judaísmo familiar, e falecido em 1994.
Professor de teologia, ética e direito, colaborador da célebre revista "Esprit" por incentivo do filósofo Mounier, vinculou seu nome aos três volumes de sua Ethique de la liberté (1968-94), um vasto afresco teológico da liberdade como libertação em Cristo, e a outro importante e feliz tríptico sobre a História das Instituições traduzido para o italiano pela Mursia.
Mas, sobretudo, sua figura tornou-se emblemática como precursor da comparação entre o dado teológico e a evidência sociológica, em particular com o nascente império da técnica que ele havia dessacralizado, revelando seu determinismo e a homologação antropológica. E é precisamente nesse contexto que a oração se torna aparentemente "impossível" e a alma fica sem respiro. No entanto, precisamente no deserto espiritual que a tecnocracia está criando, arrasando todo anseio de transcendência, Ellul está convencido de que o rio fecundante da oração deve fluir. Mas para que suas águas sejam puras, é necessário desmistificar "visões íntimas e tranquilizadoras de oração" e substituir "fundamentos frágeis" por sólidos, regenerando a linguagem.
Nessa operação catártica, o estudioso responde também a "todas as razões para não rezar", começando por aquela implícita, mas dominante em muitas pessoas: "é perfeitamente possível viver sem rezar". Assim, ele introduz a "única razão" que motiva a orar. À primeira vista ela é paradoxal, confiada a um mandamento de Cristo: "Vigiai e orai!". Não podemos e não queremos articular essa "razão" tão desconcertante em si mesma: só a leitura do quarto capítulo que é o coração do livro, com a sutileza de seus argumentos, o bordado das citações, a própria vivacidade do ditado, pode desdobrar o sentido desse ato que é tudo menos consolador ou devocional e mágico.
Não é à toa que o último capítulo é - na linha de uma antiga tradição espiritual que tem seu próprio arquétipo simbólico na luta do patriarca judeu Jacó com o Ser misterioso ao longo das margens do rio Jaboque (Gênesis 32: 23-33) - marcado da imagem da “luta” com Deus e até contra Deus.
Com razão, o ensaio - que vem acompanhado na edição italiana de uma introdução precisa da teóloga Elisabetta Ribet, que também contextualiza a proposta de leitura no horizonte da atual pandemia - é selado no final por um curto posfácio do pastor Jean-Sébastien Ingrand com o título emblemático Subir ao ringue da oração com Ellul.
Como se sabe, Jesus não se contentou em proclamar aquele apelo-mandamento, mas ofereceu também um modelo de oração, o "Pai Nosso", que nos chegou em duas versões evangélicas homogêneas em substância: Mateus, embora com a formulação mais semelhante à língua semítica original de Jesus, ele já reflete com seu setenário de perguntas acrescentadas sobre o uso litúrgico pela comunidade cristã primitiva (6,9-13); Lucas, por outro lado, segue a estrutura original com suas cinco invocações, mas o ditado se adapta ao provável mundo de matriz pagã ao qual se dirige principalmente (11,2-4).
Essa oração, que Tertuliano, o primeiro comentador da oratio dominica (a "oração do Senhor"), definia como o breviarium totius evangelii, tem sido objeto de infinitas análises. Merece uma menção particular o segundo volume da trilogia que estamos propondo, obra do francês Jean Carmignac (1914-1986), um dos maiores especialistas nos manuscritos de Qumran, descobertos em 1947 em 11 cavernas encravadas na costa oeste do Mar Morto, herança de uma comunidade judaica exterminada pelos romanos em 73 d.C. Ao "Pai Nosso" e à subjacente filigrana judaica, ele consagrou um ensaio imponente, fruto de sua tese de doutorado, que depois condensou em um livro que Antonio Garibaldi agora traduz para os leitores italianos.
O ponto principal para o estudioso (e para muitos) é a apresentação da sexta invocação: "Não nos deixes cair em tentação", que agora também a Conferência Episcopal Italiana melhor traduziu como "Não nos abandone à tentação". É interessante acompanhar todo o comentário de Carmignac, não só para entender sua versão daquela questão sobre a tentação (que foi objeto de uma acirrada polêmica com a tradução então adotada pela Igreja da França), mas também para respirar a atmosfera e quase ouvir o eco das palavras de Cristo com todas as suas conotações e alusões.
Nesse ponto, com o terceiro texto, damos um salto à frente, puxando e empurrando o “Pai Nosso” até a nossa secularizada e - como dissemos – pouco afeita à oração sociedade contemporânea. Além disso, Hemingway já o havia experimentado com uma sua quase blasfema transcrição, substituindo as palavras da oração evangélica por um terrível e personificado NADA: "O NADA, que estás no NADA ..." e assim por diante (em um de seus 49 contos de 1938).
Ainda que não tão agressivas, são surpreendentes as “reescritas civilizadas entre música e literatura” que o jornalista e professor Alberto Sebastiani recolheu com grande criatividade num evocativo livro. Com delicadeza interpretativa convoca textos e ideias de personalidades da cultura atual, atentas a registrar a sensibilidade contemporânea, sem perder o gosto da escavação textual: Erri De Luca, Vito Mancuso e também o cardeal português José Tolentino de Mendonça. Mas a surpresa está na convocação ao palco - depois de uma análise essencial, mas aguda do texto do "Pai Nosso" e da voz "espiritual" de Pasolini - de uma escolha inesperada de intérpretes.
Aqui está o cantor e compositor Vasco Brondi com o seu alienado "Engenheiro aeroespacial que estás no céu ...", uma espécie de pastiche com outras orações e um olhar provocador à "eternidade no YouTube". Aqui está também o rock alternativo do “Teatro dos Horrores” com um seu Pai Nosso, que cita integralmente, comenta e desconstrói as palavras de Jesus, neste caso olhando para o sofrimento do mundo. Por último, entra em cena o grupo folk rock dos Gang que, na esteira de Erri De Luca, invocam: "Marenostro escute por favor ...", com clara referência à tragédia dos migrantes no Mediterrâneo ("... peço-lhe, esta noite / não os afogue / Marenostro mare").
· Jacques Ellul, L’impossibile preghiera Edizioni GBU, Chieti, p. 192, € 14
· Jean Carmignac, Ascoltiamo il Padre nostro, Ares, Milano, p. 160, € 13
· Alberto Sebastiani, Padre nostro, Dehoniane, Bologna, p. 222, € 18
Consultar também:
· Kurt Appel, Massimo Nardello, Andrés Torres Queiruga, Dio dove sei?, Dehoniane, Bologna, p. 59, € 2,99 (e-book)
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O “Pai Nosso” revela o rosto luminoso de Cristo. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU