20 Junho 2019
"Do “Pai-nosso que estais nos céus” ao “pão nosso de cada dia”, permanece a prece aos céus: que haja menos injustiça e menos desigualdade social; que as pessoas sejam menos indiferentes em relação ao próximo; que o pão eucarístico seja para todos sem distinção; que não nos faltem o pão da esperança e o pão material para saciar a fome", escreve Carlos Rafael Pinto, mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE-BH) e graduado em Filosofia e Teologia pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES-JF).
“Pai-nosso...”, rezo em prece. O corpo cansado, fatigado pela labuta do dia. O suor resvala pelo rosto. Subo lentamente a escadaria. Entre um andar e outro, paro, apoio minhas mãos no corrimão. Todo meu corpo estaciona, ali. Suspiro e volto a subir os degraus. Entre um andar e outro, passos lentos e pesados.
Escadaria sem fim... “que estais no céu”. O último degrau? Ou o Senhor? Meu coração rompe a mudez de meus lábios: “Senhor, não vos esqueçais de nós, aqui, na terra!”. O dia-a-dia pesa sobre os ombros. Muita gente, como eu, saindo do trabalho passa pela igreja à espera de frescor, alento, poesia.
Faz-se memória do Corpo e Sangue de Cristo. Nessa quinta-feira, é diferente: no canto da rua, um tapete estreito e bonito se estende de uma igreja em direção à outra, que fica na outra rua. Tapete maravilhoso que parece uma colcha de retalhos. Cada retalho com um desenho diferente: hóstia, cálice, mãos postas, terço.
Muitas mãos fizeram esse tapete. Retalhos encharcados do suor do trabalho de tanta gente. Tudo preparado para a Solenidade de Corpus Christi: tapete na rua, altares ao longo do percurso entre as igrejas, o interior da igreja todo de branco, muitas flores e velas. Não cheguei tão cedo... senti o aroma do incenso, misturado à mirra.
Reencontro rostos já conhecidos do dia-a-dia nos finais de tarde. Porém, onde está aquela senhorinha? Aquela ao lado de quem eu sento ao fazer as minhas orações? Disseram-me que sua filha foi cruelmente assassinada. Erguem-se o pão e, depois, o cálice: pão da vida e cálice da salvação para todos. Erguem-se diante de nossos olhos, contudo, agora, não mais para a filha dela.
Tantos corpos assassinados... Quantos mais deverão ser assassinados? Jesus ofereceu seu corpo como pão e seu sangue como vinho, para inaugurar uma nova e eterna aliança. Quantos mais derramarão seu sangue? Os olhos umedecidos pela tristeza não esconderam a dor daquela senhorinha, no dia seguinte.
Corpos transitam para lá e para cá. Ônibus lotado e metrô também abarrotado, logo cedo, antes mesmo de a aurora despertar. Entre encantos e desencantos, a vida segue... E eu, aqui, volto a subir a escadaria: apoio as mãos no corrimão e estaciono o corpo. “O pão nosso de cada dia”, prossegue a minha prece e a de tanta gente.
Suspiro... continuo a subir os degraus. Passos pesados, lentos e determinados, assim subo de degrau em degrau. No intervalo, no tempo de um suspiro, vem à memória aquela quinta-feira, por um lado, vestida de alegres tapetes, toalhas brancas, flores, velas; e, por outro, atravessada pela tristeza da notícia do assassinato da filha daquela senhorinha.
Do “Pai-nosso que estais nos céus” ao “pão nosso de cada dia”, permanece a prece aos céus: que haja menos injustiça e menos desigualdade social; que as pessoas sejam menos indiferentes em relação ao próximo; que o pão eucarístico seja para todos sem distinção; que não nos faltem o pão da esperança e o pão material para saciar a fome.
Subo mais um degrau e, agora, atravesso lentamente a porta de acesso ao corredor. Eis que nem tudo está desvanecido. Estou próximo de meu lar. Carrego em uma das mãos uma sacola de papel e, em outra, um lindo pano de prato bordado com bico de crochê feito pelas mãos da filha daquela senhorinha, ao lado de quem sento para fazer minhas orações.
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Outro olhar: Pão nosso de cada dia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU