A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 2º Domingo do Tempo Comum, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto de João 2,1-11.
“Mas tu guardaste o vinho melhor até agora” (Jo 2,10)
Estamos ainda no espírito da Epifania, da manifestação de Deus em Jesus Cristo. A festa dos “Reis Magos” e do Batismo de Jesus formam, tradicionalmente, com as Bodas de Caná, a tríade da epifania.
O acontecido em Caná da Galileia é o começo de todos os sinais, e que se prolongará ao longo da vida de Jesus. A nova purificação não se fará com água que limpa o exterior, mas com vinho saboroso que transforma o interior do ser humano. O vinho-amor como dom do Espírito, é o que purifica, o único que pode salvar definitivamente.
O relato das Bodas em Caná sugere algo mais. A água só pode ser saboreada como vinho quando, seguindo as palavras de Jesus, é “tirada” de seis grandes talhas de pedra, utilizada pelos judeus para suas purificações. A religião da lei escrita em tábuas de pedra está exausta; não há água capaz de purificar o ser humano. Essa religião deve ser libertada pelo amor e pela vida que Jesus comunica.
As talhas estavam ali “colocadas” sem mobilidade alguma. Com isso denota a importância que elas vão ter no relato e seu caráter simbólico. O número seis (sete menos um) é sinal do incompleto. É o número das festas dos judeus que são relatadas no Evangelho de João. A sétima será a Páscoa.
As talhas eram de pedra, como as tábuas da lei, e estão significando a Antiga Aliança. A lei de pedra é sem misericórdia, sem amor (vazias, sem água e nem vinho). A lei é a causadora da falta de amor (vinho). Essa consciência de pecado era consequência da infinidade de preceitos, impossíveis de serem cumpridos. Jesus faz tomar consciência de que estão vazias; ou seja, que o sistema de purificação era ineficaz.
Em que consistiu o primeiro “sinal” realizado por Jesus, no evangelho de São João?
Mergulhando mais a fundo na cena damo-nos conta de que a água que Jesus transformou em vinho não era água para os usos domésticos ou, mais precisamente, para usos “profanos”; em outras palavras, não era “água para a vida” (beber, preparar refeições, lavar-se, regar...), mas era “água para a religião”. O Evangelho diz isso expressamente: “Estavam seis talhas de pedra colocadas aí para a purificação dos judeus; em cada uma delas cabiam mais ou menos cem litros”. Portanto, seiscentos litros de água, armazenadas em talhas de pedra. Expressa-se, assim, em linguagem metafórica, a enormidade e o peso da religião judaica; representa todo o sistema da observância ritual judaica, que impedia as pessoas viverem mais plenamente.
Jesus, na primeira oportunidade que teve, suprimiu a “água da religião” e transformou-a em vinho, no generoso “vinho da vida”, sinal da abundância de vida e do prazer de viver.
Definitivamente, o que Jesus quis dizer, mediante o primeiro dos “sinais” que realizou em sua vida, foi que a velha ordem religiosa havia terminado. A partir de então, Deus manifesta sua “glória” de outra maneira. Jesus traça e marca uma nova maneira de viver uma relação sadia com Deus, que não impõe, nem exige rituais religiosos e purificações sagradas. Em vez disso, Ele se comunica “na vida”, no prazer de viver, na alegria de saborear a vida e a festa, em tudo o que, de maneira espontânea, evoca o melhor vinho que nós, humanos, podemos beber neste mundo.
Jesus “dessacralizou” o templo, o sábado, o sacerdócio, as instituições religiosas judaicas, e “sacralizou” a festa como tempo e espaço de humanização. A “glória de Deus”, a partir de Jesus, não se manifesta mais no Templo, nos sacrifícios e nas solenidades litúrgicas, mas no prazer da festa e na alegria dos amantes que compartilham o melhor vinho. Isso é muito humano! E, exatamente por isso, é tão divino.
Jesus, ao se fazer presente em Caná, deu novo sabor e impulso vital (esperança, alegria) às bodas da história humana, passando da pura lei (cântaros de água de purificações) à vida intensa, ao vinho abundante, bom, saboroso, que ativa a alegria da festa; e tudo isso despertado pela sensibilidade de sua mãe Maria (ela é sinal da passagem, de caminho a ser feito para ir do Antigo ao Novo Testamento).
Muitas vezes manipulamos Jesus para continuar tendo à porta de nossas igrejas as “seis talhas de água das purificações” (proibições, normas, ritualismos, doutrinas...). Temos seis talhas de água parada, água de imposições e medos; falta-nos o vinho generoso da vida, para todos, para que a alegria se expanda e todo o mundo seja lugar de bodas. Muitos só conhecem uma “religião aguada”, não podem saborear algo da alegria festiva que Jesus contagiava; e continuarão se afastando das comunidades cristãs.
No entanto, Jesus revela uma presença original numa festa e sua mãe apresenta-o para que Ele seja a fonte de vinho, ou seja, do amor, de bodas para toda a humanidade.
Esta é a mensagem do Evangelho deste domingo, um dos textos mais belos da história da humanidade. O pano de fundo de todo o relato é a alegria de um homem e uma mulher que se vinculam no amor e querem que esse amor se expanda e chegue a todos, como amor feito vinho de festa e plenitude prazerosa.
O Reino de Deus se vincula, deste o Antigo Testamento, com banquete e bodas, como destacou uma tradição profética desenvolvida por Oseias e culminada no Cântico dos Cânticos. A vida é, antes de tudo, refeição festiva e amor. Não basta o pão, é preciso o vinho. Uma vida sem amor e sem prazer (vinho e bodas) seca, torna-se estéril, em meio ao círculo da violência, do ódio, da fome e da luta de todos contra todos. É necessário atualizar, com fidelidade criativa, o “sinal” que Jesus realizou para introduzir, em nossas vidas, a alegria do Deus-Pai festeiro; só assim, nossa vida se tornará mais ditosa e com mais sentido.
“Também Jesus e seus discípulos tinham sido convidados para o casamento”. Eles não se encontravam ali desde o início, mas chegaram de fora, para alterar e dar novo curso à festa, que estava correndo risco de se acabar, com a falta do vinho.
Só a chegada de Jesus e seus discípulos desvela uma grande carência. Só quando chega o Amor Maior, descobre-se a falta de amor. Chega Jesus e vemos que há pouco amor no mundo, que as pessoas vivem a pão e água, na dura batalha pela vida, sem poder saborear o bom vinho da alegria e da festa. Certamente, o texto alude a uma falta material de “vinho”, mas é claro que o relato alude a outra carência mais profunda. Não é que só tenha acabado o pouco de vinho; não é que seja questão de ter mais ou menos vinho. Acabou o amor e a solidariedade; acabou o vinho porque alguns beberam demais, acumularam e desperdiçaram tudo. Acabou o vinho (o pão, o vinho, o prazer da vida) porque alguns fizeram a opção pela morte, pelo ódio, pela destruição e divisão; dessa forma, o mundo se transformou em lugar de opressão, de mentira, de festas mortíferas. Esta simples expressão – “eles não têm mais vinho” – é a crônica de um fracasso.
A presença de Jesus e seus discípulos na festa de casamento evoca a chegada de um novo tempo para a nova comunidade dos seus seguidores(as). Jesus, em sintonia com o Pai festeiro, se revela, antes de tudo, como um “animador de bodas”. Não vem cobrar ou impor, mandar ou proibir. Vem com os seus para oferecer bodas ao mundo, bodas festivas, carregadas de amor. Jesus e sua nova comunidade são presenças de bodas: querem que os homens e mulheres possam celebrar suas bodas com bom vinho em todos os tempos.
As “talhas das purificações” não são algo do passado. Elas ainda continuam fazendo parte de nossa vivência cristã, marcada pela superficialidade e exterioridade, feita de ritos, moralismos, cansaços, normativas... e que não deixam que o bom vinho Reino se expanda e tenha acesso às dimensões mais profundas do nosso ser. Pois bem, segundo seu evangelho, Jesus nos quer portadores do vinho da festa, animadores da celebração, prontos para o baile, o encontro, o abraço, a vivência do amor, a comunhão. Esta é a imagem que deveríamos revelar ao mundo de hoje.
- Sua vida cotidiana tem a marca do “vale de lágrimas” ou do “vinho saboroso da alegria”?
- Sua presença na comunidade cristã deixa transparecer o “melhor vinho” que brota do seu interior?