22 Janeiro 2021
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 3° Domingo do Tempo Comum, ciclo B do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto de Mateus 1, 14-20.
“O tempo já se completou” (Mc. 1,15)
Não há filósofo que se preze que não lhe tenha dedicado parte de sua reflexão; não há poeta que não o cite em suas obras; não há namorado(a) que não pense que ele “voa”; não há político que não o utilize em suas promessas; não há pregador que não o faça aparecer em seus sermões; não há ser humano que não sinta sua passagem. Estamos falando do “tempo”.
Tem-se dito tantas coisas sobre o tempo...: que “ele tudo cura”, que “temos todo o tempo do mundo”, que “é preciso fazer as coisas a tempo”, que “há um tempo para cada coisa”, que “não podemos apressar o tempo”, que “o tempo passado foi melhor”...
Quando falamos de tempo, não estamos nos referindo, necessariamente, ao tempo físico, ao tempo cronometrado (“chronos”). Esse tempo não é o mais importante. O verdadeiramente importante é o tempo psicológico, o tempo interior, o tempo espiritual, o tempo tal e como nós lhe damos valor.
A Bíblia não concebe o tempo como uma entidade abstrata, vazia, quantitativa, irreversível e retilínea, medida por anos, dias, horas, minutos e segundos, dentro do qual tudo é contido e tudo acontece.
A ideia bíblica de tempo é algo concreto, vivo, experimental e qualitativo, que incorpora os seres e as coisas, marcado por eventos significativos...
A mentalidade judaica considerava que a natureza do tempo presente era determinada tanto pelos atos de salvação de Deus no passado (Êxodo), quanto pelos atos de salvação de Deus no futuro.
Os profetas tinham a tarefa de contar às pessoas o significado do tempo específico no qual estavam vivendo, em vista do novo ato divino que estava prestes a acontecer.
Este acontecimento futuro iminente qualifica o tempo presente, dá sentido à totalidade da nossa vida no presente e determina aquilo que deveríamos estar fazendo. Se o tempo presente é inteiramente inspirado e qualificado por este ato novo e sem precedentes de Deus, então o próprio tempo presente é tempo totalmente novo, nova era.
Cada coisa, ao ter seu próprio tempo, está numa relação de parceria com outros tempos e outras coisas.
Há uma constante vinculação do tempo ao “ser e acontecer de cada coisa”. Isso porque o tempo é “carregado” da presença de Deus, que continuamente trabalha, realizando a salvação.
É o “Kairós”, tempo de salvação.
Com Jesus chega um “novo tempo”, um tempo decisivo para a história da humanidade.
É Deus quem irrompe de maneira definitiva na temporalidade. A partir desse momento, a história fica dividida em dois tempos: o anterior e o posterior ao nascimento de Jesus.
Desta maneira, o Senhor do tempo faz de Jesus o centro e o ponto de referência do tempo dos homens. Todos os acontecimentos do mundo, tanto passados como futuros, encontrarão sua localização e sentido a partir do “tempo central”, que é o tempo de Jesus.
Jesus vive cada momento numa relação completamente livre com o tempo.
Com os olhos fixos na “Hora do Pai”, Jesus mostra com sua mobilidade que, participando no tempo humano, não se deixa prender pelas ataduras da preocupação, da ansiedade, da pressa...
O tempo de Jesus é kairós, presente, dom, tempo de salvação. É a plenificação de todos os tempos.
É o “tempo esgotado”, capaz de abarcar todas as dimensões da vida e da história.
Jesus acomoda seu tempo ao “tempo de Deus, avança sem pressa nem inquietude e busca viver com alegria e prazer cada momento como um dom inesperado.
É no movimento do “Kairós” de Jesus que acontecem o chamado e o seguimento; por isso, Marcos situa o encontro com os primeiros discípulos nesse momento denso, decisivo, inspirador. É no interior do kairós que o Reino vai se expandindo, e movendo a história em direção à sua plenitude.
Todos carregamos uma certa visão pessimista que desvaloriza o tempo: vemo-lo como efêmero, passageiro, finito, caduco e, inclusive, como ilusório.
Também existe entre nós uma certa concepção que pretende reduzir toda realidade a tempo, a mero tempo; na maioria dos casos, tempo desabitado, sem presença, sem sentido e sem abertura ao futuro.
Outros colocam um preço no tempo: “time is money”. Muitas pessoas, pressionadas pela agenda desumana do ativismo, não conseguem dar um sentido existencial àquilo que fazem. Nada detém o tempo. Sua dinâmica não se submete a nenhum controle humano. O tempo corre como as águas de um rio. Arrasta tudo.
O “tempo novo”, tal como o vive Jesus, é original em cada um de seus momentos, e em nenhum caso torna-se banal. O Pai se mostra propício na temporalidade, e por isso a atitude de Jesus é a de descobrir em cada um dos momentos e dos acontecimentos o dom de seu Pai.
Cada tempo particular é sinal de um Deus benevolente e deve ser acolhido com gratidão.
A pressa descontrolada, o ritmo frenético, o estresse, a antecipação dos acontecimentos, a impaciência diante do desejado, a falta de respeito pelo tempo interior das pessoas,.., são atitudes que caracterizam o ser humano pós-moderno, mas que estão ausentes na pessoa de Jesus.
A liturgia cristã nos diz que estamos no “tempo” para tomar consciência de nosso verdadeiro ser e descobrir que estamos já na eternidade, que nosso verdadeiro ser não está no “chronos”, mas no “kairós”. Seremos cada ano mais jovem se formos cada dia mais livres. Nosso verdadeiro ser é constituído do divino que há em nós, e isso é eterno. Não precisamos esperar nada, pois já somos a plenitude e estamos na eternidade. Sem a eternidade da “alma” que pulsa em nós, que nos unifica e nos integra por inteiro, a vida se empobrece. Na “alma”, no nosso interior, o eterno tem seu templo.
Quando alguém fala de “coisas” eternas, bem que poderíamos olhar para dentro de nós mesmos. Aí, no nosso interior, há tanto de eterno. A eternidade dialoga com a gente, fala por dentro.
Talvez ainda somos a onda que ainda não se despertou de que é oceano. Estamos mergulhados no “hoje eterno” de Deus e isso ilumina e dá sentido a cada gesto, cada ação, cada encontro.
Kairós: eis que irrompe a eternidade – eterna idade. Nesse sentido, a própria eternidade é sentida como o fluir de um presente sem fim, dom para ser vivido a cada instante.
A espiritualidade cristã, marcada pelo “tempo” de Deus, pode nos ajudar a fazer a “passagem” do “tempo insensato” (sem sentido) ao “tempo sensato” (com sentido). Tal espiritualidade é uma boa notícia com respeito ao modo de “estar no tempo” e nos introduz na dinâmica da vida que se abre às surpresas do “Senhor dos tempos”. Jesus irrompe em nossa história e nos coloca diante de uma decisão inadiável e única que marca de maneira definitiva nossa existência: “convertei-vos e crede no Evangelho!”
Encontramo-nos mergulhados no tempo da história, levados e sustentados por Deus, “Senhor do tempo”, que nos fala no tempo, comunica-se a nós no tempo, nos conduz no tempo, nos perdoa no tempo, nos convida a trabalhar com Ele no tempo...; no tempo, Ele nos sacode e nos interpela, no tempo, Ele nos capacita para anunciá-Lo e transformar o mundo segundo seu desígnio original.
Por isso, o transcurso do tempo, longe de se constituir um peso, é um grande aliado de nosso desejo, de nossa vida e de nossa fé.
Tempo é vida e a vida é feita de tempo: ordenar seu uso nada mais é do que ordenar a própria vida, dando-lhe sentido e direção. A maneira como cada um assume o tempo determina a forma como direciona sua vida.
- Você vive o tempo como dom ou como “inimigo” a ser derrotado? Seu estilo de vida é agitado, sempre de olho no relógio, em permanente estado de ansiedade, ou é marcado pela gratidão que descansa?
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O tempo de Jesus: um tempo novo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU