19 Janeiro 2018
Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 3º Domingo do Tempo Comum, 21 de janeiro (Mc 1, 14-20). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Cada um de nós, especialmente se for idoso, mas não afetado pela demência senil, muitas vezes vai com suas memórias ao passado, em particular àquele que foi o início, o começo de um caso, de um amor que o marcou por toda a vida e que ainda o faz vibrar.
O cristão também faz essa operação de buscar no passado, quase para reviver a hora da conversão; ou, melhor, para muitíssimos, a hora da vocação, quando nos tornamos conscientes com o coração de que talvez um aviso nos era dirigido, que talvez o Senhor queria que estivéssemos envolvidos na sua vida mais do que estávamos até então. Nós a chamamos, justamente, de hora da vocação.
A página do Evangelho deste domingo, em que voltamos a escutar o Evangelho segundo Marcos, quer ser precisamente um relato de vocação em que aquele que predispõe tudo para escutar o chamado de Jesus pode se espelhar, ou pode ser a oportunidade para lembrá-la como um evento do passado, que ainda pode ter ou não ter mais força, até mesmo significado.
Jesus volta para a Galileia, a terra da sua infância, para começar a proclamar uma mensagem que sentia dentro de si como uma missão da parte de Deus Pai. Ele começa essa vida de pregação e de itinerância depois que João, o seu rabi, o seu mestre, aquele que o educou na vida conforme à aliança com Deus e também o imergiu nas águas do Jordão (cf. Mc 1, 9), foi posto na prisão por Herodes, reduzido ao silêncio, ele que era “voz” (cf. Mc 1, 3; Jo 1, 23).
É o fim de quem é profeta, e Jesus logo se encontra diante disso como necessitas humana: se ele continuar no caminho do seu mestre, mais cedo ou mais tarde, conhecerá a perseguição e a morte violenta.
Jesus começa a proclamar a boa notícia, o Evangelho de Deus, na consciência de que o tempo da preparação, para Israel tempo da espera dos profetas, que o tempo da paciência de Deus atingiu seu cumprimento, como o tempo de uma mulher grávida. No fim da gravidez, há o parto, e assim Jesus anuncia: “O tempo já se completou e o reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho”.
Eis a síntese da sua pregação: há o início de um tempo novo em que é possível fazer Deus reinar na própria vida; para que isso ocorra, é preciso se converter, voltar para Deus e depois crer na boa notícia que é a presença e a palavra do próprio Jesus. É apenas um breve versículo que expressa essa novidade, mas é o início de um tempo que dura ainda hoje e aqui: é possível que Deus reine sobre mim, sobre você, sobre nós, e assim o reino de Deus vem.
Agora, graças à presença de Jesus, à sua vida e à sua palavra, é possível que cada pessoa deixe apenas Deus reinar sobre si, não os ídolos ou outros mestres. Mas, para que isso ocorra, é preciso a fé: “Creiam, tenham fé-confiança!”. Essa palavra de Jesus, capaz de sacudir, hoje como então, os corações adormecidos, é dirigida a nós que sempre somos tentados a confiar nas nossas obras, acabando, assim, por esvaziar a fé. A nós que perguntamos: “O que é que devemos fazer para realizar as obras de Deus?” (Jo 6, 28), Jesus responde: “Creiam!”, para nos ensinar que “a obra de Deus é que vocês acreditem naquele que ele enviou” (Jo 6, 29).
Sim, que o cristão nunca se esqueça que as muitas obras boas são sempre obras “nossas”, mas todas encontram a sua raiz vivificante e o seu sentido na única obra de Deus, a fé. “Tudo é possível para aquele que crê” (Mc 9, 23), dirá Jesus com força...
Diante dessa alegre notícia, mas também dessa nova possibilidade oferecida pela presença de Jesus, estamos nós, homens e mulheres que ainda hoje escutamos o Evangelho. O que fazemos? Como reagimos? Talvez estejamos vivendo cotidianamente, voltados ao nosso trabalho, à nossa ocupação cotidiana para ganhar a vida, pouco importa qual seja; ou estamos em um momento de pausa; ou estamos conversando com outros...
Não há uma hora pré-estabelecida: de repente, no nosso coração, sem que os outros se deem conta de nada, acende-se uma pequena chama. “Quem sabe? Ouço talvez uma voz? Conseguirei responder ‘sim’? Será para mim essa voz que me chama a ir? Aonde? A seguir a quem? Jesus? E como faço? Será possível?”.
Tantas perguntas que se cruzam, que desaparecem e retornam em ondas. Mas, se forem ouvidas com atenção, então pode ser que, nelas, escute-se uma voz mais profunda do que nós mesmos, “mais íntima do que o nosso íntimo” (Agostinho), uma voz que vem de um além de nós mesmos, mas através de nós mesmos: a voz do Senhor Jesus! É assim que inicia uma relação entre cada um de nós e ele, sim, ele, o Senhor, presença invisível, mas viva, presença que não fala de modo sonoro, mas atrai...
Aqui, no Evangelho segundo Marcos, esse processo de vocação é sintetizado e, por assim dizer, estilizado pelo autor, que narra apenas o essencial: Jesus passa, vê e chama; alguém escuta e leva a sério a sua palavra: “Segue-me!”, e se envolve na sua vida. É o que é verdade para todos, e é inútil dizer mais: seria apenas buscar processos psicológicos...
Mas o essencial foi dito, de uma vez por todas: acolhida a vocação, abandonam-se as redes, isto é, o ofício, abandonam-se o pai e a barca, isto é, a obra familiar, e assim nos despojamos e seguimos a Jesus.
Obedecer ao chamado do Senhor coincide com um renascer para uma vida nova, com um recomeçar. E cada nascimento requer uma boa separação: somente quem fez uma boa separação, de fato, será capaz de vida a uma nova união, com Cristo e com a comunidade dos irmãos e das irmãs.
Mas atenção: a vocação é uma aventura cheia de grandeza, mas também de miséria! Para compreender isso, é suficiente seguir nos Evangelhos a história desses quatro primeiros chamados. O primeiro, Pedro, sobre quem Jesus pusera grande confiança, vivendo perto dele, muitas vezes não entende nada sobre ele (cf. Mc 8, 32; Mt 16, 22), a tal ponto que Jesus é forçado a chamá-lo de “Satanás” (Mc 8, 33; Mt 16, 23); às vezes, está distante de Jesus a ponto de contradizê-lo (cf. Jo 13, 8); às vezes, o abandona para dormir (cf. Mc 14, 37-41 e par.); e, enfim, o renega, diz que conhece a si mesmo e que nunca conheceu Jesus (cf. Mc 14, 66-72 e par.; Jo 18, 17.25-27).
André, Tiago e João, em muitas situações, não entendem Jesus, o interpretam mal e não conhecem o seu coração. Os dois filhos de Zebedeu, em particular, são duramente repreendidos por Jesus, quando invocam um fogo do céu para punir aqueles que não os acolheram (cf. Lc 9, 54-55); e também eles, no Getsêmani, dormem junto com Pedro.
Mas há mais, e Marcos enfatiza isso de modo implacável, com um contraste que não poderia ser mais claro: aqueles que aqui “abandonando tudo, seguiram a Jesus”, na hora da paixão, “abandonando Jesus, fugiram todos” (Mc 14, 50)...
Pobre seguimento! Sim, o meu seguimento, o seu seguimento, querido leitor ou leitora. Realmente não temos muito do que nos orgulharmos... Devemos apenas invocar, da parte de Deus, muita misericórdia e lhe agradecer porque, apesar de tudo, ainda estamos atrás de Jesus e ainda tentamos, dia após dia, viver com ele. E não nos esqueçamos: a promessa de Jesus é mais forte do que as nossas infidelidades, do que as infidelidades dos seus discípulos.
É por isso que eles, depois da aurora da Páscoa, ainda serão pescadores de homens e anunciadores do Reino, capazes de transmitir a todos a boa notícia. De fato, quem escutou a boa notícia e aderiu a ela com toda a sua vida sempre será capaz – apesar de si mesmo! – de anunciar aos outros o Evangelho do Reino que vem e que, em Jesus ressuscitado, se faz próximo de todos e de cada um.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A hora da vocação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU