12 Fevereiro 2021
“Vocês entram nesta internacional cristo-neofascista”, proferiu a deputada do partido ERC, María Carvalho Dantas, à bancada do Vox, no último dia 04 de fevereiro, para o escândalo de Iván Espinosa de los Monteros, que parou o debate no Congresso.
Foi assim que o último livro de Juan José Tamayo, “La Internacional del ódio” (Icaria, 2020), entrou no debate público, com um termo cunhado por este teólogo que descreve a aliança entre os movimentos religiosos e políticos que caracteriza a extrema direita dos dois lados do Atlântico.
Na América: Estados Unidos, Brasil, Honduras, Guatemala, Costa Rica, Chile, Colômbia, Bolívia... Na Europa: Espanha, Itália, França, Polônia, Hungria, República Checa... O fantasma do fundamentalismo religioso e político com reminiscências fascistas percorre o mundo com um programa e algumas estratégias suspeitamente parecidas. E já não se trata de grupos marginais, como ocorria há apenas cinco anos, mas movimentos religiosos e políticos organizados e coordenados que marcam a agenda política, controlam governos ou têm sérias possibilidade para isso no curto prazo.
Todos eles se constroem ao redor do ódio, da criação de inimigos por meio do uso das redes sociais e os meios de comunicação. Trata-se da “internacional do ódio”, um movimento mundial que revolucionou a direita conservadora.
Ensaísta e autor de mais de 70 livros, as pesquisas de Tamayo abarcam das ciências da religião ao feminismo, do fundamentalismo ao diálogo com o islã, passando pela Teologia da Libertação, da qual é um especialista internacionalmente reconhecido.
A entrevista é de Martín Cúneo, publicada por El Salto, 11-02-2021. A tradução é do Cepat.
Como poderia ser descrito tudo o que está acontecendo para alguém que não viu as notícias nos últimos anos?
Não é fácil explicar este fenômeno. As concessões ao neoliberalismo, inclusive pela social-democracia europeia, marcaram uma agenda para o capitalismo mais selvagem do século XIX. Tudo isso supôs um aumento da desigualdade e não conseguiu frear o mal-estar dos cidadãos. E esses cidadãos que se sentiram frustrados e que não viram soluções para seus problemas, lançam-se em busca de respostas em posições muito mais extremas. Em boa medida, esse neoliberalismo tão voraz rompeu a coesão social.
Tem muito a ver com este despertar e ascensão desmedida da extrema direita, na esfera política e religiosa, a figura de Steve Bannon, assessor de Donald Trump nos primeiros meses. Bannon exerceu uma função importantíssima no fortalecimento dos delineamentos políticos e nas estratégias de todos os grupos de extrema direita, entre eles o Vox, em suas viagens pela América Latina e a Europa.
Tudo isto parece algo já vivido. A história está se repetindo.
Não sei se é possível dizer assim, mas o certo é que as abordagens de épocas anteriores estão sendo reforçadas e ampliadas, por exemplo, a relação entre religião e fascismo. Nos anos 1930, em plena ascensão e protagonismo do nazismo na Alemanha, houve pactos, alianças e acordos entre setores hierárquicos da igreja evangélica e a igreja católica com o nazismo. Neste momento, há uma espécie de revival da aliança entre a extrema direita política e a extrema direita religiosa representada por estes movimentos integristas e fundamentalistas. E a isso me refiro quando falo de cristo-neofascismo.
O fenômeno do cristofascismo, que é o modo como Dorothee Sölle chama esta aliança da religião com o nazismo, ocorreu na Espanha, com outras características, com o nacional-catolicismo. A igreja católica espanhola recebeu todos os tipos de privilégios econômicos, educacionais, tributários, culturais, inclusive militares, na condição de que legitimasse a ditadura franquista, com o que isso significava naquele momento: a execução de um quarto de milhão de dissidentes, a repressão e a rejeição aos direitos humanos, o encarceramento dos dirigentes políticos da oposição. Tudo foi legitimado e consolidado através da concordata de 1953 entre a Santa Sé e o Estado espanhol.
O que é realmente esta “internacional cristo-neofascista” sobre a qual você fala? Está organizada?
Não é uma organização coordenada por meio de uma declaração escrita, porque isso seria demais. No entanto, sim, existe uma aliança, uma coordenação destes grupos e coletivos. Bannon já se encarregou de colocar em contato todos estes movimentos. Se você observa, comprovará que a ideologia, as práticas, os discursos, as estratégias são idênticas, tanto nos grupos da extrema direita política como nos movimentos cristãos integristas.
Qual é o papel das grandes organizações cristãs multinacionais?
É preciso distinguir entre as diferentes organizações ultracristãs dos Estados Unidos e da América Latina, por um lado, e da Europa, por outro, em razão da diferente confessionalidade dos continentes. No caso dos Estados Unidos e da América Latina, o peso mais forte do fundamentalismo cristão está nos movimentos evangélicos.
Mas cuidado, não se pode falar de evangélicos de uma maneira uniforme, porque também existe um movimento evangélico muito poderoso nos Estados Unidos contra Donald Trump e em diversos países latino-americanos contra presidentes extremistas, como Iván Duque, na Colômbia, e Sebastián Piñera, no Chile, que contam com o apoio de uma parte dos setores evangélicos mais reacionários.
Na Europa, o peso desse integrismo é dos setores católicos, sobretudo na parte sul, na Espanha, Portugal e Itália, onde a maioria tradicional religiosa é católica, mas independentemente de que em alguns âmbitos geoculturais e geopolíticos os católicos ou os protestantes tenham mais protagonismo nestes movimentos integristas, todos estão perfeitamente coligados.
Como se explica a ascensão destes grupos de extrema direita evangélica em uma região, na América Latina, onde as igrejas de base tiveram tanto poder?
Na América Latina, estes movimentos integristas avançam quando a Teologia da Libertação perde peso. Está claro que há uma relação direta, de causa e efeito. Durante 20 anos, a Teologia da Libertação exerceu uma função libertadora e colocou todo o potencial religioso cristão em opções progressistas, em governos anti-imperialistas, em uma espécie de pedagogia popular para relacionar o cristianismo com os diferentes movimentos de libertação.
Na medida em que a Teologia da Libertação perdeu peso e relevância social e política na esfera pública, estes movimentos integristas, os movimentos evangélicos, aproveitam-se. São algumas igrejas, por certo, que não possuem origem latino-americana: todo o movimento pentecostal e evangélico é importado dos Estados Unidos, justamente para combater o cristianismo libertador, uma ideologia que procede do próprio continente, uma resposta à situação de pobreza, injustiça e de marginalização.
No entanto, o pentecostalismo penetrou muito nos setores populares. O que o pentecostalismo oferece? Por que é tão atrativo?
Porque parte de uma teologia que se chama Teologia da Prosperidade. Para estes setores, deus é um grande empresário que criou o mundo, colocou-o a serviço dos seres humanos, e estes seres humanos têm precisam administrar o mundo, as riquezas e a natureza, como uma grande empresa. E o objetivo da empresa é o enriquecimento.
Os pentecostais oferecem esta Teologia da Prosperidade e deslumbram os setores populares que estão em uma situação de pobreza extrema e de total miséria. Dizem-lhes: “Se você acredita em deus, segue as nossas orientações, pratica os nossos cultos, assiste as nossas celebrações e se junta a este movimento terá um grau de prosperidade que é o que deus deseja”. Segundo esta teoria, não há incompatibilidade entre ser rico e ser cristão, pelo contrário, a riqueza é um sinal e uma expressão do reconhecimento por parte de deus.
Ou seja, estimulam a ascensão social individual frente a uma luta coletiva contra as injustiças...
Exatamente, essa é a chave, fomenta a abordagem individualista para conquistar uma ascensão na esfera social frente ao sentido comunitário da fé. É preciso levar em consideração que muitos dos grandes subúrbios das grandes cidades da América Latina têm uma presença muito importante destes setores evangélicos. O que se consegue com isto? Algo que politicamente é fundamental: lá onde a direita ou a extrema direita política não pode chegar, porque sua abordagem econômica neoliberal não pode ser compartilhada por estes grupos, os movimentos evangélicos suprem e somam votos nesse ambiente. Por isso, trata-se de uma operação política muito bem calculada.
A penetração destes movimentos político-religiosos está sendo especialmente intensa na América Central, justamente onde mais a Teologia da Libertação havia se desenvolvido. O que está acontecendo lá?
Em El Salvador - graças à Universidade Centro-Americana, da qual era reitor Ignacio Ellacuría, um dos jesuítas que foram assassinados em 1989, e às comunidades de base -, gerou-se todo um movimento a serviço dos setores populares e dos ambientes mais vulneráveis que eram objeto da agressão por parte da oligarquia, da igreja oficial, do Governo, do Exército e dos esquadrões da morte.
A Teologia da Libertação, promovida por Ellacuría, Jon Sobrino, entre outros, denunciou essas situações e se colocou ao lado do povo. Agora, está acontecendo totalmente o contrário: o próprio presidente, Nayib Bukele, conta com o apoio e a legitimação dos importantíssimos pastores das igrejas mais importantes, com influência dos Estados Unidos. E ele é capaz de dar um golpe de Estado porque o Parlamento se opôs a aprovar uma lei que ele exigia...
É um exemplo claríssimo de como está mudando todo o panorama político e religioso pela influência das igrejas evangélicas. O avanço destes nacionalismos populistas excludentes – três palavras inseparáveis – está conseguindo uma mudança radical na esfera política da América Latina.
O mesmo poderíamos dizer sobre a Guatemala e Honduras, dois países que têm um crescimento extraordinário destes setores evangélicos. Ou sobre a Costa Rica, onde nestas últimas eleições venceu no primeiro turno o candidato do movimento evangélico. No segundo turno, todas as forças progressistas e setores conservadores se uniram e conseguiram impedi-lo de ser presidente.
O que todas estas experiências têm em comum, tanto no governo como na oposição, tanto entre os religiosos como entre os políticos? Qual é o programa desta internacional do ódio?
O que têm em comum são os discursos e as práticas de ódio. Concretamente, o discurso e a prática de ódio contra o que chamam de ideologia de gênero, contra o feminismo, que qualificam como coisa do diabo, contra os direitos sexuais e reprodutivos, contra o casamento igualitário, contra tudo o que tem a ver com o começo e o final da vida, a interrupção voluntária da gravidez ou a eutanásia, uma rejeição à homossexualidade, à educação afetivo-sexual, um negacionismo da mudança climática e da violência de gênero... Por outro lado, esse ódio e essa rejeição aos coletivos e refugiados imigrantes. Aqui na Espanha, concretamente, um ódio à população muçulmana.
Por que dissemina tanto ódio? Por que é tão útil recorrer a ele?
[Suspiro] É uma pergunta difícil de responder, porque não se pode aceitar que o ódio é uma atitude que pertence à natureza do ser humano. Não é algo natural e inevitável. Trata-se de algo que se incuba e se programa, e se fomenta por meio de múltiplos mecanismos, até o ponto em que chega a ser normalizado. Não saberia responder.
Em seu livro La obsolescencia del odio, Günther Anders se expressa muito bem quando diz que o princípio de Descartes, “Penso, logo existo”, foi substituído por “Odeio, logo existo”. Nesse sentido, o que é o ódio? É essa autoafirmação e autoconstrução, em nível coletivo, por meio da negação e a aniquilação do outro.
De alguma forma, o ódio elimina todas aquelas pessoas que você considera inimiga seguindo essa oposição, essa dialética entre amigo e inimigo. Desse ponto de vista, o ódio é a melhor forma de se empoderar e se tornar o único ou o dono, uma estratégia que é contrária aos princípios do cristianismo, que diz que é preciso amar a seu inimigo.
Qual é a relação entre estes movimentos e as elites econômicas?
Eu não sei se existe uma relação orgânica entre eles, mas como diz o Evangelho: “pelos seus frutos os conhecereis”... Toda essa elite oligárquica, toda esta política ultraliberal e toda essa economia capitalista selvagem a qual voltamos com o apoio de todos estes movimentos. É impossível que organizações religiosas integristas tivessem tanto apoio e influência, se não fosse pelos meios de comunicação controlados pelo neoliberalismo. Ao mesmo tempo, para o capitalismo selvagem cai muito bem esta legitimação por parte dos setores conservadores.
Após a derrota de Trump, a internacional do ódio está sendo desinflada?
Não sei, ainda é cedo para conhecer as repercussões da derrota de Trump ou do impeachment que está sendo preparado no Brasil contra Bolsonaro. Trump perdeu as eleições, mas não desapareceu o trumpismo. Bolsonaro está sendo muito deslegitimado, mas ainda há uma parte muito importante da população que está nessa órbita. O fato de que Trump tenha perdido as eleições não significa que tenha desaparecido sua influência na esfera política religiosa internacional. Morto o cachorro, acabou a raiva? Eu acredito que não. Essa raiva está muito consolidada na cidadania mundial.
A crise da covid fortaleceu esta internacional do ódio ou, ao contrário, serviu para evidenciar suas carências?
A covid reforçou o cristo-neofascismo porque para amplos setores supõe um fracasso da política e uma derrota da ciência. Os dirigentes das igrejas do Brasil afirmam que contra o coronavírus só resta a coronafé... O próprio Matteo Salvini nos discursos em campanha eleitoral já dizia que não confiava na ciência e que era preciso recorrer à própria religião. Estas situações dramáticas, sobretudo as que semeiam a morte de maneira tão extensa, servem para reforçar e reafirmar as abordagens ultraconservadoras do cristianismo, a tendência ao milagrismo...
Uma espécie de milenarismo...
Sim, efetivamente. O mesmo aconteceu na época da depressão de 1929, nos Estados Unidos. O que os fundamentalistas fizeram? Em vez de fazer uma análise política e econômica das causas que levaram à depressão, fizeram uma leitura apocalíptica e disseram que estávamos no início do surgimento do anticristo.
Todo este auge da extrema direita religiosa coincide com o papado de Francisco, que parece estar muito longe de tudo isto. O que está acontecendo no Vaticano? Como se explica que tenha surgido um Papa que não parece refletir o que a Igreja pensa?
Possivelmente porque neste caso o Espírito Santo não se equivocou. Foram 33 anos de pontificado de João Paulo II e Bento XVI, que eu chamo de a Idade do Ferro da Igreja Católica, com esse integrismo político, com essa condenação à modernidade. Esse modelo já estava completamente esgotado, não tinha nenhuma saída. Esse esgotamento levou os cardeais que elegeram o Papa Francisco a se manifestar por uma mudança para não perder os poucos fiéis que permanecem na Igreja.
Mas, em boa medida, a própria Cúria Romana está arrependida com esta eleição e nela é onde o Papa tem os seus mais fortes e sérios adversários. Estes delineamentos de reforma interna da igreja, de crítica e denúncia ao neoliberalismo provocaram a rejeição de um amplíssimo setor do episcopado mundial e destes movimentos ultraconservadores.
E no caso da Igreja na Espanha?
Parece-me que na Espanha fomos muito precipitados ao considerar que com a transição desapareceu o nacional-catolicismo. Não é verdade. O nacional-catolicismo segue vivo e ativo. Há uma herança que vem de longe que é esta aliança entre o trono e o altar, e a Igreja nunca se sentiu confortável e à vontade com os modelos democráticos. Não se sentiu assim com a República e foi um dos fatores mais desestabilizadores, e sempre se sentiu muito mais confortável e muito mais próxima aos Governos autoritários e aos governos militares. Nesse momento, em sua maioria, a hierarquia católica não se sente à vontade na democracia.
Parece que agora há uma linha direta entre os discursos de ódio da igreja e o Vox.
Sobretudo nas questões que tem a ver com a sexualidade, com o casamento igualitário, com o princípio e o final da vida... Nisto sim, a aliança é total. Toda vez que nos comícios Salvini apelava ao rosário, o crucifixo ou as imagens da Santíssima Virgem Maria, automaticamente a Conferência Episcopal italiana se posicionava contra e dizia que ele estava se apropriando e manipulando a religião. Até hoje na Espanha não escutei uma só condenação, uma só crítica, nem sequer um só afastamento da hierarquia católica em relação às abordagens e posicionamentos do Vox, Hazte Oír e de todas estas organizações ultracatólicas.
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“O ódio não é algo natural e inevitável”. Entrevista com Juan José Tamayo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU